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Manuscrito de Genebra e Do Contrato Social: duas noções de pacto social na obra de Jean-Jacques Rousseau?

 

Daniela Masotti Moraes

Universidade Estadual Paulista / Araraquara

 

Procuramos neste texto, problematizar a construção do conceito de pacto social elaborada por Jean-Jacques Rousseau, na obra Do Contrato Social ou Princípios do Direito Político seu escrito de filosofia política mais importante, concomitantemente com a primeira versão da referida obra, também conhecida como Manuscrito de Genebra ou Du Contract Social ou Essai sur la Forme de la République. Buscamos demonstrar as sutilezas interpretativas do autor quando da versão de uma obra para outra, escreve sobre o pacto social.

À guisa de introdução ao tema de estudo proposto, é recorrente demonstrarmos como Rousseau traça o percurso histórico do homem, de acordo com suas convicções intelectuais e de acordo com nossa interpretação, do estado de natureza para a sociedade civil que é o lugar por excelência do pacto social e das instituições políticas.

O estado de natureza é a condição em que os homens apresentam-se em estado de isolamento, onde os encontros se dariam apenas em condições estritamente necessárias, como por exemplo, para reprodução da espécie. Os homens nesta condição histórica, possuiriam extrema dependência da natureza, muito maior do que aquela que tinham de seus pares, porque antes da conservação da vida da espécie de modo geral, fazia-se necessária a conservação de sua própria vida.

Ainda com referência ao estado de natureza, de acordo com Rousseau, os indivíduos seriam dotados de três características essenciais. Essenciais porque sempre os acompanharam, mesmo que no estado civil pudessem ser desfiguradas, como veremos mais adiante.

A primeira destas características seria o amor de si, que no estado de natureza traduzir-se-ia na conservação da vida individual e, como os homens estariam isolados, cada um teria somente a si mesmo para zelar. A segunda característica seria a compaixão, que é importante na medida em que, tendo o homem a consciência da necessidade de sua auto-conservação, através desta característica, seria impelido a zelar pela vida daqueles da mesma espécie. A terceira característica é expressa pela denominada perfectibilidade, que consistiria na capacidade humana de aperfeiçoar suas faculdades mentais através da solução de dificuldades que se lhe foram apresentando ao longo da História e exigindo o seu desenvolvimento racional.

Seguindo seu curso, a História apresentaria situações em que os homens aprenderiam a usar técnicas a seu favor a fim de otimizarem suas relações com a natureza, como o desenvolvimento da agricultura e a conseqüente produção de alimentos para grupos cada vez maiores e o manejo de metais para o feitio de ferramentas, favorecendo a agregação de pessoas e aumentando a dependência de umas para com as outras.

Salinas Fortes (1996) citando Rousseau apresenta o momento da passagem do estado de natureza para o estado civil, quando um homem teve a idéia de cercar um pedaço de terra e dizer, “isto é meu”. Nasceu assim a propriedade privada, e o amor de si transfigurou-se em amor-próprio, ou seja, as vontades particulares de cada indivíduo passaram a prevalecer sobre todas as coisas, os homens foram impelidos a se preocuparem apenas com a própria conservação, mas não é a conservação como antes, baseada apenas na sobrevivência, pois neste caso, o homem vê a possibilidade de possuir um número de bens maior do que os outros indivíduos.

Quando a idéia de propriedade atinge estes termos, não é mais possível que os homens vivam sem um acordo entre si, pois a compaixão foi esquecida e a perfectibilidade “trabalha” agora em favor do amor-próprio.

Mas, como é possível conviver pacificamente em sociedade se predominam as vontades particulares? Como garantir a todos igualdade de direitos, a manutenção da própria vida e da espécie e a liberdade originária do estado de natureza? Através do pacto social, um acordo onde todos teriam participação na elaboração das regras que favoreceriam o convívio social pacífico. Com a instauração do pacto social, as forças que estavam agregadas na passagem intermediária do estado de natureza para o estado civil, estão agora associadas mediante uma convenção.

Antes, no estado de natureza, os homens eram livres para garantirem a conservação de suas vidas. A sociedade baseada no pacto social também teria como atributo a manutenção da liberdade de cada pessoa, pois o acordo instituído pelo pacto consistiria, a grosso modo, na possibilidade de cada indivíduo conservar sua vida de modo pacífico, só que cercados pela convivência com outros homens.

A sociedade firmada pelo pacto social é neste momento - de fato e de direito - sociedade civil, pois possui suas próprias leis e corpo político porque cada indivíduo que a compõe participou da elaboração destas leis. Como explicita Rousseau de maneira mais apropriada no capítulo VI de Do Contrato Social:

 

Imediatamente, esse ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos são os votos da assembléia, e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa pública, que se forma, desse modo, pela união de todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e, hoje o de república ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando   passivo, soberano   quando ativo, e potência   quando  comparado  a   seus semelhantes. Quanto aos associados, recebem eles, coletivamente, o nome de povo e se chamam, em particular, cidadãos, enquanto partícipes da autoridade soberana, e súditos enquanto submetidos às leis do Estado. (ROUSSEAU, 1999, p.71).

 

A liberdade, que no estado de natureza era individual (fazia-se sem o congresso de outros indivíduos), passa a ser construída em conjunto, por um grupo de pessoas que forma uma dada sociedade civil. [...] “o impulso do puro apetite é escravidão, e a obediência à lei que se estatui a si mesma é liberdade”. (ROUSSEAU, 1999, p.78). A sociedade política que tem a possibilidade de estatuir suas próprias leis, apresenta-se como o soberano, como o Estado, como os súditos, como cidadãos e como particulares, já que, nesta última condição, não são negados  nem esquecidos pela teoria de Rousseau, pois o liame social é dado por indivíduos dispostos a se associarem pelo bem comum. Daí, então, os civis criam laços de justiça, moralidade e direito, que só podem ser pensados e questionados nas relações de um homem para com outro homem.

Embora Rousseau considerasse importante para o desenvolvimento das faculdades racionais humanas os laços sociais que retirassem do enfoque principal os instintos presentes no estado de natureza, ele também considerava que muitas vezes esses laços serviam apenas de aparência, representando o favorecimento de vontades particulares, ou seja, vontades representativas de um grupo em particular ou de um indivíduo exclusivamente.

Podemos constatar que, entre as elaborações conceituais de Rousseau, a de vontade geral expressa um dos caminhos mais complexos, pois qual seria o soberano capaz de percebê-la dentre tantas diferenças?

As diferentes vontades irão permitir ao autor o desdobramento de outro tipo de vontade, sutilmente diferente da geral, que é a vontade de todos. Como o próprio termo sugere, vontade de todos refere-se às vontades particulares reunidas, fazendo saltar aos olhos todas as suas peculiaridades. Já a vontade geral é o traço comum que se pode retirar das vontades particulares, chegando-se a acordos sobre a organização política, social e econômica da sociedade civil. É muito importante notar que para Rousseau os interesses diferentes são formativos da vontade geral, pois como elaboraria este conceito se todos os indivíduos possuíssem os mesmos interesses? O que restaria então? Uma única vontade, que não prescindiria de nenhum acordo, negando a existência da sociedade, que nada mais é do que a expressão das relações entre os indivíduos. Além do que uma única vontade descaracterizaria totalmente o termo geral, que suscita o termo diferença.

O corpo político ou sociedade civil que se forma pelo pacto social, precisa agora de movimento e vontade, ou seja, precisa ter estes dois aspectos muito bem demarcados pelas leis.

Rousseau demonstra o que chama de lei a partir da seguinte expressão: [...] “a matéria sobre a qual se estatui é geral, como a vontade que a estatui.” (ROUSSEAU, 1999, p. 106) Essa é a demonstração maior da concretização da vontade geral, pois aquilo que vale para um deve valer para todos e é aí que a liberdade humana, tão prezada por Rousseau no estado de natureza, mas agora diferente em sua organização pelos liames sociais aparece, pois somos livres, porque as leis são registros de nossas vontades acordadas pelo pacto social.

Utilizando-se de metáforas magníficas, Rousseau apresenta o responsável em fazer com que as leis sejam estabelecidas e cumpridas, já que são a expressão das vontades. Este indivíduo, com uma missão coletivizadora é o legislador assim descrito: “Este é o mecânico que inventa a máquina, aquele não passa do trabalhador que a monta e a faz movimentar”. (ROUSSEAU, 1999, p. 109) sendo o “trabalhador” representado pelo poder executivo. O legislador é a porta para se compreender como é possível governar ou guiar uma sociedade a partir da vontade geral e, certamente, o legislador enquanto corpo individual (podendo ser constituído por um só ou por um grupo) é uma das construções teóricas mais complexas de Rousseau, pois esta personagem pode garantir o cumprimento do contrato social “não podendo empregar nem a força nem o raciocínio” [...] recorrendo [...] “necessariamente a uma autoridade de outra ordem, que possa conduzir sem violência e persuadir sem convencer”. (ROUSSEAU, 1999, p. 112).

Após esta introdução de como seria a constituição do pacto social, faz-se necessário demonstrarmos como a pesquisa vem evoluindo no que se refere ao trabalho de percepção das sutilezas encontradas na filosofia política de Rousseau, mais especificamente entre Do Contrato Social e o Manuscrito de Genebra3. Até o momento, nossa tradução do Manuscrito de Genebra não foi concluída, mas já pudemos constatar que nos dois escritos a noção de pacto social não apresenta diferenças, a possibilidade de os homens viverem pacificamente em sociedade se dá apenas quando a vontade geral é posta acima das vontades particulares e o que se pretende é o bem comum.

Porém percebe-se algo de extrema importância nos dois livros. No Manuscrito de Genebra, Rousseau deixa claro o que pretende com o livro,

 

Tantos autores célebres trataram das máximas do Governo e das regras do direito civil, que não há nada de útil a dizer sobre o assunto que não tenha sido já dito. Mas talvez será melhor acordo, talvez as melhores relações do corpo social teriam elas sido mais claramente estabelecidas se tivessem começado por melhor determinar sua natureza. É isto que tentei fazer neste escrito. Ele não é por isso ponto para questão de administração deste corpo mas de sua constituição. Eu o faço viver e não agir. Eu descrevo seus mecanismos e seus componentes, eu os organizo em seus lugares. Eu coloco a máquina em funcionamento; outros mais sábios ou prudentes regulam os movimentos.” (Tradução minha, revisada por Fábio Lucas Pierini e Érika C. Goulart de Moraes.)

 

Já em Do Contrato Social, Rousseau escreve,

 

Quero indagar se pode existir, na ordem civil, alguma regra de administração legítima e segura, tomando os homens como são e as leis como podem ser. Esforçar-me-ei sempre, nessa procura, para unir o que o direito permite ao que o interesse prescreve, a fim de que não fiquem separadas a justiça e a utilidade. (ROUSSEAU, 1999, p.51).

 

Queremos propor com isso que Rousseau estivesse privilegiando no Manuscrito de Genebra a teoria, a natureza do corpo social, ou seja, como o mesmo se constituiria. Estaria ele deixando o corpo político pronto para se movimentar; enquanto que uma certa idéia de movimento teria acometido o autor em Do Contrato Social, já que logo na abertura do livro o autor deixa claro que quer compreender se pode ou não existir “alguma regra de administração legítima e segura” para a ordem civil. Nesta indagação podemos perceber implicitamente outra: como colocar (se existir) esta regra em prática, de que maneira? É importante que fique claro que a teoria também é inerente à última versão de Do Contrato Social, apenas tentamos com as idéias apresentadas iniciar a problematização desta obra de filosofia política, que nos é apresentada em duas versões.

 

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