Volta

 

Linguagens, corrupção e liberdade em Rousseau

 

Evaldo Becker

Universidade de São Paulo

 

A presente comunicação visa tratar, de forma sucinta, algumas questões acerca do lugar que ocupa a linguagem na teoria rousseauniana. Pretende-se examinar principalmente o seu papel no que concerne à política e à moral das sociedades historicamente constituídas. Rousseau ao longo de sua obra menciona e examina a existência e o papel da linguagem original, musical, teatral e das línguas particulares no que tangem à corrupção e ao mal-estar percebido nas sociedades existentes. Trata também acerca das possibilidades das mesmas interferirem na redução ou manutenção da liberdade. Pretende-se em primeiro lugar, fazer a distinção entre a noção de linguagem e de línguas particulares, observando nesse sentido o que Rousseau entende por linguagem original e quais as modificações e o sentido destas no momento em que se instituem as línguas particulares. Por fim, examinaremos em que sentido é possível através do Discurso mesmo ou da eloqüência, propor formas de remediar ou atenuar a corrupção percebida nos homens e nas sociedades tal como se nos apresentam. Tais questões serão examinadas tendo-se em vista principalmente os textos: Ensaio sobre a origem das línguas, Emílio e A Nova Heloísa de Rousseau.

É fato notório e indiscutível o caráter negativo que a história assume na obra de Rousseau. A história do homem assim como a das sociedades por ele constituídas é a história da decadência, da corrupção, da queda (1). O que pretendemos examinar aqui é o caráter de degenerescência da linguagem ou do poder do discurso, que parece ocorrer de maneira idêntica a das demais instituições. A linguagem - que conforme Rousseau afirma no Essai sur l’origine des langues é justamente a primeira instituição social - não poderia deixar de passar pelo mesmo processo de corrupção que as demais instituições. Mesmo porque, em nosso entender, as línguas ou as várias formas de linguagem estão inextricavelmente ligadas, tanto às mazelas verificadas em sociedade, quanto são condição para que se possa implementar a tentativa de uma redução do mal estar percebido em sociedade. Possibilitando através dela (da linguagem), a manutenção ou ampliação da liberdade e da igualdade, condições essenciais para a redução do mal-estar e para a efetivação de uma sociabilidade mais afeita às características essenciais ou ontológicas do homem.

Teria sido em encontros forçados, determinados pelo acaso ou pela necessidade, que começaram a brotar os primeiros sentimentos de humanidade. De acordo com o autor, foi “sob velhos carvalhos, vencedores dos anos que uma juventude ardente aos poucos esqueceu sua ferocidade. Acostumaram-se pouco a pouco uns aos outros e, esforçando-se por fazer entender-se, aprenderam a se explicar. Aí se deram festas – os pés saltavam  de alegria, o gesto ardoroso não bastava e a voz o acompanhava com acentuações apaixonadas (ROUSSEAU: 1969, p. 123), esse teria sido segundo Rousseau, o ‘verdadeiro berço dos povos’.

A voz, ou a linguagem falada surge nesse contexto como expediente necessário à expressão dos sentimentos e intenções, surge como complemento para melhor exprimir as paixões e para tornar claras as intenções, ou seja, é no sentido da transparência de melhor se mostrar e fazer entender que surge essa primeira linguagem, linguagem - pois que ainda não se pode falar em uma língua convencionalmente estabelecida e articulada. Essa linguagem original pouco se diferencia do canto e da poesia, é mais uma melodia, eivada de sentimento e paixão do que propriamente uma língua articulada.

Nesse momento inicial, o homem que até então só tinha olhos para si mesmo e só se preocupava em atender suas verdadeiras necessidades, passa a estender o seu ser à todos aqueles que o cercam, criando novas necessidades como a de se sobressair ou adquirir proeminência sobre os demais. Nessa ‘festa primitiva’, no entorno de uma fogueira à sombra de um velho carvalho - ambiente no qual Rousseau situa a emergência da linguagem, e o início do processo de sociabilidade -, impera o desejo de transparência, móvel dessa comunicação inicial. Mas também se exacerbam os móveis do amor-próprio e de todos os descaminhos dessa sociedade que está em plena gestação. Conforme Salinas Fortes, desta ‘festa primitiva, deste ‘berço dos povos’ podem sair, como da caixa de Pandora, todos os bens e todos os males. Destes ‘jogos do amor’ não apenas podem resultar a iluminação fraterna da consciência moral ou o incêndio do amor-próprio. (...) A festa primitiva é essencialmente ambivalente: ela é laço, união, fusão, no momento mesmo em que é diferenciação, em que é separação (...) Os homens reúnem-se separando-se num mesmo movimento. (SALINAS FORTES: 1997, p. 45)

Essa linguagem original - fruto da perfectibilidade, motivada pelas ‘paixões morais’ e pela piedade natural que aproxima os seres até então dispersos, fazendo com que se percebam enquanto semelhantes -, surge como expressão de um desejo de transparência mas vai no decorrer da história do homem acabar por transformar-se em representação e mascaramento; em instrumento de manipulação e engodo. Fato que surge, segundo Rousseau, já nos primórdios da sociedade ao se instituir a propriedade privada e o pacto dos ricos, que é o maior responsável pelo estabelecimento das desigualdades percebidas em sociedade e pelo mal-estar decorrente de tal situação.

Foi necessário o uso da palavra, do discurso enganador para estabelecer a propriedade e um tipo de contrato fraudulento que não respeita a igualdade entre as partes. No Segundo Discurso Rousseau descreve o estabelecimento da propriedade privada da seguinte maneira:

 

O primeiro que tendo cercado um terreno, arriscou-se a dizer: ‘isso é meu’, e encontrou pessoas bastante simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, mortes, misérias e horrores teria poupado  ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: fugi às palavras desse impostor: estareis perdidos se esquecerdes que os frutos pertencem a todos, e que a terra não é de ninguém. (ROUSSEAU: 1989, p. 84)

 

Acerca da necessidade da linguagem na formação das sociedades escreve Bento Prado Jr.: “na origem da sociedade civil, nenhuma força, sem as miragens que a linguagem pode produzir, poderia instituir sua dominação”. (PRADO Jr.: 1998, p. 16) Nesse momento, da instituição da propriedade privada, já se faz necessário o uso de um discurso articulado, ou seja, já estão presentes as línguas convencionalmente instituídas, que brotam daquela linguagem original, mas que já não se parecem em nada com ela. Para Rousseau, é bastante clara a idéia de que não existe uma língua original articulada. No Emílio o autor afirma que todas as línguas são frutos da arte. Durante muito tempo se procurou saber se havia uma língua natural e comum a todos os homens. Sem dúvida, existe uma: é aquela que as crianças falam antes de saber falar. Não é uma língua articulada, mas é acentuada, sonora inteligível. O uso das nossas línguas fez com que a deixássemos de lado, a ponto de esquecê-la completamente”. (ROUSSEAU: 1999, p.50)

As línguas particulares se instituem segundo as peculiaridades do clima, do modo de vida e dos costumes de cada povo ou nação e vão se modificando com o passar do tempo no intuito de atenderem às novas necessidades surgidas em sociedade; mas nesse trajeto de ‘aperfeiçoamento’ a língua vai ganhando em clareza e perdendo em sentimento. No Essai, Rousseau afirma que na medida em que nossas necessidades crescem, os negócios se complicam, as luzes se expandem, a linguagem muda de caráter. Torna-se mais justa e menos apaixonada, substitui os sentimentos pelas idéias, não fala mais ao coração, senão à razão. Por isso mesmo, o acento se extingue e a articulação progride: a língua fica mais exata, mais clara, porém, mais morosa, mais surda e mais fria”. (ROUSSEAU: 1969, p. 55) Em outra passagem também do Essai, ao tratar da cisão entre linguagem e música Rousseau afirma que a melodia, começando a não permanecer tão intimamente ligada ao discurso, insensivelmente tomou existência à parte e a música se tornou mais independente das palavras”. (ROUSSEAU: 1969, p. 189) Mas tal independência, no que tange ao discurso, acaba por acarretar a perda da capacidade de comover e de suscitar paixões, o que no extremo, vai fazer com que o próprio poder do discurso ou da palavra seja posto em xeque. No Emílio Rousseau salienta que sendo a primeira lei do discurso a de se fazer ouvir, o maior erro que se possa cometer é falar sem ser ouvido. Vangloriar-se não ter nenhuma inflexão é vangloriar-se de tirar a graça e a energia da frase. A inflexão é a alma do discurso, dá-lhe o sentimento e a verdade. A inflexão mente menos que a palavra; talvez por isso seja tão temida pelas pessoas bem educadas”. (ROUSSEAU: 1999, p. 61)

Da ‘festa primitiva’ onde a intenção é a transparência dos sentimentos e intenções, ao uso da linguagem como forma de dissimular as intenções e de servir enquanto máscara, a distância é grande. E da caixa de Pandora parece terem saído prioritariamente os malefícios. Esse veículo de comunicação com o exterior acaba por tornar-se veículo de engodo. E da intenção de des-velar-se perante o outro a linguagem sob a forma de politesse, torna-se forma de velamento de intenções e sentimentos. Tal é o caso da linguagem das grandes cidades, principalmente de Paris a qual Rousseau retrata de forma bastante ácida através do personagem Saint-Preux, na Nova Heloísa.  Segundo ele, nessas cidades: os homens com os quais se fala não são aqueles com os quais se conversa; seus sentimentos não partem do coração, (...) suas palavras não representam seus pensamentos”. (ROUSSEAU: 1994, p. 214) Outra característica peculiar em tais ambientes é a total desvinculação entre o dizer e o fazer, segundo Saint-Preux/Rousseau: embora as obras dos homens não se assemelhem a suas palavras, vejo que não são descritos senão por suas palavras sem levar em conta suas obras”.(ROUSSEAU: 1994, p. 230)

Nota-se aqui, a crítica veemente à linguagem que se desvincula totalmente do fazer. O parecer é tudo na sociedade de máscaras, e cada palavra deve ser minuciosamente escolhida para que não se incorra no erro de transparecer o que não se deve mostrar. Pouco importam as ações, ou se elas coincidem com as palavras ditas, o que importa são as palavras mesmas. Estas devem estar de acordo com o ambiente, com as regras de polidez, com os preconceitos, com a ‘inconstante opinião’, o que exige um esforço redobrado em perceber o que se deve dizer mesmo que seja o oposto do que se desejaria expressar.

Mas por não possuir sentido definido, e pelo fato de a corrupção não se configurar enquanto qualidade ontológica ou natural; por ser fruto de escolhas equivocadas; mas que foram tomadas livremente, podem muito bem ser revertidas ou mudarem de sentido se for do agrado desse ser livre e perfectível, que é o homem na visão de Rousseau. Ser cuja natureza permite com certeza uma sociabilidade mais afeita a seus anseios e possibilidades. No Emílio Rousseau faz a seguinte afirmação: Que eu saiba, nenhum filósofo até agora foi suficientemente ousado para dizer: eis o termo aonde o homem pode chegar e que não seria capaz de ultrapassar. Ignoramos o que nossa natureza nos permite ser; nenhum de nós mediu a distância que pode haver entre um homem e outro homem”. (ROUSSEAU: 1999, p. 45)

À fala dos salões, a esse ‘sussurro dos sofás’, a essa língua escravizada tão anti-republicana, que é como Rousseau descreve as línguas de seu tempo ao final do Ensaio sobre a origem das línguas - e que no limiar se torna inclusive ausência de palavra, quando impera a violência - a essa língua Rousseau contrapõe exemplos de linguagens mais sonoras. Linguagens para serem faladas pelo povo reunido a céu aberto. Uma linguagem com mais energia e inflexão onde a palavra em si, não diz tudo, onde importa a inflexão, e o sentimento demonstrado. E para além da palavra, ou como forma de comprová-la; importa ainda a ação pública que não a desminta. Segundo o autor: para ser alguma coisa, para ser si mesmo e sempre uno é preciso agir como se fala”. (ROUSSEAU: 1999, p. 12)

Entre a linguagem original, que é expressão autêntica do sentimento e das paixões morais do homem, que praticamente arranca ao homem a verbalização de seus sentimentos e intenções e a fala pensada, meditada, medida, utilizada segundo propósitos secretos, a distância é grande. No Emílio, Rousseau se posiciona acerca do sentimento, e da maneira com que a palavra é dita e não simplesmente com a palavra em si. Eis a observação do autor: de minha parte, eu, que temo menos que Emílio seja grosseiro do que arrogante, prefiro que ele diga pedindo faça isso a que fale mandando por favor. Não é o termo que ele emprega que me importa, mas sim a acepção que acrescenta a ele”. (ROUSSEAU: 1999, p. 80)

Talvez algumas pistas do que Rousseau deseja que seja essa linguagem possível; essa retórica positiva, essa fala mais livre e autêntica - que não se encontra condicionada pelos modismos e jargões das pequenas ‘sociedades particulares’ ou grupelhos - possam ser percebidas justamente nas características da fala, ou da linguagem de Emílio, com a qual nos encaminhamos para o fechamento do presente artigo:

 

Sua linguagem adquiriu acentuação e às vezes veemência. O nobre sentimento que o inspira dá-lhe força e elevação; imbuído do terno amor à humanidade, ele transmite ao falar os movimentos de sua alma; sua generosa franqueza tem algo de mais encantador do que a artificiosa eloqüência dos outros, ou melhor, ele é o único realmente eloqüente, já que só precisa mostrar o que sente para comunicá-lo aos que o ouvem. (ROUSSEAU: 1999, p. 335)

 

Além disso, indícios seguros de uma fala verdadeiramente preocupada com a felicidade dos povos e com o bem-estar comum, de uma fala verdadeiramente republicana, podem ser detectados quando percebemos que o tom e o teor dos discursos vão no sentido de propiciar uma redução das desigualdades e uma ampliação da liberdade segundo os auspícios de uma lei que atenda aos interesses da vontade geral. Lei esta que seja ratificada pelo conjunto dos cidadãos.

 

 

Bibliografia

 

Prado Junior, Bento. A força da voz e a violência das coisas. In: Ensaio Sobre a Origem das Línguas. Trad. Fulvia M. L. Moretto: Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998.

 

Rousseau, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução de Iracema Gomes Soares e Maria Cristina Roveri Nagle. Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Ática, 1989.

 

______, Emílio, ou, Da Educação. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 2° ed.São Paulo: Martins Fontes, 1999.

 

______, Ensaio Sobre A Origem das Línguas. In: Obras J.J. Rousseau, vol, II. Tradução de Lourdes Santos Machado. Rio de Janeiro – Porto Alegre – São Paulo: Editora Globo, 1962.

 

______, Ensaio Sobre a Origem das Línguas. Tradução de Fúlvia M. L. Moretto. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998.

 

______, Essai sur l’origine des langues. Edição crítica de Charles. Porset. Paris: A. G. Nizet, 1969.

 

Salinas, Luiz Roberto. Paradoxos do espetáculo. São Paulo: Discurso Editorial, 1997.

 

SOUZA, Maria das Graças de. Ilustração e História: O Pensamento Sobre a História no Iluminismo Francês. São Paulo: Discurso editorial, 2001.

 

Notas


(1) Nesse sentido afirma Maria das Graças: “A história dos homens é história da queda. Esta transformação da alma humana corresponde à transformação das instituições, cuja trajetória também se dá no sentido que vai da pureza antiga à depravação atual”. Ilustração e história: o pensamento sobre a história no iluminismo francês. Maria das Graças de Souza.  São Paulo: Discurso Editorial, 2001, p. 71

 

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