Volta
Emílio de Rousseau e
as origens ideológicas do discurso da Pastoral da Criança
Cristiane Ferraro
Universidade Estadual do Oeste do Paraná/Foz do Iguaçu
O presente estudo tem como objeto de
pesquisa a análise do discurso sustentador da ação social católica como é
desenvolvida pela Pastoral da Criança, organismo da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB), com base na análise semiótica-interpretativa
de Mikhail Bakhtin. Resulta da dissertação defendida para obtenção do
título de Mestre em Letras, intitulada Emílio vivo no discurso da
Pastoral da Criança: um diálogo contemporâneo.
A linguagem religiosa assume destaque na teoria de
Bakhtin, pois adquire sentidos que ultrapassam suas próprias
particularidades. Esses sentidos, constituídos em determinados contextos
históricos, sociais, políticos e econômicos, pertencem ao campo dos signos,
sujeitos a critérios de avaliação ideológica (BAKHTIN, 2002, p. 32-33). O
domínio do ideológico e o domínio dos signos são coincidentes e
correspondentes. Para Bakhtin, a realidade fundamental da linguagem é a
atividade sóciossemiótica, isto é,
que se dá não entre indivíduos isolados que apenas atualizariam
um sistema objetivo ou apenas expressariam uma subjetividade dada a
priori, mas entre indivíduos socialmente organizados, isto é,
constituídos e imersos nas relações sociais historicamente dadas e das
quais participam de forma ativa e responsiva. (FARACO, 1996, p. 121).
Fundada no dialogismo, a análise
semiótica-interpretativa de Bakhtin orientou as análises aqui propostas.
Trata-se de um método de investigação e de análise que implica em
alteridade, intertextualidade e compreensão responsiva, isto é, a
interpretação dos enunciados.
Bakhtin
especifica que Emílio ou Da Educação de Jean-Jacques Rousseau faz
parte de “uma modalidade específica de gênero romanesco chamado romance
de educação” (BAKHTIN, 2003, p. 217); trata-se de um livro organizado
para promover a educação do homem com um plano de etapas cronológicas de
desenvolvimento educacional do personagem central. Funda-se no aspecto
didático-pedagógico (BAKHTIN, 2003, p. 221).
A
seguir segue o entrecruzamento de discursos, de um lado de Jean-Jacques
Rousseau, no seu tratado pedagógico Emílio, e de outro lado, Zilda Arns
Neumann, através de entrevista concedida à autora em julho de 2004:
A
criança, na pastoral, “é o ser mais importante da natureza” (NEUMANN,
2004), suas características são espontaneidade, autenticidade (“não
mente”), ausência de preconceito e merecem cuidado para não serem
estragadas (NEUMANN, 2004).
[...] se a criança depois tem problemas, os problemas não são
delas, são oriundos da família, do meio ambiente aonde ela vive, por isso é
importante a gente criar a criança como manda a natureza: aleitamento
materno, amor, carinho, oração, pássaros, né, no meio da natureza, porque
ela aí vai ser outra criança, o resto da vida até depois de velho será
muito mais feliz. (NEUMANN, 2004).
Segundo
Rousseau, “uma criança inclina-se portanto naturalmente para a
benevolência” (ROUSSEAU, 1973, p. 233); “que saiba que o homem é
naturalmente bom e julgue o próximo por si mesmo; mas que veja como a sociedade
deprava e perverte os homens” (ROUSSEAU, 1973, p. 263).
A
fundamentação em Rousseau sobre o homem ser por natureza bom, porém
corrompido e pervertido pela sociedade, condiz com uma idealização da
inocência e da integridade infantil (DENT, 1996, p. 48).
Segundo
Zilda Arns Neumann (2004), “uma criança é espontânea, ela por si não mente,
ela diz o que sente mesmo que o outro se ofenda”, o que é confirmado por
Rousseau, “a mentira de fato não é natural às crianças” (ROUSSEAU, 1973, p.
90).
A
integração com a natureza é relatada por Zilda Arns Neumann (2004): “eu me
criei em área rural, né, então escutei pássaros...”, é comentada por
Rousseau como um “encanto a que nenhum homem resiste; um espetáculo tão
grande, tão belo, tão delicioso não deixa ninguém de sangue frio”: em
Rousseau lê-se que “os pássaros em coro se reúnem e saúdam, juntos, o pai
da vida; nesse momento nenhum só se cala; seu pipiar, ainda fraco, é mais
lento e mais doce que durante o resto do dia, ressente-se do langor de um
sereno despertar” (ROUSSEAU, 1973, p. 176).
O
retorno ao campo, à área rural é tema contemplado por Zilda no seguinte
enunciado: “a pessoa para se recuperar, assim no meio de, vamos dizer,
árvores, flores e pássaros, ela tem uma recuperação mais rápida”... e nas
palavras de Rousseau:
Eis mais uma razão para querer educar Emílio no campo, longe
da canalha dos lacaios, os últimos dos homens depois de seus amos; longe
dos maus costumes das cidades, o que o verniz com que se cobrem torna
sedutores e contagiosos para as crianças. (ROUSSEAU, 1973, p. 82).
Ou
ainda: “Trazei-os de volta às suas primeiras residências, onde a
simplicidade campestre deixa as paixões de sua idade desenvolverem-se menos
rapidamente” (ROUSSEAU, 1973, p. 255).
Os
exercícios físicos são outro ponto de convergência no discurso de Zilda
Arns Neumann e Jean-Jacques Rousseau: “de manhã nós íamos a aula normal, e
à tarde era reforço escolar, música, arte e muito esporte, né, muito
esporte à tarde” ou ainda ressalta a importância de as crianças “viverem aí,
pra sentirem, né, serelepes subindo em árvore, as galinhas, correrem por
aí, verem flores” (NEUMANN, 2004), enquanto que Rousseau afirma que “para
fortalecer-lhe a alma, cumpre enrijecer-lhe os músculos [...] é preciso
afazê-la à dureza dos exercícios” (ROUSSEAU, 1973, p. 122), “é preciso que
pule, que corra, que grite quando tem vontade. Todos os seus movimentos são
necessidades de sua constituição que busca fortalecer-se” (ROUSSEAU, 1973,
p. 69).
A
simbiose homem-natureza ocorre pela identidade entre a infância de Zilda
Arns Neumann e os elementos água, fogo, flores, animais na seguinte frase:
“o homem faz parte da Criação de Deus, faz parte da natureza” (NEUMANN,
2004). Rousseau atribui à Deus características como liberdade, bondade e
felicidade próprias da natureza: “Deus, de minha alma, nunca te censurarei
te-la feito à tua imagem, a fim de que eu possa ser livre, bom e feliz como
tu” (ROUSSEAU, 1973, p. 319). Rousseau define Deus como um “ser que quer e
que pode”, um ser “que move o universo e ordena todas as coisas” (ROUSSEAU,
1973, p. 313).
Conforme
Zilda Arns Neumann afirma: “nós fortalecemos a referência Deus. Deus é a
referência”. Uma vez que “pais que não entendem, né, eles não têm
referência. E o jovem que não tem referência é muito triste. Por isso é bom
eles irem à igreja, participarem de grupos de jovens” (NEUMANN, 2004).
Rousseau,
tendo como referência o Deus criador, aconselha a mãe a manter cuidados com
a criança, cultivando-a como uma planta:
É a ti que me dirijo, terna e previdente mãe, que te soubeste
afastar do caminho trilhado e proteger o arbusto nascente contra o choque
das opiniões humanas. Cultiva, rega a jovem planta antes que morra: seus
frutos dar-te-ão um dia alegrias. Estabelece, desde cedo um cinto de
muralhas ao redor da alma de tua criança. Outro pode assinalar o circuito
mas só tu podes erguer o muro”. (ROUSSEAU, 1973, p. 9-10).
Zilda
Arns Neumann (2004) considera que “a educação é muito importante, né, o
carinho, o amor, o aleitamento materno, né, atenção”, “muito do futuro da
pessoa depende da educação da primeira infância, nós, na Pastoral
procuramos educar desde o ventre materno até os seis anos que é a nossa
área da educação” (NEUMANN, 2004). No Guia do Líder, a “Bíblia da
Pastoral”, são encontrados os seguintes enunciados: “O leite da mãe é como
uma transfusão de saúde e amor para o bebê!”, “Feliz o ventre que te trouxe
e os seios que te amamentaram” (Lc 11, 27) (PASTORAL DA CRIANÇA, 2003, p.
57 e 81).
Para
Rousseau,
a “educação primeira é a que mais importa, e essa primeira
educação cabe incontestavelmente às mulheres; se o Autor da natureza
tivesse querido que pertencesse aos homens, ter-lhes-ia dado leite para
alimentarem as crianças. Falai portanto às mulheres, de preferência, em
vossos tratados de educação”. (ROUSSEAU, 1973, p. 9).
Observa-se
à importância dada ao aleitamento materno tanto por Zilda quanto por
Rousseau elegendo a mulher, a priorização do seu papel de mãe na educação
infantil.
Rousseau
atribui a responsabilidade às mães na educação das crianças, bastando “que
as mães concordem em amamentar seus filhos e os costumes reformar-se-ão
sozinhos, os sentimentos da natureza despertarão em todos os corações; o
Estado se repovoará” (ROUSSEAU, 1973, p. 21). Tornando-se as mulheres mães
“logo os homens voltariam a ser pais e maridos” (ROUSSEAU, 1973, p. 21).
Os gêneros discursivos, o religioso e o romance
de educação interagem no campo social requerendo uma ação prática de
valorização da infância. O gênero “vive do presente, mas sem nunca esquecer
seu passado. Quanto mais ele se torna complexo, mais reitera sua origem.
Essa memória se encontra inscrita nas propriedades formais do gênero e seu
conteúdo pode permanecer ignorado pelo indivíduo” (AMORIM, 2001, p. 111).
Por que Emílio? Como Emílio chegou até aqui?
Pela cultura: creches, nos cursos de psicologia e pedagogia, através da
análise semiótica da cultura brasileira conforme intencionou-se fazer nessa
breve comunicação. Emílio está vivo em pesquisas sobre as idéias de
Rousseau sendo reproduzidas em dissertações de mestrados e teses de
doutorado passíveis de serem encontradas em uma pesquisa pela Internet.
Neste ponto vale ressaltar o Grupo Interdisciplinar de Pesquisa sobre
Jean-Jacques Rousseau (GIP), unindo pesquisadores do Departamento de Letras
Modernas da UNESP-Araraquara e do Departamento de Filosofia da UNICAMP.
A
fundamentação ideológica da infância rousseauniana é a sustentação dos
valores basilares desta ação pastoral: os enunciados declaram a vida em abundância,
riqueza, paz, alegria, entre outros.
A
infância nos enunciados condiz com o contexto do paraíso, ou seja, é
perfeita, sem pecado, pura, harmonizada com a natureza, moralmente boa.
Coincidem nesse aspecto os enunciados de Jean-Jacques Rousseau e de Zilda
Arns Neumann. Convergem também na atribuição ao caráter de corrupção à
sociedade humana.
Genealogicamente
a criança está inserida em uma filiação biológica e divina impelindo a
Pastoral da Criança a um ativismo de assistência à infância.
“Os
enunciados reúnem os mais variados gêneros discursivos em uso na língua nas
esferas da comunicação social” (MACHADO, 2001, p. 153). Os enunciados
religiosos estabilizam uma forma discursiva com uma determinada relação de
alteridade, atualizando-se cada vez que este gênero é escolhido. Os
enunciados de Rousseau sobre a infância dialogam com os religiosos da
Pastoral da Criança, reforçando-os: o gênero secundário religioso torna-se
vivo e móvel nesse entrecruzamento com os enunciados do gênero do romance
de educação, Emílio, reafirmando
sua ação na sociedade (AMORIM, 2001, p. 121).
NOTA
(1) Entrevista concedida em 01 de julho de 2004, às 9 horas da
manhã, na Sede Nacional da Pastoral da Criança, no bairro de Mercês, em
Curitiba, Paraná, Brasil. A entrevista na íntegra encontra-se no anexo da
dissertação de mestrado da autora.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMORIM, M. O
pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa
Editora, 2001.
BAKHTIN, M. (V. N. Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Annablume / Hucitec, 2002.
______.
Estética da
criação verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
CHAUÍ, M. O que é
ser educada hoje? Da arte à ciência: a morte do educador. In: BRANDÃO, C.
R. (Org.). O educador: vida e morte. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1982.
DENT, N. J. H. Dicionário
Rousseau. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
FARACO, C. A. O
dialogismo como chave de uma antropologia filosófica. In: FARACO, C. A;
TEZZA, C.; CASTRO, G. (Org.). Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Ed. da
UFPR, 1996.
MACHADO, I. A. Os
gêneros e o corpo do acabamento estético. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin,
dialogismo e construção de sentido. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
2001.
NEUMANN, Z. A. Entrevista
com Zilda Arns Neumann [jul. 2004]. Entrevistadora: Cristiane Ferraro
Gilaberte da Silva. Curitiba, 2004. 1 cassete sonoro. Entrevista concedida
para Dissertação de Mestrado em Letras, Cascavel-PR.
PASTORAL DA CRIANÇA. Caderno do líder da Pastoral da Criança: acompanhamento das gestantes e crianças. Curitiba, 2003.
ROUSSEAU, J.-J. Emílio ou da educação. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973.
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