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Projeto de lei prevê cobrança de mensalidades em universidades públicas de São Paulo

Proposta cria o Programa Siga, por meio do qual o estudante receberia um empréstimo, que deveria pagar depois de formado

Acaba de ser protocolado na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) o projeto de lei 672/24 que abre a possibilidade de cobrança de mensalidade em instituições de ensino superior públicas do estado – como a Unicamp, a Universidade de São Paulo (USP) e a Uiversidade Estadual Paulista (Unesp). A proposta cria o Programa Siga (Sistema de Investimento Gradual Acadêmico), por meio do qual o estudante receberia um empréstimo, que deveria pagar depois de formado. O projeto de lei foi duramente criticado por educadores, que preveem impactos negativos da medida para estudantes de baixa renda e risco de aprofundamento da desigualdade no acesso à educação.

“Trata-se de uma proposta por demais inapropriada”, reagiu o reitor da Unicamp Antonio José de Almeida Meirelles. Para ele, o projeto desconsidera a garantia constitucional de gratuidade no ensino superior público brasileiro e “não faz jus, de forma alguma, ao papel que as universidades estaduais de São Paulo têm no desenvolvimento econômico e social de nosso estado”.

O reitor lembra que pessoas ligadas à comunidade acadêmica da Unicamp criaram cerca de 1,3 mil empresas – das quais 1.156 estão ativas –, que geraram faturamento de R$ 26 bilhões em 2023. “Os empregos, a renda, a riqueza e os impostos que estas empresas geram significam um imenso retorno do investimento que o estado de São Paulo faz na Unicamp”, pondera o reitor. “Isso, sem contar nossas ações importantes junto ao setor público, sendo a mais recente o início da instalação, em parceria com as prefeituras da Região Metropolitana de Campinas (RMC), de um radar meteorológico para monitorar eventos climáticos extremos e permitir ações da defesa civil que diminuam os prejuízos destas ocorrências para as pessoas e a região”, acrescenta.

Meirelles lembrou ainda que a Universidade empreende enorme esforço para ampliar a inclusão formando com méritos alunos de baixa renda, provenientes do ensino médio público e de minorias étnico-raciais. “Se há algo que nosso desenvolvimento, nossas empresas privadas e nosso setor público requerem cada vez mais é ciência, tecnologia e inovação. Isso não se faz sem formar gente de qualidade nas universidades e sem o conhecimento que nossas instituições produzem”, argumenta. “Esse projeto vai contra todo o êxito obtido por nosso estado na construção do principal sistema de ensino superior, de ciência e de tecnologia do país e da América Latina, e que goza de amplo reconhecimento no mundo”, finaliza o reitor.

Para o pró-reitor de Graduação da Unicamp, Ivan Toro, a medida é elitista e caminha na contramão das políticas de inclusão, abrindo brechas para o endividamento de estudantes e famílias. “Longe de levar a uma justiça social, esse projeto contribui para a não inclusão das camadas socialmente menos favorecidas da população e coloca um endividamento inaceitável na classe média, sem nenhuma garantia de melhora no ensino superior”, avalia o pró-reitor. “Tenho a convicção de que os deputados de São Paulo e o governo do estado não vão pactuar com esta medida elitista e desnecessária”, afirma.

A pró-reitora de Pós-Graduação da Unicamp, Rachel Meneguello diz ser um engano imaginar que a cobrança de mensalidade conseguirá financiar instituições do porte das universidades paulistas. “O projeto é mais um exemplo dos retrocessos a que o ensino e a ciência estão insistentemente expostos já há alguns anos. A onda de pressões para cobrança de mensalidade nas universidades públicas e a privatização do ensino são constantes nos setores das elites políticas – e de outros – que não se informam e imaginam que mensalidades financiam instituições de ensino e pesquisa com a envergadura das universidades públicas paulistas”, disse Meneguello.

“Propor esquemas de créditos contratados, juros, correção de empréstimo etc, como prevê o artigo 3º do projeto, são uma afronta aos princípios e às responsabilidades do estado democrático na formação de seus cidadãos no sistema publico de ensino”, continua a pró-reitora.

Para Rachel Meneguello, as universidades públicas paulistas têm cumprido amplamente seu papel na transformação da sociedade brasileira por meio de políticas de inclusão e ações afirmativas voltadas aos alunos oriundos dos segmentos mais pobres da população. “Ademais, é de surpreender que um deputado da Assembleia Legislativa de São Paulo apresente um projeto de lei inconstitucional. Cabe a ele fazer a leitura atenta dos artigos 205 e 206 da Constituição Federal de 1988”, reclama.

Fachada da Assembleia Legislativa de São Paulo; projeto foi protocolado na terça-feira (17
Fachada da Assembleia Legislativa de São Paulo; projeto foi protocolado na terça-feira (17)

Cunho privatizante

Autor de obras como Educação da Miséria: particularidade capitalista e educação superior no Brasil e As reformas do ensino superior no Brasil: o público e o privado em questão, o professor da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp Lalo Watanabe diz que o projeto tem cunho privatizante num setor já bastante ocupado pela iniciativa privada. “Cerca de 75% das matrículas feitas no ensino superior já são realizadas no setor privado. E o estado de São Paulo é um dos mais privatizados do país”, argumenta o professor.

Assista ao programa Analisa com o professor Lalo Watanabe.

Segundo Watanabe, é perigoso comparar os modelos de financiamento das universidades paulistas com o que é feito nos Estados Unidos, como foi apresentado no projeto. “Primeiro, é preciso entender que não é porque o modelo foi adotado nos Estados Unidos que pode ser aplicado no Brasil”, adverte. “São realidades muito diferentes”, lembra.

“Depois, não é possível fazer essa comparação por conta do critério de pagamento. Lá existe o modelo em que se paga mesmo nas escolas públicas, mas há históricos de grandes endividamentos, resultando num sistema que não prejudica os estudantes apenas na entrada, mas durante o curso e por longos períodos depois disso”, adverte. “O Reino Unido adotou modelo semelhante e hoje tem uma juventude pós-universitária cada vez mais endividada”, acrescenta.

“Esse projeto não é democratizante e não vai expandir as condições de acesso e permanência na universidade das pessoas que mais precisam”, sustenta. 

Os professores da Faculdade de Educação Lucas Pelissari (à esquerda) e Lalo Watanabe: cobrança de mensalidade em um setor bastante ocupado pela iniciativa privada
Os professores da Faculdade de Educação Lucas Pelissari (à esquerda) e Lalo Watanabe: cobrança de mensalidade em um setor bastante ocupado pela iniciativa privada

Professor do Departamento de Políticas, Administração e Sistemas Educacionais (Depase) da FE, Lucas Pelissari lembra que esta não é a primeira vez que propostas deste tipo são apresentadas nas casas legislativas do país.

“Trata-se de uma agenda que vai e volta nos governos neoliberais. Entra ano, sai ano, os governos pouco comprometidos com uma agenda de inclusão e de democratização do ensino apresentam essa proposta. No Paraná, por exemplo, existe uma proposta quase que irrestrita de privatização da educação básica, com a privatização até mesmo na gestão de escolas, num modelo que acabou sendo transportado para São Paulo. Portanto, não se trata de nada muito novo”, afirma Pelissari.

“O que se vê nesta proposta é a possibilidade de cobrança de mensalidade, mas o que é mais grave é que isso se dará por meio de empréstimo por amortização, o que acaba vinculando o estudante – sobretudo o mais pobre – a toda uma cadeia financeira de empréstimos e de especulação financeira num sistema muito duvidoso, até porque o projeto não detalha como isso iria acontecer. Isso tudo torna a proposta mais séria e preocupante”, diz.

Cobrança é inconstitucional

O projeto foi protocolado nesta terça-feira (17) e ainda não tem data para seguir para as comissões, mas a expectativa é que suas chances de prosperar são remotas, segundo avaliação da advogada Renata Cezar, especialista em Direitos Sociais à Saúde, Educação e Moradia e coordenadora do setor jurídico da deputada estadual Monica Seixas.

De acordo com Cezar, o artigo 206, inciso IV da Constituição Federal é claro quando trata da gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais. A Súmula Vinculante 12 do Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu que esse tipo de cobrança é inconstitucional. “O ensino público e gratuito é uma das cláusulas pétreas da Constituição, ou seja, é imutável. Também é importante ponderar que a proposta legislativa é desarrazoada por tentar modificar o sistema definido por norma legislativa superior”, argumenta.

A advogada diz que projetos semelhantes já tramitam na Alesp, em outras casas legislativas do país e no Congresso Nacional – e todas foram barradas na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Essa comissão é a responsável por avaliar a constitucionalidade do projeto para que ele siga ou não em tramitação até a votação. “Não temos preocupação com esse projeto, que certamente será barrado na CCJ da Alesp e não tramitará”, afirma ela.

Assista ao programa Analisa:

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