Prof. Luiz Carlos Dias | Foto: Antonio Scarpinetti

Luiz Carlos Dias é Professor Titular do Instituto de Química da Unicamp, membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico e membro da Força-Tarefa da UNICAMP no combate à Covid-19.

Luiz Carlos Dias: "Estradas e praias lotadas, parece que a Covid-19 acabou e ninguém avisou"

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TRANSMISSÃO, SINTOMAS E SUPERBACTÉRIAS

Transmissão por crianças

Um estudo publicado no JAMA no dia 28 de agosto por pesquisadores do Hospital Nacional Infantil de Washington mostra que crianças assintomáticas podem carregar e transmitir o Sars-CoV-2 por semanas. O estudo envolveu dados de 91 crianças em 22 hospitais da Coreia do Sul, onde quem foi infectado pelo Sars-CoV-2 permanece internado no hospital até a recuperação completa. Outro estudo realizado com 192 crianças pelo Massachusetts General Hospital (MGH) e pelo Mass General Hospital for Children (MGHfC), publicado no dia 19/08/2020 no The Journal of Pediatrics respalda estas conclusões, mostrando que cargas virais muito altas foram observadas entre os pacientes mais jovens. Os pesquisadores colheram amostras de secreção do nariz e da garganta e encontraram grande quantidade do vírus nas crianças. Estes resultados são preocupantes neste momento de volta às aulas, pois é certo que crianças e jovens podem infectar outras pessoas, mesmo não mostrando sinais de estarem doentes. E sim, crianças e jovens podem morrer ou sofrer com sequelas de uma infecção por Covid-19. Não podemos renunciar às medidas não farmacológicas, como o uso de máscaras, distanciamento físico e regras de higiene. Um modelo que envolva um revezamento entre aulas presenciais e on-line pode ser uma alternativa. Um desafio será testar nossas crianças para detectar e isolar os assintomáticos e seus familiares ou testar apenas os alunos com sintomas.

Asma e Covid-19

Uma boa notícia para asmáticos, embora eu não vá arriscar não, é que parece que a asma não aparenta ser um fator de risco tão grande. Estudos realizados com 436 pacientes internados no Hospital da Universidade do Colorado com casos mais graves de Covid-19, mostram um número baixo de asmáticos que precisaram ser intubados quando comparados com não asmáticos. Essa foi a conclusão de um trabalho publicado no dia 31/08/2020 na revista Annals of the American Thoracic Society. O grupo de pesquisadores acredita que o uso de inaladores com corticoides dificulta a entrada do Sars-CoV-2 pelas vias aéreas. O baixo número de asmáticos entre os pacientes hospitalizados em outros estudos internacionais já publicados suportam estas conclusões, mas eu prefiro esperar por estudos ainda mais abrangentes e pela vacina, até para ir à praia tranquilo.

Persistência dos sintomas de Covid-19

Além das sequelas já descritas em órgãos como pulmão, coração, rins e cérebro em pacientes que foram acometidos com casos mais graves de Covid-19, muitos dos pacientes recuperados, mesmos os com casos mais leves ou moderados da doença, continuam sentindo por muitas semanas alguns sintomas como dores na cabeça, nas pernas e no peito, cansaço, falta de ar,  fadiga, sonolência, alteração de memória, dificuldade de concentração, batimentos cardíacos acelerados, alterações no sistema nervoso central, dormência nas mãos e perda de olfato e paladar. Um estudo alemão publicado no dia 27/07/2020 no JAMA Cardiology com 100 pacientes entre 45 e 53 anos mostrou que 78% desenvolveu anormalidades cardíacas por conta de inflamações no coração. Outro estudo muito interessante envolvendo pesquisadores da Força-tarefa da Unicamp no combate à Covid-19 foi publicado na revista Cell MetabolismOs pesquisadores mostraram que quanto maior o teor de glicose, mais o vírus Sars-CoV-2 se acumula dentro de células sanguíneas de defesa chamadas de monócitos e mais exacerbada a resposta inflamatória dessas células, o que ajudaria a explicar a gravidade da Covid-19 em pessoas com diabetes. A professora Clarissa Lin Yasuda, neurologista da Unicamp, lidera uma pesquisa que vem mostrando que o Sars-CoV-2, que já sabemos deixar sequelas graves em várias partes do organismo em pessoas acometidos com casos mais graves da doença, desencadeia também complicações neurológicas. Um estudo a respeito está sendo realizado pelo Instituto Brasileiro de Neurociência e Neurotecnologia (BRAINN). Outro estudo do grupo do professor Daniel Martins-de-Souza aponta que neurônios e astrócitos (outras células do sistema nervoso) humanos derivados de células tronco em cultura, quando expostos ao Sars-CoV-2, também podem ser infectados pelo vírus. Estas células expressam a proteína ACE-2, utilizada pelo vírus para entrar nas células humanas, e os pesquisadores observaram, além da infecção e o aumento da carga viral nas células nervosas, modificações significativas em suas funções. Todos esses estudos se somam a vários outros já divulgados e ligam um alerta muito preocupante para uma síndrome pós-Covid19, com possíveis sequelas mesmo para pessoas que tiveram um quadro mais leve de Covid-19.

Atenção às superbactérias

O uso indevido de antibióticos tem levado a uma redução na eficácia dos mesmos devido à resistência adquirida pelas bactérias e é imperativo criar medicamentos inovadores. A pandemia do novo coronavírus pode contribuir para o agravamento desta situação, levando a bactérias multirresistentes, pois muitos pacientes com Covid-19 estão recebendo antibióticos, mas provavelmente apenas um percentual destes apresentam infecção bacteriana durante a internação. E nós vimos também a distribuição descontrolada de azitromicina em vários kits de medicamentos pseudomilagrosos distribuídos por vários prefeitos neste país.

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A CORRIDA DAS VACINAS

Sputinik V, a candidata vacinal Russa

E saiu o tão esperado estudo de fases 1 e 2 da candidata vacinal Russa (Sputink V), publicado no dia 04/09/2020 na revista The Lancet. A Sputinik V é baseada em plataforma que usa dois vetores com formas mais enfraquecidas de adenovírus humanos do tipo 26 (rAd26-S) e do tipo 5 (rAd5-S), que são incapazes de se replicar no organismo humano. O estudo aberto envolveu apenas 76 voluntários adultos (18-60 anos), sendo 38 voluntários em cada fase, não foi randomizado e não teve um grupo placebo. Em cada fase, nove voluntários receberam o vetor (rAd26-S), nove receberam o vetor (rAd5-S) e 20 voluntários receberam os dois vetores (rAd26-S no primeiro dia e a rAd5-S após 21 dias). Os resultados são interessantes, mostrando que a Sputinik V, desenvolvida pelo Instituto Gamaleya apresentou segurança, não causando efeitos adversos consideráveis e induzindo boa resposta imune com produção de anticorpos (21 dias após a aplicação) e resposta celular de células TCD4+ e TCD8+ (28 dias após a aplicação) em todos os voluntários. Os efeitos adversos mais comuns foram dores no local de aplicação, dores de cabeça e dores musculares moderadas e febre. Esses resultados são semelhantes aos observados com outras candidatas vacinais e ajudam a trazer transparência ao processo, embora os ensaios pré-clínicos ainda não tenham sido publicados. Um ensaio clínico com 40 mil voluntários, em fase 3, a que vai mostrar se protege mesmo as pessoas, está em andamento e os resultados deverão ser divulgados nos próximos meses. Interessante que eles projetaram duas formulações da Sputinik V, uma congelada, que precisa ser armazenada a –18 °C e pode ser produzida em larga escala e uma formulação liofilizada, que é armazenada a temperaturas um pouco mais altas (entre 2–8° C), que foi desenvolvida para aplicação em regiões mais remotas da Rússia. A produção de uma forma liofilizada exige mais tempo e é mais cara. Eles justificam a rapidez no desenvolvimento da Sputinik V com base na própria experiência nos estudos anteriores de tentativas de desenvolvimento de vacinas contra os vírus que causam Ebola e MERS.

As outras candidatas

Em tempos de ideologização da corrida para desenvolver uma vacina, em um movimento para resgatar o orgulho nacionalista, a Rússia, que havia anunciado o registro da primeira “vacina” sem testes em fase 3, já corre atrás da segunda. A China aprovou no final de agosto, a candidata da Sinovac (CoronaVac), que está em fase 3 de testes clínicos também aqui no Brasil, para uso emergencial por profissionais de saúde e pessoas com maior risco de infecção pelo Sars-CoV-2. A também chinesa Sinopharm anunciou que obteve autorização para o uso emergencial de uma de suas duas candidatas em fase 3. A intenção do governo chinês é evitar novos surtos durante o outono e inverno lá. Nos EUA, com eleições presidenciais marcadas para o dia 03 de novembro, o FDA afirmou que também pretende aprovar uma vacina para uso emergencial contra a Covid-19, antes dos ensaios clínicos de fase 3 serem concluídos. O CDC, Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos inclusive notificou os 50 estados sobre a possibilidade de distribuição de vacina para profissionais de saúde e grupos de risco já no final de outubro. Isso provavelmente vai acontecer em outros países e no Brasil. Em São Paulo, o otimista secretário estadual de Saúde, Jean Gorinchteyn, estima que até junho de 2021, o Estado terá imunizado os cerca de 45 milhões de habitantes, iniciando em dezembro de 2020 com os grupos prioritários (profissionais da saúde, idosos, e pessoas com comorbidades e doenças crônicas).

No entanto, só a fase 3, após testes rigorosos, vai comprovar a eficácia e a segurança das candidatas vacinais e trazer confiança à população. Nenhuma vacina terá 100% de eficácia, mas aprovar qualquer candidata às pressas pode não ajudar e até mesmo atrapalhar muito. O ideal seria uma vacina em uma dose única, com pelo menos 70% de eficácia, isso considerando que teremos cerca de 100% da população se vacinando. Se o percentual de pessoas sendo vacinadas for menor, precisaremos de uma eficácia maior das vacinas. No Brasil, somos 212 milhões de pessoas, se a vacina tiver 100% de eficácia e metade da população se vacinar, teremos 106 milhões de pessoas imunizadas, mas as outras 106 milhões de pessoas continuarão à mercê do vírus. Se a vacina tiver apenas 50% de eficácia e a metade da população brasileira se vacinar (106 milhões de pessoas), nós teremos 53 milhões de pessoas protegidas e 159 milhões não imunizadas e mesmo que 100% dos brasileiros tomem a vacina, ainda assim teremos 106 milhões não protegidos. Vejam a importância de incentivar uma campanha de vacinação em massa com alto índice de adesão. Precisamos mostrar para a população que essa campanha de vacinação é fundamental e todos devem ser vacinados, para o bem comum, por princípios éticos e de cidadania. A população precisa e pode confiar em uma vacina aprovada em fase 3, seguindo os rigores e princípios éticos da ciência. A pesquisa intitulada "Global Attitudes on a Covid-19 Vaccine” realizada em 27 países pela Ipsos para o Fórum Econômico Mundial mostrou que 88% dos brasileiros pretendem se vacinar contra a Covid-19, enquanto a média global é de 74%.

Mesmo que porventura exista algum tipo de pressão política para anunciar uma vacina, a ciência dará a resposta final e só a fase 3, com resultados extremamente confiáveis de segurança e eficácia, deve garantir a aprovação ou não de qualquer candidata vacinal. Trata-se de uma decisão científica, não política, onde os benefícios gerados com o uso da vacina devem superar em muito os eventuais riscos à saúde humana, mesmo no contexto de uma emergência de saúde pública como é a pandemia da Covid-19. No final, o organismo humano e o vírus é que vão dar o veredito final. A “operação velocidade máxima”, lançada pelos EUA para acelerar o desenvolvimento de vacinas, não pode ultrapassar ou atropelar o rigor da ciência e é preciso cautela.

E é fundamental combatermos o movimento antivacinas, que parece surgir com força neste momento de polarização política e disseminação de fake News. Dados recentes da OMS mostram que campanhas de vacinação em massa para doenças como difteria, sarampo, coqueluche, poliomielite, rotavírus, pneumonia, diarreia, rubéola e tétano evitam hoje cerca de quatro mortes por minuto no mundo.

Vacina de graça?

Vacina é bem público. O Projeto de Lei 4424/20 (https://www.camara.leg.br/noticias/689477-projeto-preve-vacina-de-graca-contra-covid-19-e-prioridade-para-beneficiarios-do-bolsa-familia/), em análise na Câmara dos Deputados, prevê campanha nacional de vacinação gratuita contra a Covid-19. O projeto propõe ainda cobertura igualitária e equitativa para a população brasileira, começando por profissionais da saúde, de segurança e manutenção da ordem pública, pessoas com mais de 60 anos, pessoas com comorbidade, gestantes e puérperas, os beneficiários do Programa Bolsa Família, professores e profissionais de apoio de escolas públicas e privadas e profissionais de atendimento ao público. Este Projeto de Lei se junta a outras propostas tramitando na Câmara, relacionadas a regras para a vacinação contra a Covid-19, como PL 4174/20 e  PL 3982/20. Outro Projeto de Lei 4433/20 em análise na Câmara dos Deputados insere a medida de incluir potencias futuras vacinas contra a Covid-19 na cobertura dos planos e seguros privados de assistência à saúde na Lei dos Planos de Saúde.

Leia mais: 

Projeto define critérios para a vacinação contra a Covid-19

Proposta se antecipa e estabelece regras para vacinação contra Covid-19

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MEDICAMENTOS E TESTAGEM : ATUALIZAÇÃO

Dexametasona, reparixin e azitromicina

Confirmando resultados anteriormente descritos por outros pesquisadores, um artigo publicado no dia 2/9/2020 pela Coalizão Covid-19 Brasil mostrou que o corticoide dexametasona reduziu o tempo de internação de pacientes adultos com quadros graves de Covid-19. O estudo envolveu 299 pacientes com idades em torno de 61 anos, com síndrome respiratória aguda grave, internados em condições de UTI e submetidos à ventilação mecânica. Um grupo de 151 pacientes foi tratado com dexametasona, enquanto o grupo de controle contou com 148 pessoas, acompanhadas com suporte clínico padrão. A dexametasona foi administrada via endovenosa e permitiu uma saída mais rápida do respirador artificial. Isso é medicina baseada em evidências científicas. O reparixin, da empresa italiana Dompe, em desenvolvimento para transplantes de órgãos, entra em ensaio clínico de Fase 2 no Brasil com 48 voluntários visando avaliar a eficácia e segurança. O reparixin será testado em pacientes adultos hospitalizados com casos mais graves de Covid-19 nos Estados de São Paulo, Bahia, Minas Gerais, Santa Catarina e no Distrito Federal. A fase 3 será conduzida nos Estados Unidos. O modo de ação proposto para o reparixin envolve inibição das interleucinas 8 (IL-8), proteínas associadas à pneumonia observada em pacientes em condição mais grave de Covid-19. Um estudo aberto e randomizado da Coalizão Covid-19 Brasil publicado no dia 04/09/2020 na revista The Lancet, envolveu 397 voluntários em 57 centros no Brasil e revelou que o antibiótico azitromicina não tem eficácia no tratamento de pacientes graves da Covid-19, confirmando resultados obtidos em trabalhos anteriores. Um grupo de 214 voluntários recebeu azitromicina + hidroxicloroquina e o grupo de controle recebeu apenas hidroxicloroquina, pois esta fazia parte do tratamento padrão no Brasil para pacientes com Covid-19 grave. Segundo os autores, as taxas de efeitos adversos como arritmias ventriculares, parada cardíaca, insuficiência renal aguda e prolongamento do intervalo QT corrigido não foram diferentes entre os grupos e na conclusão, os pesquisadores não apoiam o uso rotineiro de azitromicina em combinação com hidroxicloroquina em pacientes com Covid-19 grave.

Anticorpos e Covid-19

Mesmo considerando que testes sorológicos não sejam 100% confiáveis, pesquisas sorológicas recentes realizadas em várias cidades brasileiras mostram que pessoas recuperadas da Covid-19 apresentam queda no índice de anticorpos neutralizantes (IgG), aqueles que nos defendem de uma reinfecção. Isto vem sendo observado com frequência, mas não é surpreendente e os casos de reinfecção sendo confirmados levam a acreditar que a resposta imune no caso da Covid-19 não é baseada apenas em anticorpos neutralizantes (resposta humoral), mas também envolve uma resposta de memória celular (células citotóxicas T CD4+ e T CD8+). A queda nos percentuais de anticorpos mostra que algumas pessoas recuperadas podem estar suscetíveis a uma nova infecção, mas isto não quer dizer que não estejam imunes.

 

Observação : Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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