Volta
O Discurso sobre a Desigualdade e o Contrato
Social: continuidade e contexto.
Juliana de Barros Cerezuela
Universidade
Estadual de Londrina
A questão da continuidade no pensamento de Rousseau e a
conexão entre suas obras e o contexto histórico, são dois dos vários pontos
polêmicos que envolvem as interpretações de seus trabalhos. Rousseau viveu
quase todo o período do século XVIII. Era considerado um homem engajado nas
questões de seu tempo e por isso, sentia a necessidade de expor seus
sentimentos e a contradição que via na ordem das coisas. Em seus escritos
políticos, Rousseau tinha como objetivo principal emancipar o individuo da
corrupção nele gerada pela vida civilizada e dos conflitos e incertezas de
uma sociedade que ele enxergava como opressora.
Quando abordamos as questões da continuidade e do contexto nos
escritos de Rousseau, podemos observar que ambas se encontram articuladas
em seu pensamento. Um exemplo do movimento entre continuidade e contexto
pode ser observada na leitura de duas de suas
obras: o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
(1755) e o Contrato Social (1762).
Quando Rousseau redige o Discurso, o pensamento político da
época se debruçava sobre as questões que envolviam os limites e as
finalidades do Estado. Neste período, os Estados europeus na sua grande
maioria, eram regidos pelas ditas “Monarquias
Absolutas”, onde os poderes dos reis eram confundidos com os do Estado e
por tanto, possuíam uma natureza ilimitada.
A França, palco das observações de Rousseau,
estava no mesmo contexto absolutista europeu. No final do século
XVIII, a França ainda conservava as características do tempo feudal. Com o
fim da Idade Média, os reis foram assumindo um tipo de poder político mais
centralizado, em detrimento dos poderes parcelados em comunidades feudais.
Esses poderes foram se agregando até se tornarem absolutos. Os senhores
feudais, agora despojados do mando político que exerciam em seus
territórios, assumem uma postura subverniente em
relação à monarquia. A aristocracia e os nobres longe de seus feudos e
terras, embora muitos conservassem a riqueza, passaram a gravitar em torno
dos seus monarcas, deixando administradores para cuidar de seus pertences.
Com todo o poder político nas mãos dos reis, aos nobres restava a vida
ociosa da corte e as intrigas palacianas, a espera, de um dia, virem a ser
convocados para ocupar um cargo ministerial.
Contraditoriamente, os reis que viam nos nobres e na
aristocracia, possíveis inimigos, pretendentes aos seus tronos, voltavam-se para o homem comum, para o camponês, para o
burgueses das cidades, buscando neles o suporte político de que
necessitavam, como também os recursos financeiros que eles e seus nobres
precisavam para a vida na corte ou para as expedições militares. A
compensação mais comum que os reis mantinham para estes empréstimos, era o
de conceder, novos direitos e abolir várias
restrições da legislação anterior, dando maior liberdade a burgueses e
camponeses, tanto, para comerciar como para que pudessem, especialmente os
camponeses ter terra própria. Esta nova situação gerou uma nova dinâmica
social, que acabou tornando-se incompatível com a manutenção do compromisso
firmado. Pois à medida que o rei consentia a venda de propriedades e
títulos de nobreza à burguesia, transferia também a esta camada os
privilégios que a posição adquirida conferia. Para a burguesia, a forma com
que o Estado absolutista promoveu a mobilidade social, criou-lhe
dificuldades. A possibilidade desse segmento integrar-se
ao grupo dos nobres de linhagem e de prestígio, era relativamente pequena.
Pois, independente da posse de títulos de nobreza, eles não exerciam as
prerrogativas de direito que seus títulos concediam. E os que ficavam de
fora, engrossavam as fileiras dos descontentes e aumentavam as pressões por
mudanças.
Estas foram as questões essenciais
que envolviam o século XVIII francês, as quais provocavam em Rousseau um
sentimento de inconformidade e revolta. E observando esta situação de
instabilidade política e social, Rousseau se propôs a pensar a natureza
dessas relações e as suas conseqüências. A chance de realizar este projeto
surgiu com a questão proposta pela Academia de Dijon
em 1753: “Qual é a origem da desigualdade entre os homens e se ela é
autorizada pelo direito natural?”.
Nesta questão, Rousseau retorna ao estado de natureza
originário da humanidade, para a partir das
transformações ocorridas neste estado, compreender e denunciar as
desigualdades que ele vê no estado social do homem.
Na obra o Discurso sobre a Desigualdade, o método
empregado por Rousseau para chegar ao que ele imagina ter sido o homem
natural, consiste em meditar sobre as características atribuídas a esse
homem natural. Rousseau pretende criar hipoteticamente um estado originário
do homem natural.
Na primeira parte do Discurso, Rousseau descreve o que
considera ser o caráter, disposições e capacidades que são originais no
homem, bem como o seu ambiente natural.
Na segunda parte, Rousseau passa a tratar da história da queda
do homem, pela qual ele perde a sua integridade e simplicidade primitiva e
torna-se alheado de si mesmo e cruel para com os outros. A metalurgia e a
agricultura dilatam os poderes e necessidades do homem; a propriedade e o
direito de posse começam a ser mais importantes. A posse não era meramente
uma questão de ficar mais bem equipado para satisfazer a necessidade
natural; converteu-se em expressão de poder, superioridade e distinção pela
qual os homens poderiam impor com maior eficácia
aquela deferência que tinham passado a exigir. A propriedade instaurou o
mando de uns sobre os outros; dos ricos sobre os pobres, ou seja, perpetuou
a situação de opressão dos fortes sobre os fracos.
Rousseau argumenta que os ricos percebendo que suas usurpações
estavam apoiadas num direito precário, propuseram uma união para defender
os fracos e assegurar a posse do que a cada um pertencia. Tornou-se
necessário a reunião de todos sob um poder supremo, um governo, que de
acordo com suas leis defendesse todos os membros da associação. “ Tal
foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves
ao fraco e novas forças aos ricos, destruíram irremediavelmente a liberdade
natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade,
fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de
alguns ambiciosos, daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao
trabalho, à servidão e à miséria”. (D II,100)
Partindo dessa base, Rousseau passa então a criticar
virtualmente todas as formas de governo institucionalizadas como não sendo
outra coisa que senão a codificação do poder, riqueza e dominação. Longe de
terem qualquer pretensão legitima à obediência,
não passam de tiranias em que uns poucos lucram com a abjeção e a opressão
de muitos. Rousseau critica as formas de governo, pois acredita que estão
instituídas sob um direito inválido, e por isso mesmo não asseguram uma
condição de igualdade, e sim de desigualdade, pois poucas pessoas mandam e
muitos obedecem.
No Discurso sobre a Desigualdade, Rousseau, demonstra, que a origem da desigualdade entre os homens
não está no estado de natureza do homem, e sim no homem civilizado, nas
formas de dominação que eles criam e empregam. Assim ele identifica a
situação de senhor e escravo, do Discurso, com a situação de senhor
e escravo que ele observava em seu tempo, com os absolutismos europeus.
Mas Rousseau não se contentou em ter declarado esta
desigualdade, ele quer agora organizar, mudar, propor uma forma de poder
legítimo, mas não com a intenção de transportar o homem novamente para o
estado de natureza, mas reverter o quadro de desigualdade que estava
instalado.
Rousseau alega que uma vez instalada a vida em sociedade, não
é mais possível voltar ao estado de natureza. O pacto que concedeu aos
ricos e poderosos a garantia e a segurança de suas posições e bens,
transferiu o homem da liberdade para a escravidão, pois conservou a
desigualdade social entre os homens e a impossibilidade de retomar ao
estado de liberdade natural.
“Ora, como os homens
não podem engendrar novas forças, mas somente unir e orientar as já
existentes, não tem eles outro meio de
conservar-se se não formando por agregação, um conjunto de forças, que possa
sobrepujar a resistência, impelindo-as para um só móvel, levando-as a
operar em concerto” (CS, 69).
Esta será a proposta do Contrato Social. Nesta obra,
Rousseau vai estabelecer a possibilidade de formação da sociedade civil, de
modo que seja organizado o interesse de cada homem, com as regras e os
direitos positivos. Rousseau entende que para que as leis estejam em
concordância com as aspirações, é necessário que os homens as cumpram por
vontade própria e não por medo e por força. Rousseau se questiona então a
respeito do que torna legítimo uma relação de poder,
uma relação de mando e obediência. Para ele não há nada na natureza que
determine o poder de um só homem sobre o outro, e que, portanto, a força
não faz o direito, e que só se é obrigado a
obedecer a poderes legítimos.
Rousseau propõe neste livro, buscar uma forma de administração
política que fosse legitima e segura. O problema está em “Encontrar uma forma de associação que
defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum,
e pela qual cada um unindo-se a todos, só obedece contudo
a si mesmo, permanecendo tão livre quanto antes”. (CS,
69)
Assim o Contrato Social, propõe um modelo de formação
social e política no qual a liberdade e a igualdade se articulam sob a
garantia de um pacto legitimo, porque está fundado no interesse comum que
emana da vontade geral ou da vontade de todos reunidas. Com esta obra,
Rousseau procura reverter o quadro de desigualdade observada na era
absolutista, e dar ao homem a possibilidade de pensar e organizar as
decisões coletivas de forma autônoma e independente, livre do arbítrio de
um governo tirânico.
A
partir dessa leitura, parece-nos possível afirmar que a teoria política de
Rousseau, além de possuir uma continuidade temática, abarca os principais
problemas de sua época. Mas ressaltamos que esta leitura é uma sugestão
frente às várias possibilidades de conexão entre as obras de Rousseau com
as perspectivas de contexto histórico e continuidade.
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