A crescente conscientização ambiental e a demanda dos consumidores têm levado empresas de diversos setores a uma corrida para desenvolver produtos mais sustentáveis. Buscar alternativas requer a adoção de práticas de produção que minimizem o impacto ambiental, como o uso de matérias-primas renováveis, a redução de emissões de carbono e a implementação de processos de reciclagem e de reutilização.
Atenta a esta demanda, a cientista brasileira Nemailla Bonturi encontrou na Estônia um terreno fértil para fundar, em 2022, junto do sócio Petri-Jaan Lahtvee (natural da Estônia e professor de Tecnologia de Alimentos e Bioengenharia na Universidade de Tallin – TalTech), a ÄIO, uma empresa-filha da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que atua no desenvolvimento de óleos a partir de resíduos, em especial a serragem.
A pesquisadora e empreendedora cursou mestrado e doutorado na Faculdade de Engenharia Química (FEQ) da Unicamp, onde teve os primeiros contatos com leveduras oleaginosas. Foi ainda no doutorado em Engenharia Química que Bonturi começou a fazer testes com hidrolisados do bagaço de cana em um projeto de pesquisa, em parceria com a Universidade de Luleå, na Suécia, em que passou a usar resíduos de hidromassa de madeira para gerar óleos para produzir biocombustível.
Após o término de seu doutorado, em 2016, em meio a um cenário de instabilidade política e com crescentes cortes de recursos para a ciência no Brasil, a pesquisadora se mudou para a Estônia para atuar como docente e pesquisadora na Universidade de Tartu, trabalhando com fermentação de leveduras e microorganismos, e também no campo da biologia sintética, a partir de conhecimentos e da experiência que adquiriu durante o período de doutorado no Brasil. Atualmente, além de ser uma das fundadoras da ÄIO, ela também é docente no Departamento de Química e Biotecnologia da Universidade de Tallinn (TalTech).
“Não posso negar que, de alguma forma, a ÄIO começou na Unicamp”, diz Bonturi sobre a relação com a Universidade. A ÄIO foi cadastrada, então, como uma empresa-filha da Unicamp, que são os empreendimentos formados por alunos, ex-alunos, pesquisadores, docentes em atividade ou aposentados, além empresas e startups que tenham sido incubadas na Incubadora de Empresas de Base Tecnológica da Unicamp (Incamp) ou criadas a partir de uma tecnologia ou conhecimento desenvolvido na Universidade, as chamadas empresas spin-off.
Entre os motivos que a levaram a ÄIO a manter a conexão com o ecossistema de inovação da Universidade, a empreendedora destaca o networking e o sentimento de pertencimento à comunidade da Unicamp. “Adoraria participar de eventos, ter uma presença bem mais forte, porém a geografia não me permite”, afirma.
As empresas que integram essa comunidade de empreendedorismo e inovação têm acesso a uma rede de apoio e podem participar de diversas atividades envolvendo parceiros, empreendedores e a comunidade acadêmica. Essas ações estão inseridas nas iniciativas da Inova Unicamp, que tem como objetivo impulsionar o ecossistema de inovação e empreendedorismo da Universidade.
Produtividade mais rápida
O foco da ÄIO é o desenvolvimento de óleos a partir de leveduras oleaginosas para as áreas de alimentação, ração animal e cosméticos. A matéria-prima usada pela empresa é composta basicamente por resíduos, como permeado de lactose, resíduos de produção de bebida, de produção de pães e confeitaria, resíduo de comidas (frutas e vegetais), além de açúcares extraídos de serragem, que é o maior resíduo produzido na Estônia, gerando um produto mais sustentável e competitivo.
“Para que o preço possa competir com óleo de palma, de coco ou gordura animal, ao invés de usarmos açúcares ou substratos puros, fazemos o upcycling. Reciclamos resíduos de empresas ou da agricultura que, tecnicamente, teriam valor negativo, uma vez que as empresas precisam pagar para descartar esses resíduos”, explica Bonturi.
Além do preço, entra em cena também um importante fator de economia circular, como no caso da Valio, uma das maiores empresas de laticínios da Finlândia, e que também desenvolve linhas de produtos alternativos a carnes. A gigante dos laticínios, comenta Bonturi, tinha um problema com aproveitamento e descarte de grandes quantidades de permeado de lactose, e foi aí que entrou a parceria com a ÄIO, que usa esse permeado de lactose para produzir os óleos que a Valio está testando nos produtos da linha vegetariana.
Todo o processo de produção é feito por meio da fermentação dessas leveduras, resultando numa produtividade que, ao depender do tipo de óleo, pode ser até dez vezes mais rápida e com diminuição em área desmatada de, pelo menos, dez vezes, de acordo com Bonturi. O processo para produção do óleo de palma, por exemplo, gera um grande impacto na biodiversidade com a extração das palmeiras. O mesmo acontece no processo envolvendo a pecuária para o desenvolvimento de óleos de origem animal, cujo impacto é ainda maior. Já no processo da ÄIO, ao invés de hectares de terra, o óleo pode ser produzido em um reator de 30 metros, usando menos água, menos terra, menos recursos, gerando menos dióxido de carbono e, ainda, com redução do tempo de produção.
“Pensando em tempo, há uma variação, porque no caso do gado e da palmeira, que pode levar vários anos para o crescimento, no nosso processo, em uma semana já conseguimos produzir o óleo”, ressalta a pesquisadora.
A Europa pretende banir produtos originados de deflorestamento, o que abre oportunidades para soluções inovadoras, como da ÄIO. “Vemos que, em qualquer questão geopolítica ou até mesmo climática, nossa segurança alimentar não está garantida. E uma das formas que temos para garantir uma produção sustentável é conseguir usar a fermentação, usar microrganismos para nos ajudar”, afirma.
Ampla aplicabilidade
De acordo com Nemailla, a tecnologia desenvolvida pela ÄIO tem se mostrado uma alternativa mais sustentável aos óleos de origem animal e vegetal, especialmente para o uso na indústria alimentícia devido ao potencial antioxidante maior do que em óleos de palma e de coco, mais parecido com o azeite de oliva nesse aspecto, além de ser livre de gorduras trans.
“Temos um chef trabalhando conosco, estamos desenvolvendo receitas para usar em alternativas de carne, alternativas para pães e confeitaria, chocolates, molhos. Além da sustentabilidade, o produto oferece outras propriedades de sabor, aroma e emulsificante. Já testamos em pães e doces, como cinnamon rolls, e, em comparação com outros óleos e manteiga, ele trouxe várias características. No chocolate, por exemplo, conseguimos simular o sabor da manteiga de cacau e do próprio cacau em pó”, diz Bonturi.
Devido às propriedades do óleo desenvolvido pela ÄIO, a aplicação pode se estender ainda mais, de acordo com a CEO. A empresa está desenvolvendo aplicações de seus óleos na produção de ração animal e para linhas de cosméticos, como sabonetes, cremes e uma ampla gama de produtos. “Em relação à ração animal e aos cosméticos, tecnicamente, queremos ver para fazer todos os licenciamentos necessários no ano que vem”.
A empresa tem mais de 100 parceiros na Europa, na América do Norte e na América do Sul, inclusive no Brasil, país com o qual a ÄIO pretende estender mais relações. A proximidade com a comunidade de empresas-filhas da Unicamp auxilia a empreendedora. “Além de ser um mercado potencial e ter muitos resíduos, tem muita mão de obra qualificada e, sim, o Brasil está na nossa pipeline de mercados futuros”.
Atualmente, a empresa conta com 13 colaboradores (três deles brasileiros) e já recebeu dois aportes de fomento de equidade por venture capital (modalidade de investimento feito em startups) sendo o primeiro de 675 mil euros (2022) e o segundo de 500 mil euros (2023). A empresa também recebeu fomentos de pesquisa (sem equidade) por meio de grants que somam 2,5 milhões de euros.
Ecossistema da Unicamp
A ÄIO é uma empresa fundada por uma ex-aluna da Unicamp que vive na Estônia e também compõe o ecossistema empreendedor Unicamp Ventures, fomentado pela Agência de Inovação Inova Unicamp, que produz conteúdos (como esta matéria) e eventos reunindo as empresas-filhas da Universidade.
Podem fazer parte deste ecossistema os empreendimentos fundados por pessoas que têm ou tiveram vínculo com a Universidade, tais como alunos, ex-alunos, docentes, funcionários ou ex-funcionários, assim como startups que foram incubadas na Incamp ou criadas a partir de uma tecnologia desenvolvida na Universidade, as chamadas empresas spin-off.
A Inova Unicamp está com o cadastro aberto para mapear novas empresas de seu ecossistema. O cadastro é gratuito, acesse e faça da sua empresa uma filha da Unicamp.