Volta
O legislador da sociedade familiar
Carlo Curvelano Freire
Universidade Estadual
de Campinas
Em seu Discurso
Sobre Economia Política Rousseau distingue dois tipos de economia. A
primeira, a particular ou doméstica e a segunda, a geral ou política. Esta distinção é
importante pois o autor sabe que as sociedades familiares formaram-se antes
das em forma de Estado, e que estas últimas devem mais à hierarquia
familiar do que gostaria de acreditar um observador que compara uma e outra
procurando novidades na segunda. Rousseau constata que, da economia
doméstica, a geral empresta práticas para gerenciar seu próprio
funcionamento. Contudo, algumas destas práticas não deveriam existir no
nível da economia política ou geral, pois através delas o Estado promove a
desigualdade. Podemos dizer que Rousseau nos permitiria sustentar a tese de
que é numa hierarquia de tipo familiar que se sustenta o poderio da
monarquia, e por isso a sociedade paga caro, já que uma das desigualdades
sociais, diferença de condição entre ricos e pobres, ou aumenta ou não
dirime pois no exemplo radical de Rousseau, o monarca governa uma nação
pensando em si e no poderio de sua família, assim como poderia pensar um
simples pai de família. Aí esta o paradoxo. O déspota é um pai de família
autoritário, e mesmo agindo como pode agir um pai de família, atua na esfera
errada.
Rousseau
estabelece separação ao dizer, ainda no Discurso sobre economia política,
que as regras para a condução de uma família não devem servir para um
Estado. O empréstimo que a ordem política faz da doméstica para se
sustentar é inadequado, pois ambas as economias diferem em tamanho, na
quantidade e qualidade dos membros que movimentam uma e outra. Na família o
pai cuida das crianças que mais fracas e em formação carecem de suas
imposições. Já no Estado monárquico, o cuidado com os cidadãos, o autor
alerta, não pode vir deste tipo de instinto de preservação individual que
faz da educação um instrumento para a manutenção deste indivíduo de patente
mais elevada. São leis adequadas que devem guiar um povo, que deve ser
considerado como um conjunto formado por iguais. Por disso o chefe de um
governo só poderia ser anunciado após processo de escolha.
O pai deve mandar
em sua família. Deve ter o direito de voz de comando nos momentos críticos.
Os filhos devem obediência ao pai: primeiro por necessidade e depois por
gratidão. Não deveria haver nada que se parecesse com isto numa sociedade
política, pois o líder, quando age como pai, amplia as garantias de seus
direitos, impondo aos concidadãos um hábito de ordem familiar que não lhes
trará benefício algum. Um povo nunca poderia ser grato a seu tirano pelo
mesmo motivo que os filhos educados por um pai autoritário. Quando ocorre
alternância de poder num Estado comandado por uma família o esquema de
usurpação apenas se perpetua. O povo não recebe nada de volta quando ocorre
troca de reis, apesar da submissão ao pater familias real. A esta
troca o povo apenas se submeterá. Se a liderança é hereditária, como ocorre
com a sucessão de reis, uma sociedade acaba sendo governada por uma
criança, fato que se sustenta apenas pelos interesses das famílias reais.
Estar sob o jugo das vontades de um déspota é não possuir uma sociedade bem
constituída. Rousseau afirma que “abusos são inevitáveis e suas
conseqüências fatais em toda sociedade em que o interesse público e as leis
não possuem força natural, e são sempre atacados por interesses pessoais e
as paixões dos membros do governo”(1). Lembremo-nos que toda estrutura social,
para Rousseau, remete a um tempo em que o estado de solidão e de bondade irrestritas
já havia passado. Quando aí fala de força natural, lembra que o resultado
do conjunto de leis deve corrigir problemas causados pelo crescimento da
desigualdade, deve motivar os homens ao respeito mútuo, lembrá-los do
exórdio da historia humana sinalizada pelo sentimento de comiseração. A
proximidade que sugere com a natureza em seus exemplos de comunidade, deve
trazer a seus membros mais tranqüilidade, maior apego ao bem comum e
desprendimento dos supérfluos.
O instinto de
preservação, mesmo que contaminado pelos valores sociais, pode guiar o pai
em sua tarefa de preservação da família. Mas o mesmo não deveria acontecer
com o chefe de Estado que só promoverá a ruína coletiva ao ouvir a voz de
suas paixões. O guia supremo do Estado deve ser a lei, que na metáfora de
Rousseau, juntamente com os costumes de um povo, representa o cérebro do
corpo político. Deste corpo político o poder soberano é a cabeça, os juízes
e magistrados os órgãos, o comércio, a indústria e a agricultura são a boca
e o estômago, a renda pública o sangue, a economia o coração, e os cidadãos
representam todo o corpo, pois fazem o conjunto se mover e trabalhar.
Quando um ganha muito mais do que os outros no Estado, esta supremacia só
se sustenta por um abuso de poder que faz do acumulo prática contínua,
desalojando recursos que deveriam ser destinados à maioria, enfraquecendo o
povo, o verdadeiro soberano. Desta forma, se nos servem as metáforas de
Rousseau, um déspota faz com que a quantidade do fluxo de sangue (renda
pública) diminua, comprometida pelo mau desempenho do coração (da
economia), o que enfraquece o corpo político, que sem o fluxo de sangue
correndo adequadamente não teria forças para trabalhar.
Termino esta
primeira parte da exposição com uma conclusão do Discurso sobre economia
política que, em referencia a seu próprio desenvolvimento, apresenta
claramente a separação de domínios de que falamos ao longo desta exposição:
De tudo isso que acabou de ser dito, segue-se que a economia
pública, da qual trato, foi adequadamente distinguida da economia privada,
o Estado não tendo nada em comum com a família exceto as obrigações nas
quais suas cabeças caem por terem que fazer as duas sociedades felizes, as
mesmas regras de conduta não podem ser aplicadas às duas (2).
No prefácio de seu
romance Rousseau atesta o caráter moralizante das cartas de ficção que
escrevera. Através dos relatos de
seus personagens, que deveriam parecer imaturos aos que iniciassem a
leitura com olhar crítico, o autor mostra com que calma e agudeza racional
preparava-se a mudança para que uma comunidade fosse continuamente
reorganizada. Rousseau escrevia para edificar seus leitores. E fez isto sem
abandonar as peculiaridades de seu estilo, isto é, fez crítica social, usou
sua biografia como constante referência, deixou que o sentido figurado,
antes que um próprio das palavras, o guiasse em sua retórica, e por isso
permitiu a contaminação das metáforas de sua teoria política em benefício
de seu discurso moral e de ficção.
No Discurso
sobre economia política encontramos a figura paterna inúmeras vezes.
Também na Dedicatória que escreve à República de Genebra, elogio que
precede o Discurso sobre a desigualdade entre os homens, dela não
esquece. Aí lembra de seu próprio pai, homem que o iniciara no hábito das
leituras, cidadão tido por Rousseau como exemplar. Tem-se o ideal paterno
de um lado e seu oposto de outro. Através do fio condutor da figura paterna
podemos ir até o romance de Rousseau para que, comparando dois personagens,
o primeiro o pai de Julie, e o segundo o personagem Wolmar, possamos
destacar as características do legislador. Podemos conduzir esta exploração
com uma provocação comparativa, recapitulando algumas idéias já esboçadas
neste texto. Perceber que o pai de Julie atua como o criticável monarca do Discurso
sobre economia política, seria sustentar que o enredo do romance
nos permite fazer esta conexão, pois ali o Barão D’Etange defende sua
propriedade, defende a tradição e os costumes familiares, e os vê serem
respeitados quando sente que sua respeitabilidade social não será abalada.
Por ser o pai decide, e uma destas decisões impõe à Júlia. Sua filha
deveria se casar com quem ele escolhê-se. Lembremo-nos ainda de mais um
desenvolvimento do Discurso sobre economia política em que Rousseau
comenta um hábito: os filhos devem obediência a seus pais, pois um dia as
posses paternas, também resultantes
de acordos de negócios, firmados pela palavra empenhada, se destinarão aos
filhos. No romance, quando obedece a seu pai, subindo ao altar com o esposo
escolhido por ele, Julie respeita uma tradição e garante que se perpetuem
os negócios familiares pois a palavra de seu pai continuava como moeda
válida.
Felizmente, como
queria Rousseau, o casamento imposto traria a Julie o compromisso com um outro
tipo de homem. O marido de Julie, o Sr. de Wolmar, se empenharia numa
tarefa bastante diferente da do pai de sua esposa, numa reforma comandada
pela razão tendo como fim o cultivo dos bons sentimentos, o encontro dos
corações e dos indivíduos separados por suas desigualdades.
Saint-Preux, o
antigo professor de Júlia e seu primeiro grande amor, rejeitado pelo pai de
Júlia que não aprovava a relação entre os dois, saíra em longa viagem para
se recuperar do golpe de ter perdido sua amada para um casamento negociado.
Depois de anos de viagens Saint-Preux retorna. Comunica-se com seus amigos
e com seu antigo amor. Júlia, resoluta, impõe como sine qua non a
separação. Mas o próprio Wolmar, atual marido e pai de seus filhos, já
possuía outros planos para os antigos amantes.
Assim como
Rousseau queria, tal personagem possuía todas as características do
legislador do Contrato Social. No capítulo VII do segundo livro do Contrato
Rousseau fala das habilidades do legislador, comparando a habilidade
deste com a dele e de seus leitores. Ali diz que tal indivíduo “deve ter
uma inteligência superior, que visse todas as paixões dos homens e não
participasse de nenhuma delas, que não tivesse nenhuma relação com nossa
natureza e a conhecesse a fundo; cuja felicidade fosse independente de nós
e, contudo, quisesse dedicar-se a nós”(3). Diz ainda:
Aquele que ousa
empreende a instituição de um povo deve sentir-se com capacidade para, por
assim dizer, mudar a natureza humana, transformar cada indivíduo, que por
si mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do qual
de certo modo este indivíduo recebe sua vida e seu ser; alterar a
constituição dos homens para fortificá-la; substituir a existência física e
independente, que todos nós recebemos da natureza, por uma existência
parcial e moral. Em uma palavra, é preciso que destitua o homem de suas
próprias forças para lhe dar outras que sejam estranhas e das quais não
possa fazer uso sem socorro alheio (4).
Julie escreve a
Saint-Preux , carta XX da quarta parte do romance, dizendo que o maior
gosto do Sr. de Wolmar era o de observar. Que ele gostava de julgar os
caracteres dos homens e as ações que via realizar. Julgava-as com sabedoria
e imparcialidade. Fez inúmeros elogios a seu marido, descrevendo seu comportamento
calmo, resultado do raciocínio e da ausência de paixões em seu caráter. Diz
que Milorde Eduardo estava certo em sua apreciação sobre as qualidades de
Wolmar, pois em inteligência era bastante superior a todos eles. A ordem da
administração caseira de seu esposo, afirma Júlia, parecia refletir a
imagem que ele tinha em sua alma e imitava uma ordem estabelecida no
governo do mundo.
Nesta mesma carta começa
a enfraquecer a nuvem de suspeitas que pairava sobre o pai de Júlia aos
olhos de Saint-Preux.. Talvez tenha feito um bem para a própria Júlia o
desrespeito aos seus sentimentos por seu pai, obrigada a casar-se contra a
vontade. Tal nuvem começa a se desfazer também por que uma das tradições da
família já se vê cumprida. Júlia ainda diz nesta mesma carta que ela e seu
marido viviam bem pois os bens de seu pai já haviam se unido aos bens de
seu esposo. Deste acúmulo seu pai recebia apenas pequena pensão.
Na carta XII da quarta
parte do romance Júlia, atônita, divide alegrias e tormentos com sua amiga
Clara. Nesta carta a personagem nos diz como Rousseau recorre às
habilidades do legislador. Em termos do capítulo VII do segundo livro do Contrato
Social, o personagem Wolmar procura oferecer as condições para que
Saint-Preux e Júlia finalmente alterem suas constituições fortificando-as,
para que substituam a sua independência por uma existência parcial e moral.
Júlia afirma a Clara que seu esposo lhe informara sobre as cartas que ela
havia trocado com Saint-Preux, exibindo parte da correspondência à ela. Júlia
também informa a sua amiga que de mãos dadas a ela e a Saint-Preux, o seu
marido - momento em que, nós leitores podemos dizer, se valendo de suas
habilidades de legislador a ele emprestada por seu criador - lhe dissera:
Felicitai-vos,
antes, por ter sabido escolher um homem de bem numa idade em que é tão
fácil enganar-se por ter tido outrora um amante que podeis ter hoje como
amigo sob os olhos de vosso próprio marido. Logo que conheci vossa ligação
estimei-vos um pelo outro. Vi que entusiasmo enganador vos perdera ambos,
ele só age nas almas belas; ele as perde às vezes mas é por uma atração que
somente a elas seduz. Julguei que o mesmo gosto que realizara vossa união a
ela renunciaria logo que se tornasse criminosa e que o vício podia entrar
em corações como os vossos mas não neles lançar raízes(5).
Wolmar age como
agiu pois não poderia tê-lo feito de outra forma. Já estava no seu caráter.
O interesse pela observação e a paciência para a reflexão ele já possuía.
Para que Wolmar conseguisse garantir o respeito à nova sociedade, à sua
família e a de Júlia, era preciso abrir as portas para Saint-Preux desta
maneira especial. Rousseau retrata o legislador em sua força em seu poder
de convencimento, isto é, retrata-o permitindo com que um estranho à sociedade,
se converta numa parte legítima dela, impondo a condição do respeito pela
via do compromisso e da aceitação. O legislador acabava com a mentira,
oferecendo novas condições para que os corações entrassem efetivamente em
contato, mas sob a vigilância tácita na forma de uma confiança associada ao
respeito pelo coletivo familiar.Tal conversão retirava o fardo da dúvida, o
que fora um alívio principalmente para Júlia, pois era imposição de nova
tarefa moral. A família Wolmar iria ser respeitada e Saint-Preux receberia
o prêmio por sua inclusão nesta família.
Rousseau desrespeita a separação de domínios por ele
mesmo definida? Sem dúvida, mas o faz sob certas condições. Tal separação
de domínios é explorada em seu Discurso sobre economia política para
pegar em contra-pé os que justificam o regime despótico. Fala de uma
confusão entre o público e o privado. Mas esta separação entre o que
pertence à esfera da economia doméstica e não à da economia política não
lhe serviu de proibição para usufruto da figura do legislador. Ao iniciar o
romance, para reforçar o caráter moralizante do mesmo, oferece as pistas de
que encenará uma modificação. A ausência de exemplos de conduta no início
não se perpetuaria até o fim do romance. Para estimular a modificação dos
protagonistas necessitaria de alguém com habilidades semelhantes às de um
grande legislador, artífice da vontade geral, cunhada no molde de hábitos e
anseios de uma comunidade.
Notas
(1) Tradução
de trecho das O. C., vol III, p. 243.
(2) Tradução de trecho dos Great Books, vol. 35, p.
368.
(3) Rousseau, Jean-Jacques. O
Contrato Social (1762), in: Os Pensadores, Rousseau 1. Tradução de Lourdes Santos Machado - São Paulo:
Nova Cultural, 1999, p. 109.
(4) Ibid., p. 110.
(5) Rousseau, Jean-Jacques, A
Nova Heloísa. Tradução de
Fulvia M. L. Moreto, Campinas, Editora da Unicamp, p. 429.
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