Pesquisa desenvolvida para a tese de doutoramento do linguista José Edicarlos de Aquino, defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, na área da História das Ideias Linguísticas, trouxe à luz novos aspectos sobre as contribuições deixadas pelo literato e gramático Júlio Ribeiro no campo do estudo da linguagem. De acordo com o trabalho, orientado pela professora Carolina Maria Rodríguez Zuccolillo, a obra de Júlio Ribeiro o destaca também como um autor de linguística, “que retoma e inova as questões da gramática histórica, e também como um historiador das ciências da linguagem, que apresenta interpretações particulares da história da linguística e insere o português e as línguas indígenas brasileiras no quadro geral do conhecimento sobre a linguagem no século XIX”.
O estudo de Aquino foi conduzido em cotutela entre a Unicamp e a Universidade Sorbonne Nouvelle Paris 3. Na França, o doutorando foi coorientado pelo professor Jean-Marie Fournier. O autor da tese explica que decidiu investigar a obra de Júlio Ribeiro por causa da riqueza da trajetória do personagem. “Júlio é um nome bastante conhecido na cultura nacional. Ele atuou em várias frentes: foi gramático, escritor, jornalista e contribuiu para a introdução do presbiterianismo no Brasil”, elenca.
Ademais, prossegue Aquino, Júlio Ribeiro também foi uma personalidade polêmica. Diversos autores o consideram como o pioneiro e mais importante gramático brasileiro, no contexto da produção de instrumentos linguísticos por autores brasileiros para leitores brasileiros, que tem início no final do século XIX. Em 1881, ele publicou “Grammatica Portugueza”, que muitos classificam como a primeira obra do gênero no país, sucedida posteriormente por outras gramáticas e dicionários. “Cinco anos depois, Júlio escreveu uma segunda gramática, ‘Holmes Brazileiro ou Grammatica da Puerícia’, um raro exemplar de gramática voltada para a infância no Brasil do século XIX”, aponta o autor da tese.
A importância de “Holmes Brasileiro”, produzida a partir da gramática norte-americana "A Grammar of the English Language", lançada em 1878 por George Frederick Holmes, vem do fato de que naquele período os gramáticos escreviam livros voltados majoritariamente a estudantes que estavam se preparando para ingressar na faculdade. “A gramática de Júlio é singular porque era dirigida à alfabetização de crianças, algo inexistente até então. Além disso, o trabalho revela que a histórica da gramática brasileira é, em certa medida, atravessada pela história da gramática dos Estados Unidos”, analisa Aquino.
A tese vai além destas revelações ao desvelar Júlio Ribeiro também como autor de um livro sobre lingúistica, “Traços Geraes de Lingúistica”, de 1880, até então desconhecido. A obra aborda, entre outras temáticas, a sede da linguagem articulada, o aparelho de fonação, a origem, a evolação e a tipologia das línguas e a história da linguística. No mesmo período, publicações assemelhadas eram lançadas na Europa e EUA. “Esse dado contesta alguns autores que consideram que o Brasil estava atrasado em relação às discussões da pesquisa linguística no mundo. A obra de Júlio demonstra que o país estava atualizado e que participava desse movimento”, entende o pesquisador, que localizou ao longo da investigação diversos textos inéditos de Júlio Ribeiro.
Em seu trabalho, Aquino analisa textos de outros autores com o propósito de identificar como o gramático era percebido pelos seus contemporâneos e pelas gerações subsequentes. “Fiz uma compilação de 36 obras sobre linguagem publicadas entre 1881 e 1959, para verificar se e como Júlio era citado. O que foi possível identificar é que ele é relativamente pouco mencionado. Entretanto, quando ocorre a referência, notadamente quando o assunto é a história da lingua portuguesa, ele é apontado como um autor pioneiro e inovador no que se refere à reflexão sobre a linguagem no Brasil”, diz.
Tal contradição, representada, por um lado, pelo processo de apagamento de Júlio Ribeiro como referência para a realização de análises gramaticais e linguísticas, e, por outro, pela existência de um discurso histórico que o coloca como um marco na história dos estudos gramaticais e linguísticos no Brasil, revela, na compreensão de Aquino, como são controversos os discursos de fundação e de como são problemáticos e inevidentes as atribuições de paternidade de um campo do conhecimento.
As fontes
As fontes que serviram ao desenvolvimento da tese de Aquino foram principalmente a Biblioteca do IEL e a Biblioteca de Obras Raras da Universidade de Brasília (UnB). O pesquisador também recorreu à Internet Archive, cujo acervo reúne muitos dados e documentos sobre o Brasil, e à Bilioteca Virtual das Ciências da Linguagem no Brasil (byCLB), projeto do Laboratório de Estudos Urbanos (Labeurb) da Unicamp. “Foi um trabalho que exigiu muito fôlego e muita garimpagem”, conta Aquino.
Em sua tese, o pesquisador também analisou a polêmica estabelecida, via artigos de jornal, entre Júlio Ribeiro e o gramático maranhense Augusto Freire da Silva. O debate entre ambos, pontua o pesquisador, evidencia a presença da gramática geral no Brasil no fim do século XIX, o que é uma contribuição brasileira para a história das ideias linguísticas, na medida em que confronta uma ideia fixa ainda fortemente em voga na história da linguística de que a tradição da gramática geral morre como paradigma com a instauração do método histórico-comparativo no século XIX.
“Essa polêmica e a própria obra de Júlio Ribeiro comprovam que a tradição da gramática geral, viva no Brasil, continua a animar a reflexão sobre a língua ainda na virada para o século XX, e isso é um ponto positivo por questionar justamente a ideia de que a emergência do método histórico-comparado teria sufocado a tradição da gramática geral no Ocidente. Ela não apenas permanece no Brasil até essa época, como é reivindicada como modelo científico para o trabalho gramatical por alguns gramáticos”, comenta Aquino, que contou com bolsas de estudos concedidas pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), agência de fomento do Ministério da Educação.
O personagem
Júlio Ribeiro nasceu Júlio César Ribeiro Vaughan, na cidade de Sabará (MG), em 16 de abril de 1845. Foi um homem de múltiplas atividades. Atuou como gramático, linguista, escritor, jornalista e proprietário de jornais. Além disso, se envolveu com questões políticas e religiosas. Foi um dos introdutores do presbiterianismo no Brasil e esteve ligado à história do Partido Republicano Paulista. Júlio Ribeiro também foi o criador da bandeira do Estado de São Paulo, concebida em 1888 para ser a bandeira da República. Como literato, seu livro mais conhecido é “A Carne”, romance publicado em 1888. Pela sua contribuição à literatura nacional, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, sendo o patrono da Cadeira 24. Júlio Ribeiro morreu em 1º de novembro de 1890, em Santos (SP), aos 45 anos, vítima de tuberculose.