Volta
Do homem natural às civilizações
indígenas americanas: um percurso de Jean-Jacques Rousseau a Jean-Marie
Gustave Le Clézio
Érica Milaneze
Universidade Estadual Paulista /
Araraquara
Embora separados
por mais de duzentos anos, observamos várias semelhanças entre o pensamento
de Jean-Jacques Rousseau e de Jean-Marie Gustave Le Clézio. Assim como
Rousseau denúncia as contradições do progresso das ciências e das artes de
seu tempo, Le Clézio questiona a tecno-estrutura da sociedade
pós-industrial contemporânea, que considera excessivamente racionalista.
Rousseau e Le Clézio privilegiam a pureza essencial e defendem uma comunhão
íntima entre o homem e a natureza, como antídotos para os males das
sociedades de suas épocas, pois acreditam que o homem pode reencontrar na
natureza, a paz, a liberdade e a felicidade, em detrimento das angústias
causadas pela civilização urbana. Percebemos nas obras de Rousseau,
notadamente em La Nouvelle Heloïse (1761) e Les rêveries du
promeneur solitaire (1776-78), o sentimento de embriaguez do eu,
quando em íntima comunhão com a natureza, estado presente também em vários
textos de Le Clézio, como Voyages de l’autre côté (1975), L’inconnu
sur la terre (1978), Mondo et autres histoires (1978), Désert
(1980), etc., em que proporciona uma sensação de êxtase material.
No Discurso
sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1753),
Rousseau reconstitui por meio da razão a evolução do homem primitivo ao
homem civilizado, valorizando a pureza primordial do homem natural,
representado pelo indígena. Le Clézio volta-se também para as civilizações
indígenas, as quais descobre por volta da década de setenta, quando convive
com comunidades indígenas do México, do Panamá e da Guatemala, experiência
que transforma sua forma de viver e de escrever: « Cette expérience
a changé toute ma vie, mes idées sur l’art, ma façon d’être avec les
autres, de marcher, de manger, d’aimer, de dormir, et jusqu’à mes
rêves » (LE CLÉZIO apud CORTANZE, 1999, p. 168). Do contato
com os indíos Emberas, Waunanas, Huichols e Maias de Michoacán resultam os
ensaios Haï (1971), Mydriase (1973), Le rêve mexicain ou
la pensée interrompue (1988), La fête chantée (1997), as
traduções de mitologia indígena Les Prophéties du Chilam Balam
(1976) e Relation de Michoacán (1984) e algumas obras literárias,
onde os temas indígenas ocupam o centro das discussões, como em Trois
villes saintes (1980) e Angolimala (1999) ou participam da
composição textual: Le livre des fuites (1969), Voyages de
l’autre côté, L’inconnu sur la terre e especialmente a biografia
romanceada Diego et Frida (1993).
Por meio da
retomada das civilizações indígenas, Le Clézio realiza um questionamento da
sociedade contemporânea, denunciando o colonialismo e o imperialismo
ocidental. De acordo com o autor,
la culture occidentale est devenue trop
monolithique. Elle privilégie jusqu’à l’exacerbation son côté urbain,
technique, empêchant ainsi le développement d’autres formes d’expression:
la religiosité, les sentiments, par exemple. Toute la partie impénétrable de l’être humain est
occultée au nom du rationalisme. C’est cette prise de conscience qui m’a
poussé vers d’autres civilisations (LE CLÉZIO, 2001)
Neste sentido, adverte, «il faut chercher d’autres voyages »
(LE CLÉZIO, 1971, p. 11). Procura,
então, olhar o Outro, dar voz àqueles que acredita terem sido silenciados
no momento em que a Europa se afirma como potência hegemônica, momento que
se concretiza para o autor na conquista da América, o que marca uma grande
passagem na história da humanidade: destruição das civilizações
tradicionais do Novo Continente e construção da Europa Moderna. Como
conseqüência, temos o sentimento de desraizamento das populações autóctones
e a espoliação de suas terras, a exploração dos recursos naturais, o
deperecimento cultural e a abolição das tradições indígenas, que fornecem
um sentido à vida, à morte e ao destino. Com a queima dos documentos dos
antigos povos americanos na primeira metade do século XVI, os espanhóis
destroem as raízes e a memória destas civilizações, legando-as ao
deperecimento progressivo:
Hommes plongés dans le silence et l’oubli, séparés de leurs
dieux et de leurs ancêtres, les Aztèques, les Mayas, les Porhépechas
cessaient d’être des hommes, ils devenaient des « indigènes »,
voués à l’esclavage, au mépris, à la spoliation. Il n’y a sans doute pas eu
de défaite plus tragique et plus irrémédiable dans l’histoire de
l’humanité, puisque les conséquences de cette destruction durent encore (LE
CLÉZIO, 1984, p. 23).
As longas estadas de Le Clézio,
entre 1970 a 1974, junto às comunidades indígenas dos Emberas e dos
Waunanas, situadas na província do Darién, fronteira entre o Panamá e a
Colômbia, resultam no ensaio Haï, em que reflete acerca do lugar que
a cultura indígena ocupa no mundo moderno. Nesta obra, Le Clézio ressalta a
existência extremamente simples e os hábitos alimentares modestos dessas
populações, em comparação aos observados na sociedade moderna:
Voilà un peuple qui ne mange presque jamais à sa
faim, qui est privé presque continuellement des ingrédients de base de la
diététique moderne: pas de viande, pas de lait, pas de légumes, pas de
fruit. Seulement, d’un jour à l’autre, d’une année à l’autre, l’âpre
plantain vert. De temps à autre, un peu de viande de cerf ou de pécari, un
iguane, un perroquet. Du riz, du maïs. [...] Il y a là comme un défi à
notre propre race, à nos goûts dispendieux, à nos soucis alimentaires.
Nous, les mangeurs de viande, les buveurs de lait, les dévorateurs de
vitamines. Nous, qui débordons tant de richesses que nous pouvons les
distribuer dans le monde, aux peuples en famine, aux enfants mal nourris (LE CLÉZIO, 1971, p. 20-1).
Dentre ainda os vários aspectos que
impressionam positivamente Le Clézio durante sua convivência com os
Emberas, assinala que as comunidades índigenas não constroem fronteiras
para lhes separar da realidade exterior e de seus semelhantes, como os
muros levantados pelos homens na sociedade contemporânea:
les murs, chez eux, en effet, n’existent pas, les
frontières n’existent pas. Voilà une situation idéale. La propriété
n’existe pas, si ce n’est dans le sens où la terre vous apporte des fruits:
c’est le produit de la terre qui vous appartient, et non la terre
elle-même. Ce rapport à la terre est une des forces mais aussi une des
faiblesses du monde amérindien (LE CLÉZIO apud
CORTANZE, 1999, p. 172).
Segundo o autor francês, essas barreiras
separam os homens entre si e da natureza e determinam ainda o sentimento de
posse e acúmulo de poder, observado no mundo moderno, em oposição aos
indígenas que dependem daquilo que a natureza lhes oferece e da integração
entre os membros da comunidade, e principalmente, acreditam que a terra não
pertence a ninguém. Neste sentido,
as constatações leclézianas recuperam as idéias de Rousseau, que coloca
como a principal fonte de desigualdade entre os homens e conseqüentemente
de separação entre eles, o direito de propriedade: « o verdadeiro
fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno,
lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente
simples para acreditá-lo » (ROUSSEAU, s.d., p. 189), pois é por meio
dela que nasce a vida em sociedade.
A estada com os Emberas fortalece
também a aversão de Le Clézio pela vida urbana, cujo símbolo maior são as
grandes cidades barulhentas, em oposição ao silêncio da floresta. Na
primeira parte de Haï, denominada « Tahu Sa », que
significa « o olho que tudo vê », aponta vários aspectos
negativos da cidade, salientando justamente o barulho:
Nos cités sont pleines de bruit, de cris, de
hurlements, de fracas assourdissants. Aux carrefours, les haut-parleurs
gueulent sans cesse tous les mots, les ordres, les slogans. Dans les caves
de béton, les guitares électriques hurlent, tout le temps, et les
saxophones déchirent l’air. Il y a tellement de bruit dans les rues des
villes, que le coeur bat très vite et les mains transpirent (LE CLÉZIO, 1971, p. 32).
O autor
admira o modo silencioso como os índios vivem, não um silêncio meditativo e
passivo, mas « une absence de bruit, comme cela, dans tous les
actes de la vie quotidienne, qui est a la fois une défense et une
attaque » (LE CLÉZIO, 1971, p. 29). Para o índio, a linguagem não é apenas uma forma
de comunicação, mas um pacto que associa o homem ao universo, um bem comum
da tribo, porque falar é « la propriété des hommes, leur
affirmation d’existence » (LE CLÉZIO, 1971, p. 29).
As comunidades indígenas dos Emberas
e Waunanas parecem aproximar-se,
segundo as observações de Clézio em Haï, do estágio de
desenvolvimento considerado ideal por Rousseau, a meio caminho entre o
homem natural e o homem social, em que se nota uma organização patriarcal:
esse
período de desenvolvimento das faculdades humanas, ocupando uma posição
média exata entre a indolência do estado primitivo e a atividade petulante
de nosso amor-próprio, deve ter sido a época mais feliz e duradoura. Mais
se reflete sobre isso e mais se conclui que esse era o menos sujeito às
revoluções, o melhor para o homem (ROUSSEAU, s.d., p. 194).
Rousseau descreve de forma
hipotética no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
entre os homens, o que considera o homem em seu estado da natureza,
situando-o em uma espécie de Idade de Ouro, em que se encontra um certo
equilíbrio físico e moral, bem como com a natureza e com seus semelhantes:
Enquanto os
homens se contentaram com suas cabanas rústicas, enquanto se limitaram a
costurar com espinhos ou cerdas suas roupas de peles, a enfeitar com plumas
e conchas, a pintar o corpo com várias cores, a aperfeiçoar e embelezar
seus arcos e flechas, a cortar com pedras agudas algumas canoas de pescador
ou alguns instrumentos grosseiros de música, -- em uma palavra: enquanto só
se dedicaram a obras que um único homem podia criar, e as artes que não
solicitaram o concurso de várias mãos, viveram tão livres, sadios, bons e
felizes, quanto o poderiam ser por sua natureza, e continuaram a gozar
entre si das doçuras de um comércio independente (ROUSSEAU, s. d., p. 195).
Entretanto, o homem natural
afastou-se gradativamente desse estado ideal, de acordo com o filósofo, na
medida em que a propriedade se estabelece, proporcionando a divisão dos
homens em fortes e fracos, ricos e pobres, o acúmulo de riquezas e a formação da sociedade civil
baseada em leis, que legitimam a pose e o poder de forma desigual:
da cultura
de terras, resultou necessariamente a sua partilha e, da propriedade, uma
vez reconhecida, as primeiras regras de justiça, pois para dar a cada um o
que é seu, é preciso que cada um possua alguma coisa; além disso, começando
os homens a alongar suas vistas até o futuro e tendo todos a noção de
possuírem algum bem passível de perda, nenhum deixou de temer a represália
dos danos que poderia causar a outrem (ROUSSEAU, s.d., p. 196).
A oposição entre o homem natural e o
homem civilizado expressa por Rousseau, parece permear o pensamento
lecléziano, especialmente em Haï, em que pelo confronto do mundo
indígena com o moderno, atribui uma conotação positiva para o primeiro e
negativa para o segundo, tal qual exprime o filósofo genebrino em suas
obras. Entretanto, Le Clézio se diferencia de Rousseau, ao mostrar uma
visão realista do indígena, afirmando que estes têm defeitos e vícios
semelhantes aos do homem social: « chez les Indiens aussi
[...] il y a des viols
et des crimes. Comme partout, les femmes sont battues. On trouve, dans ce
là-bas, les mêmes vices et les mêmes crimes » (LE
CLÉZIO apud CORTANZE, 1999, p. 192). Acusado de simplista pela
crítica européia e de ter caído no mito do bom selvagem, Le Clézio rebate
com veemência: « je ne pourrais
jamais dire de ces gens avec qui j ai vécu qu’ils étaient sauvages, ni qu
ils étaient bons. Ils
vivaient selon d’autres critères et d’autres valeurs» (LE CLÉZIO, 2001) Nisso reside justamente, a liberdade
observada entre esses povos, como demonstra a postura da mulher
indígena perante sua comunidade:
Liberté d’ être ce qu’elle est, sans crainte des
interdits de la morale ou de la religion; liberté de choisir pour son corps
et pour son esprit son travail, ses
accouplements, ses enfantements. Liberté de fuir l’homme qu’elle a cessé
d’aimer, de chercher un homme qui lui plaît, de boire les décoctions de
plantes abortives ou d’empoisonner son enfant à la naissance si elle n’en
veut pas, de vivre dans la maison qui lui plaît, de posséder ce qu’ elle
désire et de refuser ce qu’elle hait. Liberté de son corps, de sa nudité,
des soins qu’elle donnera à son visage. Liberté d’être sans rivale, de n’ être en compétition avec aucune autre
image que la sienne. Liberté de ses
excès et de ses raisons (LE CLÉZIO,
1971, p. 25).
Le
Clézio constata, então, que « les Emberas vivent en harmonie avec
la nature, avec leur environnement, avec eux-mêmes sans pour autant avoir
besoin de se référer à une autorité juridique ou religieuse quleconque» (LE
CLÉZIO, 2001). De
fato, Rousseau já havia assinalado que as autoridades e as leis que ordenam
a sociedade civil são prejudiciais ao homem, pois legitimam a desigualdade.
Le Clézio parece continuar o pensamento do filósofo ao observar que a
comunidade indígena em seu conjunto, está melhor integrada a seu meio, a
floresta, que o homem moderno com a sociedade que criou, porque o índio se
considera parte integrante da natureza: « L’Indien n’est pas séparé
du monde, il ne veut pas de la ruptura entre les régnes. L’homme
est vivant sur la terre, à l’égal des formis et des plantes, il ne s’est
pas exilé de son territoire » (LE CLÉZIO,
1971, p.100). A visão
de Le Clézio encontra, portanto, novamente as idéias de Rousseau, para quem
o indígena está integrado à realidade
natural e ao mundo, enquanto o homem moderno está alienado, ou
melhor, o mundo indígena « n’est pas différent du nôtre, simplement ils [les Indiens] l’habitent, tandis
que nous sommes encore en exil » (LE CLÉZIO, 1971, p. 36). Desta forma, Le Clézio
descobre nas civilizações indígenas uma fonte de aprendizados:
la
rencontre avec le monde indien
n’est plus un luxe aujourd’hui. C’est devenu une nécessité pour qui veut comprendre
ce qui se passe dans le monde moderne. Comprendre n’est rien; mais tenter
d’aller au bout de tous les corridors obscurs, essayer d’ouvrir quelques
portes: c’est-à-dire, au fond, tenter de survivre (LE CLÉZIO, 1971, p. 11).
Daí, seu interesse pelas comunidade
indígenas e também pelo resgate de sua cultura, pelos grandes textos
ameríndios, pelos Codex escritos pelos índios alfabetizados por religiosos
espanhóis, pelas antigas Crônicas da Conquista. Por meio das obras sagradas ameríndias,
como Les Prophéties du Chilam
Balam e Relation de Michoacán, pode-se tomar contato com vozes
vindas « d’aube des
peuples », vozes que transmitem um saber que « précède toute
l’écriture. C’est un récit légendaire porté de génération en
génération, solennel et empreint de beauté » (LE CLÉZIO apud
CORTANZE, 1999, p. 186), as quais o autor francês tenta recuperar. Le Clézio procura aprender com os
textos indígenas e com estes povos, que guardam e transmitem, desde a
origem da humanidade, as vozes de uma época em que não existia uma fratura
entre o homem e o universo, tal qual existe no mundo moderno, onde essa
dicotomia sujeito/objeto causa a destruição da natureza, do próprio homem,
das tradições e da sociedade, em nome do desenvolvimento industrial e
tecnológico, que representa atualmente o expoente máximo da evolução
humana: conseqüências negativas já prenunciadas por Rousseau, quando aponta
no Discurso sobre as ciências e Artes, que os valores do Iluminismo,
o progresso, as ciências e as artes, são nocivos ao ser humano.
Percebemos, portanto, que apesar de
separados por séculos, Rousseau e Le Clézio abordam questões que estão no
cerne da desigualdade, da alienação, da fragmentação e do esfacelamento
progressivo da sociedade moderna, tentando desvendar algumas de suas
causas, seja pela reavaliação crítica do processo de evolução do homem
civilizado, seja pela anamnese dos povos indígenas americanos, para que
seus efeitos nocivos possam ser amenizados.
Referências bibliográficas
CORTANZE,
G. J. M. G. Le Clézio – Le nomade immobile. Paris: Folio,
1999.
LE
CLÉZIO, J. M. G. Destruction d’une civilisation. La Quinzaine
Littéraire. Paris, n. 410, fév, p. 23-4, 1984.
_____. Entrevista
com Jean-Marie Gustave Le Clézio: « La langue française est peut-être
mon seul véritable pays ». Lettres. n. 45, dez, 2001. Disponível em: www.diplomatie.gouv.fr/label_france/FRANCE/LETTRES/clezio/page.html. Acesso em: 10/06/2002).
_____. Haï. Genève: Skira,
1971.
ROUSSEAU, J. J. Discurso sobre a
origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. IN: _____. Obras
de Jean-Jacques Rousseau. Rio de Janeiro; Porto Alegre; São Paulo:
Globo, s. d.
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