Volta
História:
a questão em Rousseau
Universidade Federal
de Minas Gerais
A história é o meio no qual age a
liberdade humana, ela não pode ser substituída pela Providência (1),
pois, a mesma constitui-se um espaço aberto para a liberdade natural do
homem. A obra do homem é o “homem moral” ou o “homem do homem”. O homem
pode ou perfeccionar-se ou desnaturar-se, enfim, ele pode forjar inclusive
uma natureza histórica. O homem tem história, mas não um destino. É uma
liberdade aberta, desprovida de determinações, é a priori completamente
indeterminado. Apesar de indeterminada, a história, progride. No Discurso sobre a Origem e os Fundamentos
da Desigualdade entre os Homens - ou Segundo Discurso -, o homem na qualidade de obra de si mesmo
encontra-se “desnaturado”;
em contrapartida, o homem da natureza – inocente e feliz - não tem
história, pois ao viver isolado permanece sempre o mesmo, não há progresso
senão em sociedade. A história (2) é
um meio para ensinar a moral e não possui sua própria finalidade enquanto
ciência. A história deforma a verdade sobre o homem, e o leitor corre o
risco de se deixar guiar pelo julgamento do historiador e de não ver senão
pelos olhos de outro, de não aprender a julgar por ele mesmo o passado, mas
o presente. Isto é, deveríamos aprender a tratar, nós mesmos, os princípios
constantes da natureza humana que se manifestam na história. A história tem
o seu valor ao permitir que os fatos falarem pelo homem, pois a retórica
humana não é capaz de expressar com exatidão e isenção sua situação e seu
determinado contexto histórico. Com a história devemos aprender a
distinguir a verdade da aparência, os homens tais como eles são do que eles
querem parecer. Trata-se de conjecturar o que os homens são de fato em seu
estado de natureza (3), tendo como parâmetro a
essência de homem. “Não se devem considerar as pesquisas, em que se pode
entrar neste assunto, como verdades históricas, mas somente como
raciocínios hipotéticos e condicionais, mais apropriados a esclarecer a
natureza das coisas do que a mostrar a verdadeira origem”(4).
É uma história da espécie humana, na qual consideraremos – outras vezes
imaginaremos – os traços essenciais de sua natureza originaria. Entre o
passado e o agora, entre o homem natural e o homem contemporâneo, existe um
espaço para compreendermos como o homem se faz, e compreendendo sua
habilidade de transformação. Nesse sentido, as contradições e os
conflitos do mundo contemporâneo são expressões culminantes da antinomia
que atinge a humanidade, não em sua “natureza”, mas em sua “história”. A
história é a testemunha não apenas da grandeza do homem e de sua razão, mas
também de sua decadência.
O Ensaio
sobre a Origem das Línguas e o Segundo
Discurso oferecem-nos uma seqüência plausível para distinguirmos as
várias etapas desse progresso humano, a qual relata as etapas do
desenvolvimento individual e sócio-político, do homem ao cidadão. Sabemos
que tudo se inicia com o homem no estado de natureza, passando pelo
contrato social, chegando à sociedade civil. Vejamos em melhores detalhes.
A primeira refere-se à “solidão na
abundância”(5); nessa etapa a terra lhe
oferecia tudo que o homem necessitava; ou ele adequou-se ao que a natureza
abundantemente lhe oferecia. O instinto humano conduziu-o à satisfação de
suas poucas necessidades, pois eram elementares e visavam estritamente a
sua própria conservação. Por meio do instinto o homem encontra-se em
concordância com a natureza e com seus apetites. Mostra-se, em linhas
gerais, desprovido de idéias sobre o futuro, sem curiosidade e parca
imaginação. Sente apenas dor e fome, o que, aliás, integra essa sua
condição meio-humana e meio-animal, ou de bom-selvagem. “O homem natural
é tudo para si mesmo”(6), está só e
relaciona-se imediatamente com a natureza. Apenas os atos amorosos
ocasionais rompem com essa solidão absoluta; apesar de não existirem elos
afetivos, filiais ou familiares. O homem natural é insociável, ele não
comercializa com os demais. “O efeito das primeiras necessidades
consistiu em separar os homens e não em aproximá-los”(7).
Além do mais, não há necessidade de comunicação – falada ou gestual. Não há
ainda sequer noção do bem e do mal.
As primeiras dificuldades e primeiros
progressos marcam uma segunda (8)
etapa no progresso humano ao longo da história. Dentre elas podemos citar:
os animais ferozes, a duração das estações, a incerteza quanto à abundância
de alimentos, fenômenos naturais em geral – atividades vulcânicas e
dilúvios. O aumento lento e gradual da densidade demográfica e o exercício
da liberdade é um outro complicador desse quadro. Aí, propriamente dito,
começa a história da humanidade. Desenvolve-se uma imaginação, ainda
elementar, a qual se exprime por meio das primeiras invenções e certos usos
– arco e flecha, a funda, o dardo, a linha e o anzol, além da utilização do
fogo. Abandona-se o estado
de plena passividade e “commence à prendre des initiatives et à produire
les premiers éléments d’une culture artificielle”(9). Segue-se
o seguinte caminho: percepção de certas relações, primeiras idéias, muitas
sensações e “razão sensitiva”(10).
O homem descobre semelhanças com outros homens, aparece o interesse
calculado; daí surge o interesse comum; apesar de tudo, ainda é uma
associação rudimentar. Essa associação não dá origem a uma sociedade
estável, ela ainda é provisória, com muita liberdade e desprovida de
qualquer tipo de obrigação. Percebemos a existência de um horizonte
“fluído” entre a ajuda e a luta, entre interesses comuns e rivalidades.
Além do mais, não há propriamente idéia moral. Surge o amor de si a partir
da imagem do seu semelhante e também, os rudimentos da piedade. O homem,
ainda, permanece despreocupado com o futuro. Já não é um solitário, apesar
de disperso. Nesse período os homens morariam em cabanas rústicas, vivem da
caça e começam agregar-se em núcleos familiares.
Na infância do mundo vários
elementos do período anterior sofrem acentuada aceleração (11).
Produz-se uma primeira revolução: a revolução social. As famílias estabelecem-se,
solidificam-se e distinguem-se. Dentro do núcleo familiar há liberdade e
reciprocidade afetiva. A vida segue sendo elementar e solitária, não em
termos de indivíduo, mas de família. “Além de si mesmos e de sua
família, todo universo nada significava para eles” (12).
O nível das construções e dos equipamentos é aperfeiçoado, os mesmos
tornam-se uma propriedade - refere-se ao objeto fabricado com as próprias
mãos. Com a propriedade, segue-se um novo itinerário nas relações entre os
homens: diferença, exclusão, defesa, querelas e combates. Por isso que,
segundo Rousseau, apropriação e luta caminham juntas. Estabelecem-se as
primeiras distinções entre os sexos, cabendo às mães os cuidados com a
cabana e com os filhos. Criam-se certas comodidades e que ao desfrutá-las
gera-se o hábito de usá-las regularmente e, por conseqüência, novas
necessidades ou aparência de necessidades. Necessidades artificiais, ou
seja, o primeiro jugo.
As inundações e os abalos sísmicos forçam
os homens a viverem coletivamente, dando início à quarta etapa:
juventude do mundo (13). As pequenas
“nações particulares” derivaram-se de fatores como: famílias reunidas,
determinado estilo de vida e de alimentação, além da influência do clima.
Desenvolve-se, necessariamente, uma linguagem comum. Instituição de novas
relações sociais oriundas de fatores como: várias cabanas agregadas, caça,
combate e vida familiar. Apuram-se os sentimentos e as idéias (14).
Começam a valorizar a opinião do outro, apesar de ainda serem bastante
pragmáticos. Uma moralidade começa a ser desenvolvida. A reflexão une-se à
socialização. O homem torna-se juiz do próximo, acontecem as primeiras
vinganças, perde-se a inocência dos primeiros tempos. Estima e menosprezo
fazem-se mais presentes; dessas diferenças surgem as desigualdades. Até
mesmo a justiça gera a desigualdade, pois não é nem distributiva nem
corretiva para todos, visava à manutenção das diferenças entre os fortes e
os fracos. Apesar de tudo, a razão e o instinto preservam-se em certo
equilíbrio. O homem encontra-se eqüidistante tanto do inferno da sociedade
civil quanto do paraíso do estado de natureza. Ele tem a espontaneidade do
homem selvagem com a habilidade inata de perfeccionar suas faculdades
tipicamente humanas. O homem que já fora predominantemente caçador, aqui se
torna, também, um pastor. O homem vive numa certa indolência,
preguiçosamente. Reúnem-se ao redor de fontes de água e/ou grandes
fogueiras para celebrarem suas festas e dançarem. O constante crescimento
populacional e o acumulo de bens e víveres, levam todos a um estado gradual
de penúria. A propriedade torna-se uma instituição.
Uma nova etapa inicia-se. A linguagem
encontra-se suficientemente desenvolvida para que alguém possa afirmar:
“isso é meu”. Funda-se, nessa época, a verdadeira sociedade civil, marcada
pelo trabalho e pela propriedade (15).
Uma nova seqüência de eventos se dá: trabalho de muitos, desigualdade,
subordinação e servidão. Daí a corrupção, a miséria e a maldade. Inventa-se
a metalurgia e a agricultura, ambas caminharam juntas. Ao trabalhar a
terra, reforça-se a noção de propriedade, e por sua vez, a idéia de uma
justiça para garantir a posse e o usufruto. O caminho para todas as
misérias e desigualdades torna-se potencialmente possíveis. O forte fica
mais fortalecido, pois o enfraquecimento do povo e o engrandecimento das
instituições garantiram esse novo status quo. A ociosidade e a
indolência são reprimidas pelo trabalho. O homem “antes de pensar em
viver feliz, tinha-se de pensar em viver”(16),
torna-se um meio para um fim que ele quase sempre desconhece e que reforça
o mecanismo da desigualdade. Até porque as necessidades para serem
satisfeitas requerem trabalhos, que por sua vez leva as penas.
Essas
penas conduzem os homens ao terrível estado de guerra (17).
Aqui Rousseau aproxima-se do estado de guerra de Hobbes (18).
O crescimento do processo de desigualdade conduz a todos os males
individuais e sociais. As novas necessidades e a imaginação – ambas
insaciáveis - conduzem os homens a viverem ao nível da opinião e não da
realidade. Na desigualdade tudo é permitido. O amor-próprio gera paixões e
rivalidades de classes, busca-se a reputação e a glória. A desigualdade
conduz à subordinação, que ao seu tempo leva-nos à verdadeira alienação. As
diferenças entre o selvagem e o civilizado reforçam esse estado de
alienação: “o selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora
de si, só sabe viver baseando-se na opinião dos demais e chega ao
sentimento de sua própria existência quase que somente pelo julgamento
destes”(19). Dominação e servidão
tornam-se os paradigmas nas relações entre os homens.
O
contrato social e sua dissolução é a última etapa desse percurso
histórico (20). É fase da história escrita, ou
seja, pode ser efetivamente datada. Nesse contexto, a decomposição das
sociedades estabelecidas, além de numerosas, pode ser observada
factualmente. A fragmentação e a corrupção das nações derivam da existência
do homem em sociedade. O contrato social adquire uma dupla face, oscila
entre desnaturar e “renaturar”. A lei e a propriedade são as bases de um
primeiro progresso da desigualdade, nela o rico fica mais forte e o pobre
mais fraco. A instituição da magistratura, visando ao equilíbrio e à
observação das deliberações do povo; mostra-se contraditório ao seu objetivo
primeiro, pois os poderosos são os escolhidos para esses cargos, o que
torna o uso – abuso e desequilíbrio - do poder legítimo. Entretanto, tal
situação, aliada à ambição, leva à formação de facções entre os próprios
poderosos, logo, conflitos e até mesmo guerras acontecem. Os magistrados,
no uso do poder, tornam-se tiranos e o povo, servos submissos. É uma nova
forma de contrato, é um pacto de submissão. Esse pacto de submissão é uma
modalidade de controle social e manutenção da desigualdade. A princípio
fundava-se numa fé recíproca, a qual se corrompeu gerando um contrato de
sujeição. Por isso, para Rousseau, o poder arbitrário nem é concedido nem é
legítimo. Nele o déspota só é déspota enquanto ele for o mais forte. Este é
reino da força bruta e do retorno ao pior dos estados de guerra.
Desnaturar
o homem até a sua raiz, tal missão é atribuída às novas instituições
políticas concebidas a partir de um contrato social efetivamente autêntico.
Essa tese justifica o relevante papel de continuidade temática do
pensamento rousseauniano no Contrato
Social, contudo, não é um dos objetivos da presente exposição.
(4) ROUSSEAU,
Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens,
p. 52. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos
da Desigualdade entre os Homens e Discurso sobre as Ciências e as Artes.
São Paulo: Nova Cultural, 2000. Vol. II.
(9) POLIN, Raymond. La politique de la
solitude. Essai sur J.-J. Rousseau. Paris: Sirey,
1971, p. 260.
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