Volta

 

História: a questão em Rousseau

 

Adriano Eurípedes Medeiros Martins

Universidade Federal de Minas Gerais

 

A história é o meio no qual age a liberdade humana, ela não pode ser substituída pela Providência (1), pois, a mesma constitui-se um espaço aberto para a liberdade natural do homem. A obra do homem é o “homem moral” ou o “homem do homem”. O homem pode ou perfeccionar-se ou desnaturar-se, enfim, ele pode forjar inclusive uma natureza histórica. O homem tem história, mas não um destino. É uma liberdade aberta, desprovida de determinações, é a priori completamente indeterminado. Apesar de indeterminada, a história, progride. No Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens - ou Segundo Discurso -, o homem na qualidade de obra de si mesmo encontra-se “desnaturado”; em contrapartida, o homem da natureza – inocente e feliz - não tem história, pois ao viver isolado permanece sempre o mesmo, não há progresso senão em sociedade. A história (2) é um meio para ensinar a moral e não possui sua própria finalidade enquanto ciência. A história deforma a verdade sobre o homem, e o leitor corre o risco de se deixar guiar pelo julgamento do historiador e de não ver senão pelos olhos de outro, de não aprender a julgar por ele mesmo o passado, mas o presente. Isto é, deveríamos aprender a tratar, nós mesmos, os princípios constantes da natureza humana que se manifestam na história. A história tem o seu valor ao permitir que os fatos falarem pelo homem, pois a retórica humana não é capaz de expressar com exatidão e isenção sua situação e seu determinado contexto histórico. Com a história devemos aprender a distinguir a verdade da aparência, os homens tais como eles são do que eles querem parecer. Trata-se de conjecturar o que os homens são de fato em seu estado de natureza (3), tendo como parâmetro a essência de homem. “Não se devem considerar as pesquisas, em que se pode entrar neste assunto, como verdades históricas, mas somente como raciocínios hipotéticos e condicionais, mais apropriados a esclarecer a natureza das coisas do que a mostrar a verdadeira origem(4). É uma história da espécie humana, na qual consideraremos – outras vezes imaginaremos – os traços essenciais de sua natureza originaria. Entre o passado e o agora, entre o homem natural e o homem contemporâneo, existe um espaço para compreendermos como o homem se faz, e compreendendo sua habilidade de transformação. Nesse sentido, as contradições e os conflitos do mundo contemporâneo são expressões culminantes da antinomia que atinge a humanidade, não em sua “natureza”, mas em sua “história”. A história é a testemunha não apenas da grandeza do homem e de sua razão, mas também de sua decadência.

O Ensaio sobre a Origem das Línguas e o Segundo Discurso oferecem-nos uma seqüência plausível para distinguirmos as várias etapas desse progresso humano, a qual relata as etapas do desenvolvimento individual e sócio-político, do homem ao cidadão. Sabemos que tudo se inicia com o homem no estado de natureza, passando pelo contrato social, chegando à sociedade civil. Vejamos em melhores detalhes.

A primeira refere-se à “solidão na abundância(5); nessa etapa a terra lhe oferecia tudo que o homem necessitava; ou ele adequou-se ao que a natureza abundantemente lhe oferecia. O instinto humano conduziu-o à satisfação de suas poucas necessidades, pois eram elementares e visavam estritamente a sua própria conservação. Por meio do instinto o homem encontra-se em concordância com a natureza e com seus apetites. Mostra-se, em linhas gerais, desprovido de idéias sobre o futuro, sem curiosidade e parca imaginação. Sente apenas dor e fome, o que, aliás, integra essa sua condição meio-humana e meio-animal, ou de bom-selvagem. “O homem natural é tudo para si mesmo(6), está só e relaciona-se imediatamente com a natureza. Apenas os atos amorosos ocasionais rompem com essa solidão absoluta; apesar de não existirem elos afetivos, filiais ou familiares. O homem natural é insociável, ele não comercializa com os demais. “O efeito das primeiras necessidades consistiu em separar os homens e não em aproximá-los(7). Além do mais, não há necessidade de comunicação – falada ou gestual. Não há ainda sequer noção do bem e do mal.

As primeiras dificuldades e primeiros progressos marcam uma segunda (8) etapa no progresso humano ao longo da história. Dentre elas podemos citar: os animais ferozes, a duração das estações, a incerteza quanto à abundância de alimentos, fenômenos naturais em geral – atividades vulcânicas e dilúvios. O aumento lento e gradual da densidade demográfica e o exercício da liberdade é um outro complicador desse quadro. Aí, propriamente dito, começa a história da humanidade. Desenvolve-se uma imaginação, ainda elementar, a qual se exprime por meio das primeiras invenções e certos usos – arco e flecha, a funda, o dardo, a linha e o anzol, além da utilização do fogo. Abandona-se o estado de plena passividade e “commence à prendre des initiatives et à produire les premiers éléments d’une culture artificielle(9). Segue-se o seguinte caminho: percepção de certas relações, primeiras idéias, muitas sensações e “razão sensitiva”(10). O homem descobre semelhanças com outros homens, aparece o interesse calculado; daí surge o interesse comum; apesar de tudo, ainda é uma associação rudimentar. Essa associação não dá origem a uma sociedade estável, ela ainda é provisória, com muita liberdade e desprovida de qualquer tipo de obrigação. Percebemos a existência de um horizonte “fluído” entre a ajuda e a luta, entre interesses comuns e rivalidades. Além do mais, não há propriamente idéia moral. Surge o amor de si a partir da imagem do seu semelhante e também, os rudimentos da piedade. O homem, ainda, permanece despreocupado com o futuro. Já não é um solitário, apesar de disperso. Nesse período os homens morariam em cabanas rústicas, vivem da caça e começam agregar-se em núcleos familiares.

Na infância do mundo vários elementos do período anterior sofrem acentuada aceleração (11). Produz-se uma primeira revolução: a revolução social. As famílias estabelecem-se, solidificam-se e distinguem-se. Dentro do núcleo familiar há liberdade e reciprocidade afetiva. A vida segue sendo elementar e solitária, não em termos de indivíduo, mas de família. “Além de si mesmos e de sua família, todo universo nada significava para eles(12). O nível das construções e dos equipamentos é aperfeiçoado, os mesmos tornam-se uma propriedade - refere-se ao objeto fabricado com as próprias mãos. Com a propriedade, segue-se um novo itinerário nas relações entre os homens: diferença, exclusão, defesa, querelas e combates. Por isso que, segundo Rousseau, apropriação e luta caminham juntas. Estabelecem-se as primeiras distinções entre os sexos, cabendo às mães os cuidados com a cabana e com os filhos. Criam-se certas comodidades e que ao desfrutá-las gera-se o hábito de usá-las regularmente e, por conseqüência, novas necessidades ou aparência de necessidades. Necessidades artificiais, ou seja, o primeiro jugo.

As inundações e os abalos sísmicos forçam os homens a viverem coletivamente, dando início à quarta etapa: juventude do mundo (13). As pequenas “nações particulares” derivaram-se de fatores como: famílias reunidas, determinado estilo de vida e de alimentação, além da influência do clima. Desenvolve-se, necessariamente, uma linguagem comum. Instituição de novas relações sociais oriundas de fatores como: várias cabanas agregadas, caça, combate e vida familiar. Apuram-se os sentimentos e as idéias (14). Começam a valorizar a opinião do outro, apesar de ainda serem bastante pragmáticos. Uma moralidade começa a ser desenvolvida. A reflexão une-se à socialização. O homem torna-se juiz do próximo, acontecem as primeiras vinganças, perde-se a inocência dos primeiros tempos. Estima e menosprezo fazem-se mais presentes; dessas diferenças surgem as desigualdades. Até mesmo a justiça gera a desigualdade, pois não é nem distributiva nem corretiva para todos, visava à manutenção das diferenças entre os fortes e os fracos. Apesar de tudo, a razão e o instinto preservam-se em certo equilíbrio. O homem encontra-se eqüidistante tanto do inferno da sociedade civil quanto do paraíso do estado de natureza. Ele tem a espontaneidade do homem selvagem com a habilidade inata de perfeccionar suas faculdades tipicamente humanas. O homem que já fora predominantemente caçador, aqui se torna, também, um pastor. O homem vive numa certa indolência, preguiçosamente. Reúnem-se ao redor de fontes de água e/ou grandes fogueiras para celebrarem suas festas e dançarem. O constante crescimento populacional e o acumulo de bens e víveres, levam todos a um estado gradual de penúria. A propriedade torna-se uma instituição.

Uma nova etapa inicia-se. A linguagem encontra-se suficientemente desenvolvida para que alguém possa afirmar: “isso é meu”. Funda-se, nessa época, a verdadeira sociedade civil, marcada pelo trabalho e pela propriedade (15). Uma nova seqüência de eventos se dá: trabalho de muitos, desigualdade, subordinação e servidão. Daí a corrupção, a miséria e a maldade. Inventa-se a metalurgia e a agricultura, ambas caminharam juntas. Ao trabalhar a terra, reforça-se a noção de propriedade, e por sua vez, a idéia de uma justiça para garantir a posse e o usufruto. O caminho para todas as misérias e desigualdades torna-se potencialmente possíveis. O forte fica mais fortalecido, pois o enfraquecimento do povo e o engrandecimento das instituições garantiram esse novo status quo. A ociosidade e a indolência são reprimidas pelo trabalho. O homem “antes de pensar em viver feliz, tinha-se de pensar em viver(16), torna-se um meio para um fim que ele quase sempre desconhece e que reforça o mecanismo da desigualdade. Até porque as necessidades para serem satisfeitas requerem trabalhos, que por sua vez leva as penas.

Essas penas conduzem os homens ao terrível estado de guerra (17). Aqui Rousseau aproxima-se do estado de guerra de Hobbes (18). O crescimento do processo de desigualdade conduz a todos os males individuais e sociais. As novas necessidades e a imaginação – ambas insaciáveis - conduzem os homens a viverem ao nível da opinião e não da realidade. Na desigualdade tudo é permitido. O amor-próprio gera paixões e rivalidades de classes, busca-se a reputação e a glória. A desigualdade conduz à subordinação, que ao seu tempo leva-nos à verdadeira alienação. As diferenças entre o selvagem e o civilizado reforçam esse estado de alienação: “o selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de si, só sabe viver baseando-se na opinião dos demais e chega ao sentimento de sua própria existência quase que somente pelo julgamento destes(19). Dominação e servidão tornam-se os paradigmas nas relações entre os homens.

O contrato social e sua dissolução é a última etapa desse percurso histórico (20). É fase da história escrita, ou seja, pode ser efetivamente datada. Nesse contexto, a decomposição das sociedades estabelecidas, além de numerosas, pode ser observada factualmente. A fragmentação e a corrupção das nações derivam da existência do homem em sociedade. O contrato social adquire uma dupla face, oscila entre desnaturar e “renaturar”. A lei e a propriedade são as bases de um primeiro progresso da desigualdade, nela o rico fica mais forte e o pobre mais fraco. A instituição da magistratura, visando ao equilíbrio e à observação das deliberações do povo; mostra-se contraditório ao seu objetivo primeiro, pois os poderosos são os escolhidos para esses cargos, o que torna o uso – abuso e desequilíbrio - do poder legítimo. Entretanto, tal situação, aliada à ambição, leva à formação de facções entre os próprios poderosos, logo, conflitos e até mesmo guerras acontecem. Os magistrados, no uso do poder, tornam-se tiranos e o povo, servos submissos. É uma nova forma de contrato, é um pacto de submissão. Esse pacto de submissão é uma modalidade de controle social e manutenção da desigualdade. A princípio fundava-se numa fé recíproca, a qual se corrompeu gerando um contrato de sujeição. Por isso, para Rousseau, o poder arbitrário nem é concedido nem é legítimo. Nele o déspota só é déspota enquanto ele for o mais forte. Este é reino da força bruta e do retorno ao pior dos estados de guerra.

Desnaturar o homem até a sua raiz, tal missão é atribuída às novas instituições políticas concebidas a partir de um contrato social efetivamente autêntico. Essa tese justifica o relevante papel de continuidade temática do pensamento rousseauniano no Contrato Social, contudo, não é um dos objetivos da presente exposição.

Notas

 

(1) A Providência estabelece as condições para avaliar os méritos e deméritos dos homens, e se a natureza humana estiver em harmonia com a realidade exterior, então ele pode alcançar e desfrutar da felicidade natural.

(2) O método histórico de Rousseau aceitava, devido a imprecisões documentais, as hipóteses interpretativas provadas tão somente por uma maior ou menor capacidade para esclarecer e/ou explicar de modo coerente e verossímil o progresso dos fatos dados.

(3) O estado de natureza não é histórico, apenas evolutivo.

(4) ROUSSEAU, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p. 52. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens e Discurso sobre as Ciências e as Artes. São Paulo: Nova Cultural, 2000. Vol. II.

(5) Cf. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p. 87/8. Cf. Ensaio sobre a Origem das Línguas, cap. II.

(6) ROUSSEAU. Emílio, I, p. 11. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

(7) ROUSSEAU. Ensaio sobre a Origem das Línguas, cap. II, p. 265. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social e Ensaio sobre a Origem das Línguas. São Paulo: Nova Cultural, 2000. Vol. I.

(8) Cf. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p. 87 e 88-90.

(9) POLIN, Raymond. La politique de la solitude. Essai sur J.-J. Rousseau. Paris: Sirey, 1971, p. 260.

(10) Razão sensitiva ou pueril em oposição à razão intelectual ou humana.

(11) Cf. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p. 90/1.

(12) ROUSSEAU. Ensaio sobre a Origem das Línguas, cap. IX, p. 288.

(13) Cf. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p. 90/3.

(14) Idéias de valores, de direitos, de ofensas, de injúrias, de vinganças e de punições.

(15) Cf. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p. 93/6.

(16) ROUSSEAU. Ensaio sobre a Origem das Línguas, cap. X, p. 300.

(17) Cf. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p. 96/9.

(18) A tese é parecida com a de Hobbes. Contudo, diferencia-se na medida em que Rousseau considera essa etapa característica do homem em sociedade, mesmo sendo uma sociedade nascente e complexa. O estado de guerra em Hobbes é anterior ao estado civil.

(19) ROUSSEAU. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p. 115.

(20) Cf. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p. 99-102 e 109-113.

 

 

 

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