Volta
A relevância da piedade na sedimentação
da
responsabilidade moral do homem
Alexsandra Sombra Lourenço
Universidade Estadual do Ceará
No período iluminista
ou século das luzes acontecia para a história do pensamento um desenrolar
de idéias nas quais o homem passava a ser referencial. Muitos filósofos
preocupados em compreender o horizonte humano desde sua mais remota origem,
recorriam a hipóteses tomando por base a razão como possibilidade de
clarificar a problemática da vida em todos os seus aspectos: sociais,
políticos ou científicos.
Levado por essa
perspectiva está também Rousseau que buscava na retomada por um estado
original a espécie humana a possibilidade para compreensão da condição de
corrupção social na qual o homem estava inserido. Rousseau justifica sua
busca pela origem no Prefácio do Discurso
sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, onde mostra
a necessidade de reconstruir a imagem do homem, corrompida ao longo dos
anos pela historia:
Como a estátua de Glauco, que o tempo, o mar e as intempéries
tinham desfigurado de tal modo que se assemelhava mais a um animal feroz do
que a um deus, a alma humana, alterada no seio da sociedade por milhares de
causas sempre renovadas, pela aquisição de uma multidão de conhecimentos e
de erros, pelas mudanças que se dão na constituição dos corpos e pelo
choque contínuo das paixões, por assim dizer mudou de aparência a ponto de
tornar-se quase irreconhecível e, em lugar de um ser agindo sempre por
princípios certos e invariáveis, em lugar dessa simplicidade celeste e
majestosa com a qual seu autor a tinha marcado, não se encontra senão o
contraste disforme entre a paixão que crê raciocinar e o entendimento
delirante. (1)
Para buscar a
origem humana, Rousseau deixa de lado toda idéia livresca lançando um
desafio a si mesmo, que é despir-se de todo formalismo social e buscar um
estado de pureza tal que o leve à compreensão das “verdadeiras
necessidades, dos princípios fundamentais dos deveres, da origem da
desigualdade, dos fundamentos do corpo político, do direito natural”(2),
assim como uma infinidade de questões que ainda não haviam sido bem
esclarecidas sobre o homem e sua condição social.
O estado de
natureza seria, segundo ele, um estado pré-social, hipotético, (pois nem
mesmo Rousseau sabe se de fato existiu), no qual o homem é apresentado com
uma vida simples, rebuscada a poucas necessidades (alimentação, descanso e
cópula), com a vida limitada às sensações puras e vivendo de acordo com as
condições que a natureza impunha sendo as únicas operações da sua alma eram
querer e não querer, desejar e temer.
No estado original
de natureza, apresentado pelo genebrino, o homem detém total liberdade, sendo
dono e senhor de si e de seu próprio destino, encontrando obstáculos postos
pela natureza mas que podem ser facilmente vencidos. Não há regras, leis e
imposições, não sendo o homem subjugado a ninguém a não ser a si mesmo. A
única preocupação que possui é com sua conservação, de modo que todas as
suas atitudes se concentram em torna dela.
Os sentimentos que
existem nesse estado são o amor de si
mesmo, que promove a busca pela conservação da vida, e a piedade natural, um sentimento
também comum a todos os animais que faz com que eles não hajam com
crueldade, mas modera o amor de si na busca da conservação.
Se considerarmos
válidos os atos morais regulados por um caráter normativo, podemos dizer
que o estado de natureza é um estado de amoralismo integral; mas se
tomarmos a piedade natural como referencial de conduta, mesmo que
indiretamente, observaremos certa pré-disposição para um agir virtuoso,
isso também levando em consideração a necessidade de conservação. Essa
piedade natural é tida como um impulso interior que se compadece diante da
dor ou sofrimento alheio, que reconhece a própria fragilidade diante de uma
situação de desgraça alheia. Pela dor do outro, na condição de miséria,
brota a disposição para a benevolência. De acordo com Rousseau enquanto o
homem resistir ao impulso interior natural da comiseração, jamais fará
qualquer mal a outro homem, nem mesmo a um ser sensível, a não ser que,
encontrando em jogo sua conservação, seja obrigado a dar preferência a si
mesmo.
A piedade, esse
atributo natural, inerente ao simples fato de existir, condiciona todos os
animais a uma mansidão e um estado de paz, fazendo com que nenhum deles,
inclusive o homem, sinta prazer em ver o outro sofrer, ou tirar proveito em
benefício próprio da desgraça alheia. É um moderador natural posto no
coração humano de forma a mover sua conduta.
Algumas condições
naturais eram fundamentais para validar e efetivar esse dispositivo
natural: a tranqüilidade das paixões e a ignorância do vício. O ato de
piedade se dava àquele que estava em situação de dor e sofrimento, numa
condição inferior de modo a despertar a benevolência e a comiseração. Ver o
outro numa situação de infelicidade ou angústia refletia um quadro no qual
o homem não gostaria de estar, que mostrava ameaça à vida, que era o bem
maior de todos.
De forma não
reflexiva, mas como lei natural, esse sentimento provoca ‘certa
responsabilidade’ com o outro, não se tratando, no entanto, de um caráter
individual, mas coletivo, no qual se vislumbrava toda espécie. Como não
haviam relações no estado de natureza, não havia o contato direto entre os
homens de modo que pudessem se considerar mutuamente como indivíduos, coisa
que se dá nas relações efetivadas.
Mas a faculdade de
se aperfeiçoar promove aos poucos a saída do homem desse estado de
ignorância, conduzindo-o gradativamente ao desenvolvimento das luzes. O
progresso se inicia com o surgimento da indústria e culmina na criação da
sociedade.
Desse progresso
surge o estado de civilização que não suprime a natureza, mas passa a estabelecer
com ela conflitos permanentes que nascem devido as relações criadas entre
os homens, através das normas sociais, e entre a natureza, através da
relação de trabalho. A propriedade, a instituição das leis e do governo,
bem como toda desigualdade acarreta profundas mudanças nas relações
desenvolvidas entre os homens e a natureza. O aumento constante das
necessidades e a busca por bens
culminaram ainda na alienação da liberdade.
O nascimento da
sociedade traz consigo os costumes, a polidez, a necessidade da estima
pública, tornando as relações entre os homens enganosas e corrompidas em
decorrência da arte de agradar, de modo que os todos se adéquam ao mesmo
molde. E na sociedade estabelecida a instituição do governo legitima a voz
do mais forte.
Os
progressos oriundos da razão resultaram em alterações profundas na
estrutura dos relacionamentos e no comportamento do homem. A comparação e a
busca pelo melhor, passaram a reger as atitudes, sendo a polidez a forma de
manter toda aparência e conquista de ideais, gerando conseqüentemente a
frivolidade e apatia.
Os sentimentos
naturais se esvaem junto com o estado de natureza, pois as falhas,
carências e sofrimentos são encobertos pela arrogância e orgulho. Como
manifestar bondade diante de alguém em condição superior, com bem estar e
supremacia? A desigualdade, em sua essência mais intrínseca, rompe com o
dispositivo de bondade, pois aliena a liberdade, suprimindo a vontade e a
autonomia. A bondade se esconde sob a máscara da polidez não existindo em
sua essência mais intima e a preocupação com a conservação do outro se
condiciona à comparação.
Uma nova concepção
na forma de vida, expressa pela escravidão, retira o homem de sua própria
essência o esvaziando e o tornando incapaz de agir com comiseração, já que
o agir procede da condição de escolha, situação alterada pela desigualdade.
Subjugado e oprimido não há como optar por ser bondoso; ao invés de
socorrer, o homem se encontra em condição de ser socorrido.
Nesse transtorno
ao qual se submete a alma humana o reconhecimento de si mesmo através do
sofrimento alheio subjaz com a autonomia. De responsável pela espécie, o
homem passa a indiferença e incapacidade de socorro; a alienação lhe rouba
a capacidade de escolha.
Na odisséia da
história humana a grande vilã foi certamente a desigualdade, que
estabelecida de forma arbitrária, por meio de um acordo tácito e enganoso,
se tornava agora legitima pela razão que enaltecia os progressos,
desconsiderando a condição primeira do homem e o tornando cada dia mais
estranho a si mesmo.
Seria possível
reativar o dispositivo natural corrompido ao longo da história? Rousseau
aponta uma possibilidade política, descrita no Contrato Social, onde o homem passa a ser o objeto mais
importante e a liberdade a principal condição de vida no seio social. Para
tanto, se pensa num acordo consciente e justo onde todos participam na
elaboração e execução das leis. Essa participação confere ao homem
igualdade política e autonomia para expressar sua vontade naquilo que
espera ser o bem, trazendo de volta a possibilidade de uma bondade baseada
na responsabilidade e respeito pelo outro, enquanto individuo e enquanto
espécie. Por meio do contrato social o homem poderia rever suas
características naturais no tocante à liberdade e a igualdade, podendo
então agir com bondade, sendo novamente responsável por outros indivíduos à
medida que colabora para a conservação de toda espécie.
Sem essas duas prerrogativas (Igualdade e
Liberdade) a bondade desvanece e sucumbe diante da falácia racional que
teorizando não garante a prática de uma moralidade voltada para a
conservação e bem estar de todos. Não bastava aludir à ciência e ao
progresso os atos de justiça. Era preciso reaver a condição do homem
enquanto ser, enquanto indivíduo em condições de igualdade e liberdade.
Isso se daria através de uma profunda transformação na política e na
sociedade. Retomar e reconsiderar os sentimentos humanos seria a base para
uma política de responsabilidade pela espécie e pela vida.
Notas
(1) ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine et les fondemens de l’inégalité parmi les homes.
Œuvres complètes, v I, p.532.
(2) Id., ibid., p.534
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