Volta
Unde Malum: Rousseau e a
origem do mal
Rodrigo Brandão
Universidade Federal do Paraná
Em 18 de agosto de
1756, Rousseau envia a Voltaire uma carta que mais
tarde será conhecida como Carta sobre a Providência. Com esse
pequeno texto, Rousseau pretendia combater o poema de Voltaire intitulado Poema
sobre o Desastre de Lisboa ou exame do axioma “Tudo está bem”; no
entanto, a importância e a amplitude da carta é muito maior
do que pode parecer a primeira vista; importância demonstrada pelo seu
próprio autor ao enviá-la a diversas outras personagens do cenário
filosófico francês e pelo esforço em publicá-la; importância que também se
revela pela riqueza de assuntos e perspectivas que permeiam todo o restante
da produção de Rousseau.
Contra o que
precisamente escreve Rousseau? Em 1º de Novembro de 1755, um terremoto
assola a cidade de Lisboa e mata milhares de pessoas. Meses depois Voltaire
toma da pena e escreve um poema que se tornará um dos maiores ataques a
perspectiva do otimismo filosófico no século XVIII. O evento do terremoto
por si próprio não é o que mais choca os pensadores do XVIII, outras
catástrofes maiores já eram conhecidas, além de que as causas de tais
eventos sísmicos já começavam a ser descobertas; o que confere importância
a tal evento é a oportunidade que Voltaire viu nele para atacar aquilo que
considerava um escândalo metafísico: o otimismo filosófico. Tanto a
harmonia preestabelecida dos melhores dos mundos possíveis, a perspectiva leibniziana, quanto o Whatever
is, is right de Pope,
tinham se tornado o centro das atenções e o mainstream
filosófico por assim dizer. É com a publicação da Teodicéia
de Leibniz, em 1710 -em que o filósofo alemão
cunha o termo otimismo para se referir à organização do todo em vista do
melhor, isto é, a organização do mundo a partir de uma harmonia
preestabelecida que une a maior quantidade de compossibilidades
- que o otimismo filosófico entra em voga.
Aparentado dele,
mas não completamente identificável a ele, o otimismo do poeta Alexander Pope era o porta-voz da perspectiva que podemos
encontrar na filosofia do Lorde Shaftesbury, cujo
otimismo está fundado na constatação da perfeição plástica do universo.
Mesmo que em alguns aspectos elas difiram, a perspectiva metafísica e a
mensagem moral de ambas as posições, eram as mesmas: o mal propriamente
dito não existe, o que é visto como mal particular é um bem na economia do
todo, um todo harmonioso criado por Deus bom e Todo-Poderoso; sendo assim,
devemos nos conformar e não praguejar contra os céus, visto que esta é a
posição no universo que nos cabe, e assim que deve ser,
assim é o melhor. Esta era uma das principais perspectivas a respeito da
questão do mal, aquela talvez mais apreciada pelos filósofos da época, mas
não a única. Havia também a tradicional perspectiva cristã de linhagem
agostiniana.
Quanto à
perspectiva cristã, ela se baseava no acesso à verdade da queda originária
do homem devido à má utilização do livre-arbítrio. Assim o mal moral era explicado por meio do pecado original, do
afastamento de Deus e o mal natural era visto ora como punição, ora como
condição necessária após a queda. De qualquer forma, o mal já aí era
explicado em termos morais a partir do dogma do pecado original.
O longo poema de
Voltaire é um ataque a ambas as perspectivas, ao otimismo filosófico e à
resposta cristã. O grito e a lamentação não são o
resultado do orgulho, da presunção humana, como pensavam Pope e Leibniz. A queixa é a legítima reação do ser
sensível e racional perante o absurdo, a ininteligibilidade
do mal. Não há como compreender a existência do mal que se manifesta na
falha da organização do universo como um terremoto ou um tsunami; não podemos aceitar nem a resposta filosófica
otimista, que o mal não existe, que Deus age por
leis imutáveis, nem a resposta cristã, que articula pecado e punição. É
esta dupla recusa que encontramos no poema de Voltaire: recusa de aceitar
as sutilezas da metafísica do otimismo filosófico e recusa de aceitar a
crueldade do Deus cristão. Chamando os filósofos para contemplar os
horrores do terremoto, ele pergunta: vocês podem realmente afirmar que o
Deus onipotente e bondoso age por leis gerais, de modo que nada disso teria
verdadeira importância? Todo este horror “É o efeito das leis eternas
Que um Deus livre e bom necessita escolher”? O evento do terremoto e o
sentimento que ele causa bastam para mostrar que o otimismo filosófico se
engana.
Tampouco é
possível perante o espetáculo de destruição reagir como fariam os devotos:
ah! Deus puni os pecadores! Estava traçado que
tais seres infames, os lisboetas, pagariam por sues pecados! Mas que pecado
cometeram as crianças? Por que Lisboa e não Paris
ou Londres? Poder-se-ia dizer, as crianças nascem no
pecado, resultado do ato de desvio original de Adão. Mas é
justamente esse Deus cruel, que pune todos os descendentes daquele que
cometeu o pecado, que Voltaire não quer aceitar. Além do mais, como
compreender a estranha mistura feita pelo cristianismo entre pecado
coletivo e punição/salvação individual. Se o pecado adâmico se transmite a todos os homens, como pensar a punição ou a salvação
em termos individuais? Apesar do ataque à perspectiva tradicional cristã, o
alvo principal é o otimismo filosófico, tanto sua tese central, a melhor
organização do mundo, o tudo está bem, quanto seu resultado ético, a
ilegitimidade da queixa. Na verdade, o poema enuncia a retomada do velho
paradigma de Epicuro sobre o mal, explicitando a dificuldade de conjugá-lo
com a onipotência e a bondade de Deus. Admitindo as duas perfeições
divinas, não podemos compreender como um mundo sem vulcões, sem terremotos,
com menos dor e sofrimento não seria possível. Nos termos do filósofo:
Estais certo de que
a causa eterna,
Que faz tudo, que
sabe tudo, que cria tudo por ela,
Não poderia nos
lançar nestas tristes regiões
Sem sob nossos pés
acender vulcões?
Limitaria assim o
poder supremo? (VOLTAIRE, 305; 1961)
Mais uma vez
Voltaire opõe o otimismo filosófico à religião (1),
aqui na compreensão das qualidades divinas: o que seria então a onipotência
divina, se ele não pôde criar nada aparentemente melhor? O otimismo limita
Deus e afirma algo, o tudo está bem, que não se pode conjugar com o dogma
da queda do homem. Daí, a mensagem moral do otimismo, isto é, a
ilegitimidade da lamentação e a necessidade da aceitação do lugar do homem,
é negada por Voltaire. Não se trata de condenar a lamentação, ao contrário, a queixa é o resultado da ininteligibilidade do mal e da sensibilidade humana:
Quando o homem ousa
gemer por um flagelo tão terrível,
Ah! Ele não é
orgulhoso, ele é sensível. (VOLTAIRE, 305; 1961)
Nesse sentido, a
mensagem moral do otimismo se mostra pouco consoladora. Na verdade, as leis
imutáveis da necessidade, as sutilezas das cadeias dos seres apenas
ultrajam ainda mais aquele que sofre. Esses devaneios profundos, como
Voltaire os chama, não diminuem a perplexidade perante o mal, tais
sutilezas não “amenizam nossos males”.
Enfim, deixando de
lado os pormenores do poema, ele é um ataque ao otimismo, o momento da
revolta metafísica de Voltaire, momento que não encontra resposta alguma
para a questão. Não resta nada ao homem neste labirinto, o enigma humano é
indecifrável, vivemos em dor e em dor provavelmente morreremos, mas há a
esperança. Esperança da qual nada sabemos, e que o
autor não se esforça em explicar. Ao fim do poema não resta muita coisa,
talvez apenas o sofrimento e o absurdo.
É contra tudo isso
que escreve Rousseau. Sua Carta sobre a Providência é uma defesa do
otimismo e um ataque ao desespero de Voltaire. Mais do que isso, sua carta
inaugura um novo modo de tratamento da questão do mal, ao deslocá-la de
Deus ao homem. Além disso, a partir dessa pequena carta é possível se
orientar dentro da obra do genebrino. É possível retroceder aos dois
discursos, pois ela traz teses que se encontram neles, mas também é
possível identificar as bases do que mais tarde será a Profissão de Fé
do Vigário Saboiano, no Emílio,
como também aspectos ligados ao Contrato Social. Dos três grandes
eixos que organizam o texto (I) a defesa da providência, (II) a necessidade
da profissão de fé civil e (III) a antropologização
da questão do mal –, o primeiro e o último nos interessam por agora.
1. A defesa do otimismo
filosófico
A defesa de Leibniz e Pope retoma ponto a ponto as principais teses do
otimismo filosófico: a regularidade do universo, as leis da natureza, o
princípio de razão suficiente, a continuidade do todo, a
inexistência do vácuo. Ela defende também sua mensagem ética, como a
confiança numa certa providência e o apaziguamento do homem perante eventos
que não pode compreender. Segundo o genebrino, o poema de Voltaire o
desespera ainda mais. Perante os males, a filosofia de Pope
e Leibniz é consoladora, enquanto que a perspectiva de Voltaire é a do
desespero. Rousseau acusa Voltaire de ser cruel e afligir ainda mais
aqueles que sofrem com a falta de perspectiva futura e com a insolência de
alguém que, em boas condições, põem-se a falar das mazelas alheias.
Aquilo que Voltaire apresenta no
poema como evidência contra a regularidade do universo, contra as leis da
natureza, Rousseau considera “apenas um sofisma”. Os terremotos, os
vulcões, e toda sorte de desastre natural, que aparecem para Voltaire como
desordem, como quebra da regularidade natural, é para Rousseau, ao
contrário, dentro do bom e velho otimismo filosófico, algo que
desconhecemos, mas que faz sim parte da regularidade do todo. O que está
por trás aqui é a mesma idéia que mais tarde será utilizada para negar a
existência de milagres, qual seja: afirmar algo como fora da regularidade
natural, pressuporia o conhecimento de toda a regularidade da natureza.
Ora, tal afirmação é impossível. Não podemos dizer que conhecemos toda a
natureza, de modo que não podemos afirmar algo como contrário à sua
regularidade. O fato de não compreendermos algo, não significa que ele não
esteja na ordem das coisas, não quer dizer que não existam leis que o
regulam, mas apenas que não conhecemos tais leis:
Longe de pensar que
a natureza não seja submissa à precisão das quantidades e das figuras,
acreditaria, ao contrário, que apenas ela segue com rigor essa precisão,
porque só ela sabe comparar exatamente os fins e os meios, e adequar a força à resistência. Quanto a essas pretensas
irregularidades, pode-se porventura duvidar que cada uma delas tenha sua
causa física, e seria suficiente não perceber essa causa para negar que
exista? (ROUSSEAU; 2002, 16)
Portanto, afirmar que coisas
acontecem sem causa alguma é um disparate! O fato de não encontrarmos uma
causa não significa que ela não exista, apenas não está ao nosso alcance.
Afirmar a existência de efeitos sem causas é negar um dos princípios
básicos da filosofia: o princípio de razão suficiente.
Como se vê, Rousseau saiu em defesa
de Leibniz. Há que se respeitar o princípio de razão suficiente ao se
filosofar. Inversamente, também é impossível distinguir “os acontecimentos
que têm efeitos daqueles que não os têm”. Antes de qualquer coisa, devemos
saber que todos os efeitos têm causa, mesmo que não a percebamos, e que
tudo que existe tem algum efeito, este também muitas vezes imperceptível.
Como diz Rousseau:
Todo acontecimento
parece-me ter necessariamente algum efeito, ou moral, ou físico, ou um
composto dos dois, que nem sempre, contudo, são percebidos, porque a
filiação dos acontecimentos é ainda mais difícil a seguir do que a dos
homens. (ROUSSEAU; 2002, 17)
Para Rousseau, tudo se pauta por
leis, tudo está dentro da regularidade da natureza. Aos olhos dela, “a
curva mais estranha” é tão regular “quanto um círculo perfeito aos nossos
olhos.” Como no Discurso de Metafísica de Leibniz, em que por detrás
das mais estranhas e disformes figuras há uma regra que poderia um dia ser
conhecida, Rousseau crê na existência de uma razão, de uma regularidade e
de leis mesmo nos fenômenos mais incompreensíveis e aparentemente
irregulares. A natureza é um todo regulado. Não há efeito sem causa,
acontecimento sem razão alguma, nem evento sem qualquer efeito, tudo está
ligado. Como diz Rousseau: “a poeira que uma carruagem ergue pode nada
fazer à marcha do veículo e influenciar a do mundo; mas como não há nada de
estranho no universo, tudo o que nele se faz, age necessariamente sobre o
próprio universo”. (ROUSSEAU; 2002, 18)
Alguns efeitos podem ser
imperceptíveis, mas, novamente, não se trata de não conferi-lhes
realidade. Nas palavras do autor: “se nem todos os acontecimentos têm
efeitos sensíveis, parece-me incontestável que todos têm efeitos reais, dos
quais a mente humana perde facilmente o fio, mas que nunca são confundidos
pela natureza.” (ROUSSEAU; 2002, 18) Contra essa
regularidade e continuidade do mundo poderia se opor a existência do vácuo,
de espaços não preenchidos entre os elementos da criação, mas, mais uma
vez, se Voltaire se mostra convencido da existência do vácuo, se para ele
as experiências lhe comprovaram que o vácuo existe, para Rousseau não se
trata propriamente de uma demonstração conclusiva. Aqui Rousseau lança mão
de um interessante artifício. Para
não aceitar a existência do vácuo, tendo em vista que Voltaire conhecia
muito mais a respeito da questão do que ele, e considerando as
experiências, Rousseau afirma que como outrora algo parecia firme e
verdadeiro e foi substituído por uma outra perspectiva, agora podemos
afirmar que essas experiências apenas dão certo,
salvam os fenômenos, em linguagem de epistemólogos,
isto é, pode ser que futuramente surja uma outra teoria que restabeleça a
inexistência do vácuo. Enfim, Voltaire, e Rousseau afirma que os céticos também,
desconsideram essas objeções, tornando-se dogmáticos, escondendo em suas
pretensas dúvidas diversas afirmações. Noutros termos, os do próprio autor,
“qual o meio de ser acreditado, quando se vangloria de nada saber, ao
afirmar tantas coisas?” (ROUSSEAU; 2002, 19)
O desespero de Voltaire é
insustentável, a noção mesma de um Deus traz consigo a providência, de
acordo com Rousseau. Dizer o que Voltaire diz é atacar Deus. É negar sua
bondade em favor de sua onipotência. Por que não o contrário? Por que não
uma bondade ser preferida à onipotência? Talvez porque o homem se considere
demais, de um ponto de vista demasiado particular. Será que o todo não é
preferível à parte? Não seria melhor o bem do todo do que a mera satisfação
da parte? Eis aí mais um engano da perspectiva de Voltaire. Ele falseia o
otimismo quando diz que seu lema é o tudo está bem, não é isto que o
otimismo diz. O que ele verdadeiramente diz é que o todo está bem,
não tudo é o melhor, o todo é o melhor, ou ainda, “Tudo está bem
para o todo”. Voltaire estaria
confundido mal particular, que ninguém, segundo Rousseau, nega a
existência, e o mal geral, este sim inexistente de acordo com o otimismo.
Nas palavras dele: “A questão não é saber se cada um de nós sofre ou não,
mas sim se é bom que o universo exista, e se os males são inevitáveis na
constituição do universo.”(ROUSSEAU; 2002, 20)
Como vemos desde o paradigma de
Epicuro, o que está em jogo no problema do mal é a noção de Deus e da
providência. Para Rousseau, a questão parece decidida:
Se Deus existe, ele
é perfeito; se é perfeito, é sábio, poderoso e justo; se é sábio e
poderoso, tudo está bem; se ele é justo e poderoso, minha alma é imortal...
(ROUSSEAU; 2002, 21)
Se Deus existe, segue-se o otimismo
filosófico, e como diz Rousseau, “Não se prova a existência de Deus pelo
sistema de Pope, mas o sistema de Pope pela existência de Deus.” Se Deus existe, então
este é o melhor dos mundos possíveis. A questão se torna a existência de
Deus, e aqui Rousseau lança mão de um expediente diverso. Perante as
dificuldades que se impõem a respeito da
existência de Deus, Rousseau fica com o que ele chama da prova do
sentimento. A razão suspende o juízo a respeito da existência do Ser
Supremo, mas o sentimento traz algo ao qual ele não pode senão assentir.
Ora, quem conhece as preocupações deístas de Voltaire, percebe que ele concordaria aqui
com Rousseau. Na verdade, o expediente utilizado pelos dois filósofos é o
mesmo, a disjunção entre crença e demonstração: há crenças que se
estabelecem a despeito de não terem demonstrações, como há demonstrações
que não se tornam crenças. Voltaire, como Rousseau, não aceita o ateísmo.
Mas o que Voltaire não aceita é a passagem que
Rousseau efetua da existência de Deus ao otimismo filosófico e à
imortalidade da alma.
O Deus de Voltaire, ao que tudo indica, não se importa muito com o mundo cá embaixo,
talvez nem seja tão bondoso, ou tão poderoso, de modo que o todo mesmo não
é assim tão organizado. Já o de Rousseau, também não dá muita importância
para a vida cá embaixo, mas organizou o todo da melhor forma possível.
Nesse sentido, a Providência que Rousseau defende é uma providência
geral, que age por leis gerais, e não influencia a cada momento aquilo
que se passa com os homens. É o que se lê na passagem seguinte:
Pode-se supor que
os acontecimentos particulares aqui em baixo não são nada aos olhos do
senhor do universo, que sua Providência é apenas universal, que ele se
contenta em conservar os gêneros e as espécies e presidir ao todo, sem se
inquietar com a maneira como cada indivíduo passa a sua curta vida. Um rei
sábio, que quer que cada um viva feliz em seus Estados, tem necessidade de
informar-se se os cabarés ali são bons? (ROUSSEAU; 2002, 21)
Devotos e filósofos entendem mal a
providência, por isso estão sempre ou a condena-la,
como os filósofos, ou fazendo-a
intervir nas coisas mundanas, como fazem os devotos. Eis aí dois erros que
devem ser evitados: agir como Voltaire, que culpa os céus pelos males do
mundo, ou como os devotos, imiscuindo a providência nos assuntos mundanos.
Como no exemplo do bandido Cartouche, se a algum
acidente o tivesse matado quando criança, praguejariam
os filósofos, “mas que crime cometeu tal criança?”, mas como sobreviveu,
ainda praguejam os filósofos, “por que é que deixaram-no viver?” Quanto ao
devoto, com a morte da criança, ele diria: “Deus pune o pai com a morte do
filho!”. E com a sobrevivência do criminoso, o devoto afirma: “Deus
conservou sua vida para que punisse o povo!”. Enfim, para os filósofos,
qualquer que seja o resultado a providência está sempre errada, e para os
devotos ela tem sempre razão em todos os assuntos. A defesa de uma
providência universal e não particular, de um Deus que se preocupa com o
todo e não com as singularidades das partes, como faz Rousseau, é, segundo
o autor, um ataque aos dois partidos que se digladiavam: aquele dos philosophes e o dos apologistas. Ora, é preciso
saber que essa providência geral organizou tudo por leis gerais; fez com
que “cada ser material esteja disposto o melhor possível em relação ao
todo, e cada ser inteligente e sensível o melhor possível em relação a si
próprio.” Em outros termos, o mundo material está perfeitamente disposto em
relação ao todo, e o homem o melhor disposto em relação a si mesmo, isto é,
“que para aquele que sente sua existência, mais vale existir que não
existir.” (ROUSSEAU; 2002, 22)
É essa providência que tem de ser
defendida, não aquela faz-tudo dos devotos, nem aquela caluniada pelos
filósofos. Mas, como vimos, tudo está assentado
sobre uma prova dos sentimentos. Ou seja, a existência de Deus, donde se
derivam as verdades acima, só é atingida por meio de uma prova de
sentimento que não pode se tornar uma demonstração (2). E Rousseau já avisa os mais incautos:
Não proíbo que isso
que chamo prova de sentimento seja chamado preconceito, e não ofereço essa
obstinação de crença como um modelo, mas, com uma honestidade talvez única,
apresento-a como uma disposição invencível de minha alma, que nada
jamais poderá sobrepujar, da qual, até agora, nada tenho a lastimar, e que
não se pode atacar sem crueldade. (ROUSSEAU; 2002, 24)
2. A antropologização
da questão do mal
Deixemos de lado aquilo que
concerne à religião civil, que não é propriamente nosso objeto aqui, e
voltemo-nos à antropologização da teodicéia, ao deslocamento da questão do mal de Deus
para o homem, da metafísica para história e a política. É o que Rousseau
faz na passagem seguinte:
Não vejo como se possa
buscar a fonte do mal moral em outro lugar que não
no homem livre, aperfeiçoado, portanto corrompido; e, quanto aos males
físicos, se a matéria sensível e impassível é uma contradição, como me
parece ser, eles são inevitáveis em todo sistema do qual o homem faça
parte, e então a questão não é por que o homem não é perfeitamente feliz,
mas por que ele existe. (ROUSSEAU; 2002, 13)
Feita a defesa da providência, ou
seja, defendidos os principais artigos do otimismo filosófico, para onde se
encaminha a perspectiva de Rousseau? Se a carta fosse apenas mais uma
simples defesa do otimismo de Leibniz e Pope,
pouca importância ela teria no debate com Voltaire, cuja devoção ao assunto
já tinha feito com que percorresse diversas defesas e refutações do
otimismo. O interessante mesmo é notar é que existem dois níveis, ligados
um ao outro, em que a questão do mal é tratada: (i) aquele em que a defesa
do otimismo e da providência é feito, o nível metafísico e (ii)aquele que poderíamos
chamar de nível antropológico. Entre esses dois níveis, há uma variação
quanto ao tratamento do mal moral e do mal
natural. Na perspectiva otimista, no nível metafísico, mal
moral e mal natural, enquanto entendidos como males gerais, dentro da
economia do todo, não existem. Não compreender certos eventos, não
conseguir identificar suas causas, não significa que estejam fora da
regularidade ou que não tenham causa alguma, mas tão somente revelam a
limitação humana, mostram a incapacidade do homem
descobrir todas as leis que governam o todo. No final das contas,
terminada a defesa do otimismo, o Deus de Rousseau está absolvido de
qualquer responsabilidade pelo mal no mundo. Ainda no nível metafísico,
ainda quando o foco da questão está em Deus, ele não é o autor dos supostos
males – existindo Deus, algo sobre o qual Rousseau não tem duvida, este é o
melhor dos mundos possíveis, criação de um senhor sábio e bondoso, e o mal,
qualquer que ele seja, não tem realidade.
No entanto, em relação ao homem, o
mal tem sim realidade; sua realidade e seus efeitos encontram sempre suas
raízes na ação humana, é no homem livre que devemos buscar a fonte do
mal. Nesse nível, a questão é
redimensionada. O mal moral é resultado das
escolhas humanas, o que não surpreende ninguém, mas o interessante é que
mesmo o mal natural é remetido ao mal moral, à liberdade humana. O que
verdadeiramente surpreende na perspectiva de Rousseau sobre o mal é que,
feita a defesa da providência, e Deus absolvido, Rousseau identifica a
fonte do mal moral na liberdade humana e, por fim,
remete o próprio mal natural, que pareceria escapar à resposta ao primeiro
tipo de mal, ao mal moral. Em outras palavras, articula o mal natural com o
mal moral de modo a conferir um novo sentido à
questão.
Rousseau se esforça em mostrar que
mal natural e mal moral estão ligados, ou melhor,
se esforça em evidenciar como “a maior parte de nossos males físicos são
mais uma vez obra nossa”. Trata-se agora de culpar o homem,
responsabilizá-lo pelos males, por meio da articulação entre mal moral e mal natural:
Quanto a mim, vejo em toda parte que os males a que a natureza nos
submete são muito menos cruéis que os que nós a eles acrescentamos.
(ROUSSEAU; 2002, 14)
Enfim, “o abuso que fazemos da vida
que a torna penosa”. (ROUSSEAU; 2002, 15)
Resultado desse processo: o homem é culpado! Mesmo os males físicos,
aqueles que aparentemente estão fora da alçada humana, são remetidos as escolhas do homem. O problema não é o terremoto em
Lisboa, o problema é Lisboa. Não se trata de lastimar um evento como um
terremoto, uma erupção vulcânica, trata-se de encontrar a culpa por esses
males no modo de vida humano que possibilita tais desastres. Trata-se de
identificar qual é processo que levou os homens a se tornarem o que são, a
viverem como vivem, a preferirem as cidades ao
campo e a se amontoarem em casas de seis ou sete andares. O homem é
culpado, seus males estão ligados à sua corrupção. Ora, culpar o homem
pelos males do mundo e identificar uma corrupção em sua trajetória não é
uma resposta estranha à história do problema do mal. Isto é exatamente o
que faz Agostinho quando trata a questão na sua querela com os maniqueus; ele transfere o foco da questão de Deus ao
homem. Tradicionalmente, a questão do mal punha em xeque os atributos de
Deus. O paradigma desse problema se encontra no fragmento de Epicuro,
segundo o qual a existência do mal é incompreensível caso suponhamos a
existência de um Deus bom e onipotente. Os maniqueus,
perante a realidade do mal, afirmavam que o mundo era governado por dois
princípios: um bom e outro mau. O princípio de bem seria Deus e o princípio
do mal seria uma matéria informe co-eterna a Deus. Ora, como é fácil notar,
essa resposta não poderia ser aceita por Agostinho. Nos termos do bispo de Hipona, o Deus dos maniqueus
não seria onipotente, porquanto não pode acabar com o mal, nem seria o
criador do universo, pois algo escapa à sua criação, seria, ao fim e ao
cabo, um Deus perverso e limitado, ambas
perspectivas inaceitáveis.
Para Agostinho, o problema está em
focar a questão em Deus e não no homem. Deus é bom e onipotente e o mal é
resultado da nossa ação, de nosso afastamento de Deus. A bem da verdade, o
mal não tem realidade, ele não é propriamente, ele não é substância,
ele é apenas um movimento, uma perversão, um desvio, um
afastamento, é o voltar as costas a Deus. A
questão é que afastado da luz, o homem tende a confundir os objetos e
afastar-se ainda mais de Deus. Se cabe ao homem
algum esforço para retornar a Deus, encontrar verdadeiramente o caminho que
leva até Ele depende de uma iluminação do caminho que, esta sim, não
depende dele. Lançados nas trevas, mesmo que busquemos o caminho, errar é
nossa tendência. Se iluminar o caminho depende de Deus, e ele não o faz a todos, as trevas que agora nos encontramos é culpa
nossa, fomos lançados nelas pela corrupção da vontade livre, pelo seu
desvio. O pecado de Adão e Eva é o momento originário desse afastamento que
só pode ser redimido pelo próprio absoluto feito parte,
Cristo. Todos os males morais são resultado de nosso
livre-arbítrio, mais ainda, são resultado de uma liberdade
corrompida, que agora tende sempre a errar. E os males naturais, por sua
vez, são a punição pelos males morais, ou seja, dor, morte e sofrimentos de
toda a sorte são o preço que pagamos pela mordida
na maçã, pela desobediência a Deus, pela curiosidade e pela vontade de se
igualar ao criador. Culpa do homem, corrupção (desvio/afastamento) em sua
trajetória e articulação entre mal moral(pecado) e
mal natural(punição), eis a estrutura da
resposta agostiniana ao problema do mal.
É importante notar que se em seu
momento metafísico Rousseau se filia às teses do otimismo filosófico, à teodicéia de Leibniz, em seu momento antropológico, as
semelhanças estruturais entre sua resposta e a agostiniana são muitas. A
culpa é do homem, ele é um ser corrompido, e a inteligibilidade do mal
passa pela articulação de mal moral e mal natural.
Contudo, as semelhanças são apenas estruturais, em seus conteúdos,
Rousseau elabora uma laicização da
estrutura da queda ou sua naturalização, não se tratam mais de
dogmas religiosos ao qual teríamos acesso pela revelação, mas sim de
aspectos ligados ao homem, sua natureza e sua vida em comunidade, ao qual
temos acesso pelo raciocínio, pela razão, e pela própria experiência, pela
história e pela observação. Comparativamente, do afastamento de Deus pelo
pecado original, passamos, em Rousseau, ao afastamento da natureza pela
associação entre os homens, da queda, da expulsão do paraíso, à corrupção
do homem em sociedade, e, finalmente, da articulação entre pecado (mal moral) e punição (mal natural), passamos à
articulação entre mal moral (escolhas humanas) e mal físico (resultado
daquelas escolhas).
Para compreender o sentido da
corrupção do homem de que fala Rousseau, corrupção que é associada ao aperfeiçoamento,
é preciso prestar atenção ao que o autor condena na pequena passagem da
carta que agora nos atemos. Quais são os alvos do ataque de Rousseau? Os
habitantes de Lisboa, que se amontoaram em casas de seis ou sete andares,
os infelizes que se arriscaram no “desastre por querer pegar, uns suas
roupas, outros seus papéis, outro seu dinheiro”. (ROUSSEAU; 2002, 13), os “senhores da cidade, os únicos homens que
levamos em conta”. Eis aí o aperfeiçoamento, as cidades. O homem citadino,
aperfeiçoado, afastado da natureza é aquele se corrompeu. Uma vida mais
próxima da natureza lhe renderia mais felicidades do que aquela que pensa
encontrar nos acotovelamentos da vida citadina. Mas há gradações dentro
dessa corrupção da vida na cidade, no século XVIII visto como o locus do aperfeiçoamento e do progresso. Já que
há graus de aperfeiçoamento na cidade, há também graus de corrupção. Nessa
gradação de aperfeiçoamento e corrupção, o posto mais alto é dividido entre
os ricos e os cientistas, artistas e literatos. Sobre a quem Voltaire teria
consultado para defender a opinião de que a vida é um mal, Rousseau
comenta:
Aliás, Senhor, quem devo acreditar que consultastes sobre isso?
Ricos, talvez, saciados por falsos prazeres mas
ignorando os verdadeiros, sempre enfadados com a vida e sempre temendo
perdê-la; talvez pessoas de letras, de todas as espécies de homens o mais
sedentário, o mais malsão, o mais reflexivo e, consequentemente, o mais
infeliz. (ROUSSEAU; 2002, 15)
Aqui já é possível precisar melhor
as qualidades desse homem aperfeiçoado e corrompido: eles ignoram os
verdadeiros prazeres, entendiam-se com a vida,
temem a morte, vivem no ócio, portanto, têm saúde fraca e não retiram da
reflexão senão a infelicidade. Comparados a esses homens, o artesão, o burguês
o camponês - que constituem a maioria dos homens e, por isso mesmo,
devíamos em primeiro lugar consultar quando se tratar de pedir o testemunho
da humanidade – têm mais saúde, são menos sedentários, são mais úteis e
são, portanto, mais felizes. O aperfeiçoamento e a corrupção, estreitamente
ligados, têm seu máximo desenvolvimento nas figuras mais aperfeiçoadas
dentro da estrutura social, os ricos e os hommes
des lettres.
Desse modo, o problema do mal ganha
nova envergadura. Apesar da articulação entre mal
moral e mal natural não ser de todo nova, a laicização
ou naturalização dessa articulação - que abandona os dogmas cristãos do
pecado original, substituindo-os pela natureza, a sociedade e a história,
ainda que mantenha a sua estrutura - confere novos rumos ao debate acerca
do mal. Culpar o homem, da forma que o faz Rousseau, abre as portas para
uma nova compreensão do problema, permitindo que se veja
certos eventos de uma outra perspectiva, segundo a qual a associação entre
os homens e os conflitos daí provenientes, assim como todas as escolhas
feitas dentro dessa associação, passem a ser o objeto da investigação.
Referências Bibliográficas
ROUSSEAU, J-J. Carta sobre a Providência. In: Escritos
sobre Religião e Moral. Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução. n.º 2. Unicamp. Campinas, 2002
VOLTAIRE, Oeuvres Complètes. Ed.
de la Pléiade. Gallimard. Paris, 1961.
DESTAIN, C. Jean-Jacques
Rousseau : l’au-delà du politique. De la solitude des origines
humaines à la solitude autobiographique. Ousia. Bruxelles,
2004.
Notas
(1) Este é um
expediente comum às batalhas filosóficas de Voltaire: opor seus inimigos de
modo que, atacando-se mutuamente, encontrem-se ambos enfraquecidos
quando do ataque do filósofo.
(2) É justamente a disposição invencível da
alma, enquanto prova de sentimento, algo que não pode ser transformado em
demonstração, que exige a tolerância. A tolerância, a separação entre
estado e religião e o estabelecimento de máximas sociais constituem os principais
artigos da profissão de fé de Rousseau, é o resultado de uma perspectiva
que apóia toda sua argumentação numa prova de sentimento, num convencimento
que prescinde da demonstração.
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