Volta

 

Natureza e cultura humana: um problema comum a Rousseau e a Nietzsche

 

Pedro Paulo Corôa

Universidade Federal do Pará

 

 

No Prefacio à Fenomenologia do Espírito, ao referir-se à forma particular assumida pelo pensamento filosófico em diferentes sistemas que parecem negar-se mutuamente, Hegel escreve: “Com a mesma rigidez com que a opinião comum se prende à oposição entre o verdadeiro e o falso, costuma também cobrar, ante um sistema filosófico dado, uma atitude de aprovação ou de rejeição. Acha que qualquer esclarecimento a respeito do sistema só pode ser uma ou outra. Não concebe a diversidade dos sistemas filosóficos como desenvolvimento progressivo da verdade, mas só vê na diversidade a contradição” (1)

Esse parece ser o caso, quando se trata do cotejamento das obras de dois dos maiores filósofos modernos: Rousseau e Nietzsche. E geralmente as contradições diante das quais nos é exigido escolher entre um e outro, são expostas segundo critérios de tal modo determinados historicamente que as críticas que ambos poderiam fazer-se estão viciadas pela vantagem óbvia do discurso mais recente. E isso tem a ver mais com a memória do que com a inteligência. Por isso, cremos nós, não é – necessariamente – adotando uma perspectiva histórica que nós poderemos fazer justiça a essa relação livre com a “verdade” que caracteriza a prática filosófica.

A partir de um princípio meramente histórico é fácil, por exemplo, escrever a favor de Nietzsche “contra” Rousseau. Porém, o problema da filosofia, ou, os problemas filosoficamente colocados e enfrentados, não se resolvem sob condições históricas dadas. Esses problemas, na verdade, são re-discutidos, re-tomados, re-formulados e, às vezes, re-tardados sob essas condições.

Para ir direto ao nosso alvo, devemos começar dizendo: o lócus autêntico em que se monta a arena das disputas filosóficas é conceitual, mesmo que em obras de pensadores como Rousseau e como Nietzsche, o centro referencial desse espaço agônico seja, no fundo, pré-conceitual, e, nesse sentido, diríamos, pensando no tema que nos propusemos, quase pré-cultural. O quase pré-cultural visa resguardar aqui o fato de que, na clássica distinção entre cultura e natureza humana, nunca foi cogitada uma volta à natureza em sentido próprio, menos ainda como condição para a reforma ou a revolução dos valores morais da humanidade. O que está efetivamente em pauta, para esses filósofos, é a hegemonia do que talvez possa ser descrito como um projeto cultural, e, na verdade, uma tendência – quase uma política pedagógica – que domina os rumos da civilização européia.

De todo modo, podemos falar da busca de um espaço pré-conceitual como o lugar privilegiado da reflexão filosófica, na medida em que sejam reconhecidos tanto o alcance quanto a força dos ataques de Nietzsche e de Rousseau ao modo como os homens, principalmente os modernos, se deixam aprisionar ou submeter à determinação do conceito, tomado como signo de universalidade das nossas representações, e, por isso, aparentemente, e só aparentemente, tradutor de uma espécie de democracia que comporia a lógica interna do pensamento. Uma idéia, aliás, que parece se refletir em todas as formas de Iluminismo, mas sobretudo como tendência do Iluminismo moderno.

Para nós, se há um centro referencial comum aos dois filósofos, ele deve ser concebido como anterior à formulação do conceito tal como nós o conhecemos, ou seja, como “aquilo” que contém, retém e aprisiona, em si, a unidade abstrata do mundo. E que, exatamente por se alimentar do que é ab-straído, do recorte apenas “imaginado/pensado” do real, é um fenômeno secundário, de modo algum originário do nosso ato de pensar tomado em sua pureza e simplicidade. Por ser abstrata, a unidade que promove o conceito é seletiva, artificial, e se afirma na negação do resto daquilo de que ela é uma abstração, ou seja, de quase tudo, do que vaza da rede lógico-conceitual. Como ensina Spinoza: determinatio negatio est, o que faz de toda definição uma operação intelectual de exclusão.

Então, perguntamos: será o conceito – matéria prima de toda e qualquer ciência, de fato, a forma genérica do pensar universal, e democrático? Em que sentido ele nos faz conhecer a “realidade”, se sua positividade é sinônimo de negação? Não estaria dada na própria definição da função do conceito uma limitação que ele não pode superar a não ser implodindo? Abstraindo-se o próprio conceito, ele mesmo fruto de abstração, embora, também, expressão máxima da representação científica do mundo, resta ou não, ainda, pensamento? Resta ou não alguma outra via para a identificação e a especificação – no sentido natural e lógico – do que é ser humano, isto é, do que é existir não como um mero dado orgânico encontrável na natureza, mas como um ser que vive cultivando, regularmente, suas capacidades?

Essas são perguntas que, cremos nós, norteiam e aproximam, sem identificá-las, as obras de Rousseau e de Nietzsche. Não as identificam por meio dessa aproximação porque, afinal, enquanto o desdobramento dessa questão conduz o filósofo suíço à crítica ao modo como a tradição filosófica concebe a natureza humana, redefinindo a orientação geral do pensamento teórico-filosófico segundo a perspectiva do moralista, isto é, do citoyen, Nietzsche procura dar um passo além – embora não por sobre a mediação moralista e avaliativa dos costumes – por acreditar que apenas no ideal do homem estético (2) é possível o que ele mesmo chama de redenção [Erlösung], não da humanidade propriamente, mas pelo menos do indivíduo, ou melhor, de certos indivíduos, capazes de efetivamente compreender e encarnar os ideais  mais elevados que o homem pôde se representar para seu próprio cultivo, para sua cultura, como é o caso do exercício, livre de amarras, do pensamento.

Reconhecida a natureza limitante do conceito, e que sua função essencial é servir de regra, ou seja, de parâmetro estipulado para a determinação da nossa interpretação do mundo, porém, jamais, de sua verdade, a distinção entre estado de natureza e estado de cultura ou civilização passa a se impor à nossa reflexão. Essa constatação nos permite suspeitar da naturalidade com que nós encaramos o que chamamos de cultura e civilização, afinal, é justamente nesse meio, humanamente delineado, onde padrões artificiais impostos ao pensar a que chamamos conceitos, ainda que não dêem conta do pensar mesmo, encontram seu ambiente ideal e se impõem, “pervertendo” o próprio pensamento. Tanto Rousseau quanto Nietzsche interpretam a evolução dos costumes humanos no ocidente como um processo de racionalização que amplia mais e mais o controle sobre a capacidade potencial do homem de viver e pensar livremente, ou seja, de criar amarras que o condicionam tanto moral como intelectualmente.

É nisso que se baseia a tese principal de Rousseau em seu Discurso sobre as ciências e as artes. É contra isso que se voltam as teses nietzscheanas acerca do homem teórico e o que resulta de sua glorificação no seio da cultura européia, em o Nascimento da tragédia. Todas as obras subseqüentes desses filósofos podem ser lidas como a manifestação do mesmo espírito de frustração diante de uma cultura essencial e tacanhamente teórica, daí revelar-se intransigentemente disciplinadora, e, por isso mesmo, limitada e limitadora.

Essas duas obras – mas não só elas – atingem frontalmente o que Cassirer chama em seu Ensaio sobre o homem de “a última etapa do desenvolvimento mental do homem”, e que, segundo ele “pode ser vista como a mais alta e mais característica façanha da cultura humana”(3), a ciência. É justamente esse privilégio dado ao conhecimento científico, não por ter as características que tem, mas no contexto geral da cultura humana, é contra isso que podemos identificar as reações de Rousseau no século XVIII e de Nietzsche no século XIX. E a razão da rejeição do lugar superior da ciência é o mesmo que, para Cassirer, justificaria sua maior dignidade. Diz ele: “Em um mundo mutável, o pensamento científico fixa pontos de apoio, os pólos inamovíveis” (p. 338). Ora, pensar o mundo por meio dos rígidos esquemas que são, exatamente, esses pontos “fixos”, os conceitos científicos, é isso que dá a qualquer sistema proposto para a explicação do mundo, seja ele físico ou metafísico, uma destinação doutrinária, logo, dogmática.

 Mas não é só esse o ponto. Afinal, uma coisa é o fato, reconhecido nas afirmações de Cassirer, de que do ponto de vista da evolução histórica, ou seja, do movimento nela observado, a ciência, após passar por vários processos de reformulação, se impôs em um contexto determinado em que o pensamento, por meio dela, se instrumentalizou. Outra coisa é pretender que o progresso da ciência, que é um dos elementos da cultura, represente a progressão da própria cultura. Como negar que é isso o que Rousseau aponta no seu Primeiro discurso: o restabelecimento das ciências e das artes em nada contribuiu para o aprimoramento dos costumes, ou seja, para os valores que possibilitam o cultivo da moralidade entre os homens.

E mais, esse problema só pode ser resolvido no âmbito de um pensamento que abre para si um novo registro. Mas, no caso, um registro que seja não apenas extra-científico, e sim possível de ser justificado como superior ao modo de pensar científico, principalmente se tiver o poder de relativizá-lo, se puder tirar-lhe a condição de fim da cultura intelectual da humanidade.

É isso que irá exigir desses dois pensadores um esforço avaliativo extraordinário, incomum, a busca do seu registro próprio, e adverso ao seu tempo, para compor seus argumentos de crítica à ciência, à moral e até ao cultivo das artes. Então, é na extemporaneidade, para usar o vocabulário de Nietzsche, que esse pensamento novo vai buscar uma significação e aceitação demasiadamente difícil para a mentalidade de seus contemporâneos. Mas o que o vocabulário nietzscheano consagrou, Rousseau já havia exprimido de um modo eloqüente no Prefácio ao Primeiro discurso quando afirmou: “... não me preocupo com agradar nem aos letrados pretensiosos, nem às pessoas em moda. Em todos os tempos haverá homens destinados a serem subjugados pelas opiniões de seu século, de seu país e de sua sociedade. Faz-se passar hoje por espírito forte, filósofo, quem, pelo mesmo motivo, ao tempo da Liga não teria passado de um fanático! Quando se quer viver para além de seu século, não se deve escrever para tais leitores”(4).

Não é preciso lembrar, já lembrando, a expectativa de respostas positivas contida na formulação do tema da Academia de Dijon, e natural em uma época em que a física clássica já era paradigmática para a própria filosofia. Rousseau tem que lidar com a pressão dessa mentalidade científica. Daí ele poder dizer: “Prevejo que dificilmente me perdoarão o partido que ousei tomar. Ferindo de frente tudo o que constitui, atualmente, a admiração dos homens, não posso esperar senão uma censura universal” (idem). Em um tempo em que a física se chamava “philosophia naturalis”, em que ciência e filosofia eram indistintas, criticar filosoficamente a ciência cria uma estanha e aparentemente contraditória tensão, pois nesse caso a crítica é, na verdade, uma autocrítica. A saída é não se identificar como filósofo. É fazer filosofia como um literato, como o faz Rousseau, assim como Nietzsche diz no Posfácio a O nascimento da tragédia que gostaria de ter exposto suas idéias revolucionárias sobre a arte grega de uma forma poética, não conceitual (5).

De qualquer modo, é dentro desse jogo de difícil regulação e repleto de ambigüidades em que o pensamento conceitual por excelência, o filosófico, se dá como tarefa a crítica e avaliação extra-conceitual do conceito, é nesse ponto que se cruzam, para tomar direções diferentes, as obras de Rousseau e de Nietzsche.

O problema de Nietzsche não é negar o homem teórico, como para Rousseau, não se trata de maltratar a ciência, e sim de mostrar a extrema limitação que a humanidade impõe a si mesma ao elevar o homem teórico – cartesiano, diria Rousseau, socrático, para Nietzsche – à condição de Ideal a ser seguido na formulação dos objetivos culturais da humanidade.

Dentro dessa perspectiva, o sentimento moral, as sociedades reguladas por normas comuns de padronização do comportamento, a importância da ciência em uma possível hierarquia de saberes, são todos temas que cobram, tanto em Rousseau quanto em Nietzsche, independente de qualquer coisa, a colocação da questão relativa à origem. Basicamente a origem da idéia de comunidade humana e a idéia de ciência. Dito de outra maneira, a constituição do conceito de cidadão ou de sujeito moral e, como quer Nietzsche, o conceito de “homem teórico”.

O nosso objetivo, como temos dito, é tentar mostrar que é possível, pelo menos, pensar uma unidade temática, e não muito mais que isso, agindo na condução dos interesses filosóficos de Rousseau e de Nietzsche. Essa unidade talvez possa ser apontada na maneira como ambos interpretam a história da humanidade – ouça-se, a história da civilização e da cultura ocidentais – como um processo de corrupção ou decadência dos costumes. Isso é o que dá a eles uma percepção essencialmente pessimista relativamente à idéia de progresso cultural e moral do homem, e, por outro lado, uma visão retrospectiva mais positiva ou mais feliz, o que faz com que ambos busquem em um passado idealizado, cada um a seu modo, um modelo de vida e pensamento mais simples e mais livre, a partir do qual nós possamos ser capazes de projetar, em um plano superior, a destinação da humanidade.

No fundo a filosofia de Rousseau, como a de Nietzsche, representa, para o pensamento, um recuo reflexivo, e talvez fosse correto dizer, um recuo para a própria reflexão ou da própria reflexividade, aproximando-a, assim, de sua “origem”: hipotética para um, idealizada, para o outro. Mas qual a diferença nisso? Até porque esse recuo, sem dúvida alguma, não faz tabula rasa do pensamento. O que ele pretende é recuperar o próprio pensar em sua unidade, ou seja, liberdade. Como isso é anterior à racionalização das instituições humanas, trata-se da representação de um pensamento que podemos chamar de extra-moral, de não-regulado, que desconhece a obediência e a crença em fórmulas ou regras. Enfim, um pensamento absolutamente independente, heautônomo (6). É nesse sentido que ele pode ser chamado pré-conceitual.

Vamos tentar seguir mais de perto, com o auxílio das obras, o tema que estamos expondo.

Começando por Rousseau, podemos dizer que sua crítica à moralidade aponta sempre para uma necessária genealogia que atinge as dimensões mais importantes da cultura e da sociedade humanas, e dentre elas, em especial, a linguagem.

Para Rousseau, em sua primeira forma, a linguagem era figurada. Nós diríamos, em uma fórmula nietzscheana: ela era apolínea, ou mais precisamente, a nossa linguagem era uma representação plástica das coisas, portanto, fundamentalmente, artística. Para essa linguagem não havia a preocupação com o sentido próprio dos termos utilizados, ou seja, um sentido lógico e intrínseco, que conferisse às palavras um valor determinado e, portanto, verdadeiro. Escreve Rousseau no Ensaio: “A princípio só se falou pela poesia, só muito tempo depois é que se tratou de raciocinar” (1978, p. 164) (grifo nosso).

Nós perguntaríamos: o poder humano de representar as coisas em termos lingüísticos, enquanto capacidade de dar-lhes uma forma que é anterior ao processo de racionalização do falar, ou seja, uma forma pré-racional da linguagem e da comunicação das nossas idéias, não é isso que Nietzsche vai identificar com o espírito apolíneo, plasmador? Um “impulso” em que a capacidade de dar uma forma simbólica às coisas é considerada como mais importante que a forma mesma que dela resulta, a forma acabada do que é figurado por meio da representação enquanto tal? A questão aqui é que a fertilidade criadora da nossa imaginação – ou seja, da capacidade de produzir imagens, Einbildungskraft – se efetiva com uma liberdade de tal modo completa, heautônoma, como diz Kant, que só o fazer poético, ou como dizia Vico, a idéia de uma inteligência poética, poderia traduzi-la adequadamente.

E o que é, então, essa liberdade senão, essencialmente, ausência de determinação prévia, ou se quiser, ausência de regulação para o modo de produção de imagens a que se destina a nossa imaginação, e da qual se alimenta o nosso pensamento? Não há, nesse estágio pré-racional da linguagem, digamos, uma definição legal, normativa, para as ações do pensamento. Ele não tem uma disciplina, uma metodologia. Logo, o que aqui se representa é a forma mais aproximada possível do estado de natureza do pensamento, e, justamente por isso, da cultura e das instituições humanas.

Rousseau, e sem dúvida Nietzsche também, não assume a definição segundo a qual o homem é um animal racional. A primeira frase do Ensaio, capítulo I, intitulado “Dos vários meios de comunicar nossos pensamentos” diz o seguinte: “A palavra [e não a razão] distingue os homens entre os animais” (p. 159) (grifo e inserção nossos). E o que isso quer significar? Que a palavra cria o homem, é ela que o inventa. É isso que dá sentido à idéia de um Verbum divino criador do mundo. Se a palavra de Deus criou a natureza e o homem nela, foi a palavra humana que tirou o homem dela, da natureza, fundando um mundo próprio, o mundo da cultura. Um mundo que não é mais, simplesmente, composto de coisas e seres, e sim de significações, de re-presentações. Buscando uma ajuda inesperada, podemos dizer que a palavra é o fiat lux por meio do qual o homem se recria, e de que nos fala Hobbes, no início do Leviatã.

Rousseau, como o fará mais tarde Nietzsche, põe a linguagem como a mais ampla base territorial em que os homens podem se apoiar na edificação da cultura, externalizando seus pensamentos de modo a compartilhá-los entre si. A linguagem é a primeira condição objetiva para as relações entre os homens. Por isso ela é, diz Rousseau, “a primeira instituição social” (p. 159), cuja necessidade, para o indivíduo, ou seja, para o homem em estado de natureza, isolado e espalhado pelo mundo, era nenhuma. E a linguagem, na origem e em sua função mais geral – que é permite que comuniquemos nossos pensamentos, exteriorizando-os e permitindo nossa socialização – não é, em sua gênese, necessariamente, discursiva, não é um logos, nem em seu sentido mais largo. É assim que ela pode ser, como o admite Rousseau, gestual. A comunicação seria, então, direta, intuitiva. Por meio dela os homens “não diziam, mostravam”, gozavam do que Rousseau chama, em uma passagem belíssima, de “eloqüência muda”, pois “fala aos olhos muito melhor que aos ouvidos” (p. 161).

Quando se trata da linguagem discursiva, que, essa sim, vai redundar no logos racional, em que ao invés de gestos temos que contar com as palavras, Rousseau busca auxílio no conhecimento histórico da época para afirmar: “O gênio das línguas orientais, as mais antigas que conhecemos, desmente por completo a marcha didática que se imagina para a  sua composição. Essas línguas nada possuem de metódico e raciocinado; são vivas e figuradas. Apresentam-nos a linguagem dos primeiros homens como línguas de geômetras e verificamos que são línguas de poetas” (p. 163) (grifo nosso). Não é por acaso, crê Rousseau, que em sua origem as palavras exprimiam sentimentos, emoções que atingem imediatamente o coração e não a razão. São, diz ele, sentimentos, como “o amor, o ódio, a piedade, a cólera, que lhes arrancaram [aos homens] as primeiras vozes” (p. 164).

É esse vínculo sensível que explica o fato de que “as primeiras línguas foram cantadas e apaixonadas, antes de serem simples e metódicas” (idem) (grifo nosso). Essa linguagem musical, livre, apaixonada já é, para Rousseau, moral, embora, por afetar-nos apenas os sentimentos, pré-racional. Aqui temos, sim, relações humanas, temos uma comunicação sentimental que pode ser chamada de moral, uma vez que encontra-se, ainda, livre. Livre principalmente da gramática, de uma normatividade que é, como procura mostrar Nietzsche em Verdade e mentira em sentido extra-moral, a base da instituição da lógica e, com ela, do conceito. O sentimento moral, termo que será utilizado por Kant, funda aqui, um registro distinto daquele que vamos encontrar para a moralidade após um “contrato social” – este eminentemente racional. Mas, o que visa a racionalidade “contratual” senão remediar a perda de uma condição em que a moral e a cultura eram um jogo plenamente livre e mais simples?

O que acontece com a linguagem, na passagem da musicalidade poética à regulação racional, é um analogon do que há de ocorrer com toda a cultura humana em sua história. E o que traduz esse sentido endurecido do nosso auto-cultivo é a noção de civilização, tomada constantemente como sinônimo de cultura. Talvez os problemas que se colocam Rousseau e Nietzsche pudessem ser melhor compreendidos se nós tentássemos desfazer essa sinonímia. Afinal o que se põe como exigência para o homem civilizado é a cultura da disciplina. Mas tal disciplina não é nem pode ser idêntica a moral. Como nos diz Kant, enquanto seres que têm cultura, nós somos civilizados, mas de modo algum, com isso, moralizados (7). A civilização é uma educação para viver sob a unidade das regras do estado de direito. Isso cria um vínculo legal e não moral e autenticamente livre entre os homens. O tempo e o já nascer sob tal condição dá a sensação da naturalidade dela. É isso que Rousseau exprime quando escreve que o homem, quando nasce (fenômeno natural), é livre. Mas, no que nasce, já está sob determinações sociais que o limitam e prendem.

Do nosso ponto de vista, em Nietzsche temos o reflexo da mesma dificuldade quando ele escreve: “Enquanto o indivíduo, em contraposição a outros indivíduos, quer conservar-se, ele usa o intelecto, em um estado natural das coisas, no mais das vezes, somente para a representação: mas, porque o homem, ao mesmo tempo por necessidade e tédio, quer existir socialmente e em rebanho, ele precisa de um acordo de paz e se esforça para que pelo menos a máxima bellum omnium contra omnes desapareça de seu mundo. Esse tratado de paz traz consigo algo que parece ser o primeiro passo para alcançar aquele enigmático impulso à verdade. Agora, com efeito, é fixado aquilo que doravante deve ser ‘verdade’, isto é, é descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a legislação da linguagem dá também as primeiras leis da verdade: pois surge aqui pela primeira vez o contraste entre verdade e mentira”(8).

Esse vínculo entre verdade e sociedade, comunidade e orientação racional da cultura, é isso que faz com que Nietzsche assuma para si a oposição indicada por Schopenhauer entre uma república dos eruditos e uma república dos gênios. E o seu ir além de Rousseau é, a nosso ver, o propor “substituir”, enquanto fim da cultura humana, o ideal de uma comunidade ética pelo ideal de uma comunidade artística. Se não há moralidade sem liberdade – e nesse ponto encontramos também uma identidade não só entre Nietzsche e Rousseau, mas de ambos com Kant – só uma sociedade de artistas, como a grega, pré-platônica, imagina Nietzsche, poderia fornecer o modelo originário da verdadeira cultura do homem livre. Mas, por outro lado, não seria o caso de simplesmente substituir a moral pela arte, afinal, essa comunidade artística, nos diria Schiller, é a única e verdadeira comunidade ética (9).

 

 

Referências Bibliográficas:

 

CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. Trad. T. R. Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

 

HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Trad. P. Menezes. Petrópolis: Vozes, 2002.

 

KANT, I. Idéia de uma história universal (Edição Bilíngüe. Org. R. Terra). Trad. R. Terra; R. Neves. São Paulo: Brasiliense, 1986.

 

_______. Crítica del juicio. Trad. M. G. Morente. Madrid: Colección Austral, 1908.

 

NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

 

___­­­___________. Verdade e mentira no sentido extra-moral. In Obras Incompletas. Trad. R. R. Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Os Pensadores).

 

ROUSSEAU, J.-J. Ensaio sobre a origem das línguas. In Obras Escolhidas. Trad. L. S. Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

SCHILLER, F. Kallias ou sobre a beleza. Trad. R. Barbosa. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

 

 

Notas

 

(1) HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Trad. P. Menezes. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 26.

(2) NIETZSCHE, F. Obras incompletas. Trad. R. R. Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 28 (Os Pensadores).

(3) CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem: Introdução a uma filosofia da cultura humana. Trad. T. R. Bueno. São Paulo: Martins Fontes,  1994, p. 337.

(4)  ROUSSEAU, J.-J. Obras escolhidas. Trad. L. S. Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 331 (Os Pensadores). O grifo é nosso.

(5) NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 16.

(6) Heautonomia: é como Kant denomina a legislação para si próprio, que serve de princípio para a faculdade de julgar reflexionante, e da qual deriva o juízo estético ou de gosto. Conferir a diferença entre princípio de autonomia e o princípio heautônomo na Introdução à Crítica do juízo,  p. XXXVII.

(7) Kant escreve o seguinte em seu opúsculo Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita,  Sétima Proposição: “... Rousseau não estava tão errado ao preferir o estado dos selvagens, se se deixar de lado este último degrau que nossa espécie ainda tem que galgar. Mediante a arte e a ciência, nós somos cultivados em alto grau. Nós somos civilizados até a saturação por toda espécie de boas maneiras e decoro sociais. Mas ainda falta muito para nos consideramos moralizados. Se, com efeito, a idéia de moralidade pertence à cultura, o uso, no entanto, desta idéia, que não vai além de uma aparência de moralidade (Sittenähnliche) no amor à honra e no decoro exterior, constitui apenas a civilização”. Idéia, p. 19.

(8) NIETZSCHE, F. Verdade e mentira no sentido extra-moral. In Obras Incompletas. Trad. R. R. Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural,  1978, p. 32 (Os Pensadores). Grifos nossos.

(9)  Conferir o que escreve Schiller sobre juízo ético e estético, com sua definição da beleza como a liberdade no fenômeno  em Kallias ou sobre a beleza, que contém sua correspondência com Christian Körner, em especial a carta de 8 de fevereiro de 1793.

 

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