Por imensos que sejam os desentendimentos e cacofonias que se afrontam nessas eleições, há três premissas das quais ninguém discorda: (1) precisamos de agricultura para nos alimentar; (2) a atividade agrícola é muito dependente de fatores não humanos, isto é, de chuvas sazonais em quantidades regulares e de um sistema climático minimamente estabilizado; (3) chuvas regulares e clima favorável dependem, por sua vez, da conservação das florestas e das demais coberturas vegetais nativas. De fato, as florestas e demais ecossistemas naturais conservam e reciclam a umidade proveniente dos oceanos, estabilizam as chuvas, refrigeram o clima, preservam a fertilidade dos solos e mantêm a biodiversidade, sem a qual não temos dispersores de sementes, polinizadores, fungos e micro-organismos necessários à reprodução das plantas.
O que motiva este texto é a necessidade de comunicar este fato indubitável: o extermínio atual das coberturas vegetais primárias do Brasil já está implicando um aumento exponencial dos riscos de inviabilização de nossa agricultura. Estranhamente, discutiu-se de tudo nessa campanha eleitoral, menos o perigo iminente dessa inviabilização. É claro que os temas discutidos – economia, saúde, democracia, desigualdade, educação etc. – são todos muito relevantes; mas o mais importante deles passou quase completamente em silêncio: o ambiente, isto é, as condições ambientais que permitem, em suma, plantar e colher o que plantamos. Se destruímos essas condições, todos os pomos das discórdias que mobilizam essas eleições tornam-se secundários, para não dizer irrelevantes.
Pois bem, os quatro anos do atual governo foram de tal modo danosos para a estabilidade das condições ambientais do país, que a precarização da agricultura brasileira se tornou um problema crescente dos nossos dias. E uma coisa é certa: mais quatro anos desse governo desencadearão um processo possivelmente irreversível de declínio da nossa capacidade de cultivar a terra. Nossa agricultura já começou, de fato, a dar mostras de instabilidade e de risco acrescido de quebras de safra. Estamos falando de riscos sistêmicos, recorrentes, crescentes e simultâneos em diversas regiões do país, o que equivale a dizer que a disponibilidade de alimentos e seus preços ameaçam cada vez mais a segurança alimentar do povo brasileiro. Antes de mostrar alguns dados alarmantes desse processo, é preciso entender sua causa principal: o aumento da destruição biológica no país nos últimos quatro anos.
1. A destruição da Amazônia
A Figura 1 mostra as mensurações de desmatamento por corte raso na floresta primária da Amazônia Legal Brasileira, realizadas pelos satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) entre 1988 e 2021, sempre nos 12 meses entre cada agosto e cada julho do ano sucessivo.
Lula recebeu das administrações de Itamar Franco (1993-1994) e de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), um desmatamento amazônico em alta. O ímpeto desse desmatamento continuou durante os primeiros 18 meses de sua administração, atingindo no período agosto de 2003 – julho de 2004 um pico de 27.772 km2, só menor do que o de 1995 (29.059 km2). Desenha-se a partir de 2004, contudo, uma vigorosa tendência de queda nesse desmatamento, posto em marcha por Marina Silva (2003-2008), Carlos Minc (2008-2010) e Izabella Teixeira (2010-2016), em seus dois primeiros anos à frente do Ministério do Meio Ambiente. Em 2012, o desmatamento por corte raso de florestas primárias na Amazônia havia diminuído em mais de 80%. Sucessivamente, ele voltou a crescer, para atingir durante os quatro últimos anos proporções novamente catastróficas. Cinco elementos desse gráfico permitem entender a política literalmente de terra arrasada promovida por Bolsonaro:
1. Considerado o arco histórico 1988 – 2021, percebe-se que apenas entre 2017 e 2021 houve crescimento ininterrupto por 4 anos (2018-2021) do desmatamento por corte raso na Amazônia.
2. Nunca houve no século XXI um aumento de 34,4% em 12 meses em relação aos 12 meses anteriores, como o que ocorreu entre agosto de 2018 e julho de 2019. O aumento se verifica já a partir de agosto de 2018, dada a promessa de campanha de Bolsonaro de acabar com “a indústria das multas”. Promessa cumprida, pois sua gestão registrou o menor número de multas ambientais em 20 anos.[1] Em 2020, 99,8% do desmatamento no país foi ilegal.[2]
3. Após o impeachment de Dilma Rousseff, o desmatamento anual da Amazônia Legal brasileira passou de 6.947 km2 (agosto de 2016-julho de 2017) para 13.235 km2 (agosto de 2020 – julho de 2021), ou seja, um salto de mais de 90%!
4. Entre 1º de agosto de 2020 e 31 de julho de 2021, a perda de floresta amazônica teve um aumento de 22% em relação ao desmatamento apurado nos 12 meses anteriores.
5. O desmatamento em 2021 (agosto 2020 – julho 2021) é o maior da série histórica desde 2006.
Em suma, durante os quatro anos de Bolsonaro (2019-2022), a floresta amazônica terá perdido completamente, segundo as mensurações (e projeções para 2022) do INPE, um total aproximado de 47 mil km2, uma área maior que a do estado do Rio de Janeiro (43.696 km2) e 60% maior do que a área do desmatamento registrado nos quatro anos dos governos de Dilma Rousseff e de Michel Temer (2014-2018).[3] Apenas em 2021, foram eliminadas cerca de 470 milhões de árvores na Amazônia brasileira e apenas em janeiro de 2022, um mês de baixo desmatamento, a perda florestal superou 31 milhões de árvores, ou seja, uma média de 1 milhão de árvores por dia.[4] Assinale-se, por fim, que os alertas de desmatamento (Sistema de Alertas de Desmatamento - SAD) na Amazônia brasileira atingiram um novo recorde nos seis primeiros meses de 2022.[5]
Os incêndios desempenham um papel fundamental nesse processo de aniquilação da maior floresta tropical do mundo. Segundo dados do Programa Queimadas do INPE, de janeiro a agosto de 2019, os focos de incêndios na floresta amazônica aumentaram 82% em relação ao mesmo período de 2018 (71.497 em janeiro/agosto de 2019 contra 39.194 em janeiro/agosto de 2018).[6] Segundo dados coincidentes do INPE e da NASA, o ano de 2019 fora, até então, o pior ano de incêndios amazônicos do segundo decênio do século.[7] Mas 2020 foi ainda pior. No ano inteiro de 2019 detectaram-se 89.171 focos de incêndio na floresta amazônica. Em 2020, registraram-se 103.161 focos de incêndio nessa floresta, um aumento de 15,7% em relação a 2019.[8] Em 2021, houve diminuição dos focos de incêndio amazônico, mas em 2022, até setembro, os focos de incêndios amazônicos já haviam superado o acumulado do ano inteiro de 2021.[9] Em setembro de 2021, um estudo publicado na Nature quantificava os danos biológicos causados pela destruição da Amazônia e indicava como a ausência de governança no país, associada ao desmatamento e ao agravamento da emergência climática havia potencialmente impactado entre 77% e 85% das espécies ameaçadas de extinção.[10] Mantida a escala e velocidade de destruição imprimida pelo governo Bolsonaro, qualquer esperança de que a floresta amazônica resista ainda por mais alguns anos seria injustificável.
2. O Cerrado, o Pantanal e a Mata Atlântica
A meta de governo do atual presidente é expandir o agronegócio, a mineração e o garimpo em detrimento também desses três biomas e de seus habitantes. Segundo o INPE, entre agosto de 2020 e julho de 2021, o Cerrado perdeu 8,5 mil km2 de vegetação nativa, um aumento de 7,9% em relação aos 12 meses precedentes. Trata-se da mais alta taxa de desmatamento desde 2016.[11] Não por acaso chamado “berço das águas” do Brasil, o Cerrado possui quase 20 mil nascentes e irriga seis das oito regiões hidrográficas do país. Mas o Cerrado está secando em decorrência de um desmatamento brutal, sendo que 88% dele em 2018 e 2019 foi ilegal. Segundo uma estimativa de 2019 da Agência Nacional de Água (ANA), 62,1% das bacias hidrográficas que drenam o Cerrado e outros biomas têm índices de desmatamento que impactam fortemente o abastecimento de água.
Em 2019, a área queimada no Pantanal chegou a 1,2 milhão de hectares (12 mil km2). Até outubro de 2019 já haviam sido registrados quase 8 mil incêndios na maior área alagada tropical do planeta, um aumento de 97% do número de focos de fogo em comparação com a média dos últimos 10 anos.[12] O ano de 2020 foi, contudo, muito pior. Na realidade, foi o pior da história do bioma desde ao menos 1998, quando o INPE começou o monitoramento da região, pois apenas nesse ano o fogo consumiu mais de 3,9 milhões de hectares (mais de 39 mil km2) ou 26% do território do Pantanal no Brasil.[13] As perdas em vida foram, então, gigantescas. Não há estimativas sobre as mortes de invertebrados. Mas se calcula que apenas entre janeiro e novembro de 2020 – anos de seca extrema no Pantanal,[14] em parte decorrentes da destruição da floresta amazônica –, os incêndios provocados por fazendeiros[15] causaram a morte por calcinação de cerca de 17 milhões de vertebrados.[16] Há na imprensa fotos excruciantes de jacarés, macacos, cobras, pássaros, pequenos roedores e antas carbonizadas, que não me permito reproduzir aqui por respeito à sensibilidade do leitor. Esse morticínio sem precedentes no Pantanal causado pela certeza de impunidade deverá pesar no dossiê de crimes do atual presidente e de seus acólitos contra a vida e contra os direitos da natureza. Muitos de seus eleitores desconhecem essas atrocidades e têm, portanto, o perdão da ignorância. Mas os que estão a par de tais crimes hediondos contra animais indefesos e ainda assim optam por votar novamente num ecocida, esses se associam conscientemente ao mal.
O “efeito Bolsonaro” é detectável também no que se refere à destruição da Mata Atlântica. Nos 17 estados do país em que ainda se conservam remanescentes desse bioma, o ano de 2017 registrou um desmatamento de 11.399 hectares (quase 114 km2), o menor da série histórica desde o início das mensurações por satélite em 1985 (INPE/SOS Mata Atlântica). O período de agosto de 2018 a julho de 2019 cravou um desmatamento já bem maior, de 14.375 hectares (143 km2). Mas em 2021 (agosto de 2020 - julho de 2021) foram desmatados 21.642 hectares (216 km2) de floresta primária ou em estágios avançados de recomposição, ou seja, quase o dobro do ano de 2017. Trata-se de um crescimento de mais de 60% em relação ao registrado entre 2019 e 2020 (13.053 ha). “Essa perda de florestas naturais, área em que caberiam mais de 20 mil campos de futebol, corresponde a 59 hectares por dia ou 2,5 hectares por hora, além de representar a emissão de 10,3 milhões de toneladas de CO2-equivalente na atmosfera”.[17] E essa aceleração confirma-se novamente em 2022, pois apenas no primeiro semestre do corrente ano foram desmatados no conjunto da Mata Atlântica quase tanto quanto em todo o ano anterior, ou seja, 21.302 ha (213 km2). “É como se 117 campos de futebol tivessem sido destruídos todos os dias, o que corresponde à emissão de mais de 10,2 milhões de toneladas de CO2”.[18] Luís Fernando Guedes Pinto, Diretor de Conhecimento da SOS Mata Atlântica, lança o alerta:[19]
Se as derrubadas persistirem, vai faltar água, vai faltar alimento, vai faltar energia elétrica. É uma ameaça à vida, um desastre não só para o Brasil como para o mundo, pois importantes referências internacionais apontam a Mata Atlântica como um dos biomas que precisam ser restaurados com mais urgência para atingirmos a meta de redução de 1,5°C de aquecimento global estabelecida no Acordo de Paris. Mas estamos percorrendo o caminho oposto, em direção à sua destruição.
3. A precarização da agricultura brasileira está se acelerando
Luciana Gatti e colegas mostram em dois artigos recentes que a floresta amazônica já não é mais um sumidouro de carbono através da fotossíntese, mas se transformou em uma fonte de CO2, o que indica que a taxa de mortalidade de suas árvores superou sua taxa de crescimento e regeneração. A taxa de liberação de carbono pela floresta nada menos que dobrou durante o governo Bolsonaro.[20] A equação é simples e inexorável: menos floresta = mais liberação de carbono, mais desequilíbrio climático e menos chuvas. De fato, muito das chuvas que irrigam o continente ao sul da Amazônia provém dos chamados “rios voadores”, essas massas de ar carregadas de vapor de água na baixa atmosfera geradas pela floresta e propelidas pelos ventos em direção ao sul do continente. O Projeto Rios Voadores quantifica essa umidade doada à agricultura pela floresta:
A quantidade de vapor de água evaporada pelas árvores da floresta amazônica pode ter a mesma ordem de grandeza, ou mais, que a vazão do rio Amazonas (200.000 m3/s). (...) Uma árvore com copa de 10 metros de diâmetro é capaz de bombear para a atmosfera mais de 300 litros de água, em forma de vapor, em um único dia – ou seja, mais que o dobro da água que um brasileiro usa diariamente!
A Figura 2 esquematiza a origem e o percurso dessa descomunal umidade atmosférica, reciclada e transmitida pela floresta da região equatorial oceânica em direção a oeste, sul e sudeste do continente.
Uma animação proposta pelo Projeto Rios Voadores dá uma ideia mais circunstanciada de quanto as chuvas das regiões do Chaco, do Pantanal, do Centro-Oeste do Brasil, da bacia do Prata e do Sudeste do país são tributárias da umidade gerada e reciclada pela floresta amazônica.[21] Todas essas regiões do Sul e do Sudeste do Brasil – onde, paradoxalmente, se concentra o eleitorado de Bolsonaro – já estão recebendo menos chuvas por causa do desmatamento da Amazônia e tenderão à maior aridez com mais quatro anos de Bolsonaro.[22] Em 2018 e 2019, Carlos Nobre e Thomas Lovejoy publicaram dois editoriais na revista Science Advances, advertindo que a floresta amazônica, à força de desmatamento, incêndios e degradação, estaria na iminência de cruzar um ponto de não retorno em direção à sua morte como floresta tropical.[23] Ambos os editoriais reiteram o quanto a agricultura brasileira beneficia-se da umidade da floresta amazônica, e voltam a advertir que estamos diante da “última chance” para evitar um desastre em escala planetária:[24] “Hoje, estamos exatamente em um momento de destino: o ponto de não retorno é aqui, é agora”. Esse ponto de não retorno pode se situar em um nível de desmatamento da ordem de 20% a 25% da área original da floresta, e já ultrapassamos 20% desse desmatamento por corte raso na Amazônia brasileira. Se esse nível de 25% for excedido, afirma Carlos Nobre, algo da ordem de 60% a 70% da floresta poderá desaparecer de modo irreversível. Em 2020, Carlos Nobre reportou um sintoma seguro da iminência desse ponto de não retorno: o aumento da duração da estação seca na Amazônia:[25]
Em 50% da Amazônia, a estação seca está ficando mais longa. Em relação aos anos 1980, ela já está três semanas mais longa. (...) No sul e sudoeste da Amazônia, o início da estação chuvosa chegou a atrasar quatro semanas. (...) A temperatura durante a estação seca está até 3oC mais quente. Estamos vendo que a reciclagem da água nessas regiões diminuiu muito. (...) Estamos vendo o aumento da mortalidade das árvores nessas regiões mais secas. (...) Isso está acontecendo hoje!
Em suma, como voltou a afirmar Carlos Nobre em 2022, a Amazônia está à beira do precipício e sua queda levará com ela as condições de possibilidade de nossa agricultura:[26]
A reciclagem de vapor d’água [realizada pela floresta] leva vapor ao sul da Bacia Amazônica, o que alimenta sistemas de chuva do Cerrado, do Sudeste, da Bacia do Rio Paraná, do Uruguai, da Argentina, do Paraguai e do sul do Brasil. Se a floresta desaparecer, as chuvas nessas regiões diminuirão, prejudicando, por exemplo, a agricultura. Outro impacto: sem a floresta, a temperatura sobe muito na região amazônica, de 4oC a 5oC, o que já acontece em regiões de pastagem na Amazônia. O ar que passa por lá e chega ao Cerrado fica de 4oC a 5oC mais quente, o que perturba a ecologia do Cerrado e, principalmente, a agricultura dessa região, que já está próxima de um limite, ou seja, de não haver mais potencial de agricultura.
De fato, o risco de desertificação de imensas áreas do país ao sul da Amazônia foi reiteradamente demonstrado por Antônio Donato Nobre[27] e as tempestades de areia que se verificaram em 2021 em Minas Gerais e em São Paulo podem ser já sintomas iniciais desse processo.
4. Os primeiros prejuízos agrícolas e as perspectivas para este decênio
Um artigo publicado em 2019 por Marcos Heil Costa e colegas analisa como o desmatamento da Amazônia, e o consequente aumento da duração da estação seca na Amazônia, já está ameaçando o sistema de dupla safra (safra de soja e safrinha de milho) ao sul da floresta, incluindo o sul do estado do Amazonas, Rondônia e Mato Grosso.[28] A falta de chuvas no triênio 2020-2022 tem provocado quebras de safra em importantes regiões produtoras de alimentos no Brasil, com carestia e prejuízos colossais aos agricultores de milho, açúcar, café, trigo e laranja. Por causa disso, a safra 2020/2021 de milho foi 15% inferior à safra 2019/2020.[29] Em janeiro de 2022, o Canal Rural anunciava que a onda de calor e a seca que se abatiam sobre a maior parte do país já haviam causado um prejuízo de R$ 45,3 bilhões nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul.[30] Segundo Guilherme Bellotti, gerente de consultoria Agro do Itaú BBA, em 2021 a seca provocou uma quebra da segunda safra de milho, reduzindo a expectativa inicial de produção de 86 milhões de toneladas para algo entre 65 e 70 milhões de toneladas.[31] Em agosto de 2021, os prejuízos agrícolas no Sudeste do país explodiram. “Em Uberaba, por exemplo, 60% da safra de milho foi perdida pela falta de chuvas. Na horticultura, a perda calculada gira em torno de 40%, enquanto que na fruticultura, é de 25%”.[32] No que se refere à soja, a seca e a instabilidade climática estão causando prejuízos de cerca de R$ 72 bilhões na safra de 2021/2022. Segundo uma reportagem do portal Agrolink, de 17 de outubro de 2022:
Enquanto parte dos produtores são prejudicados pelo excesso de chuva, outra parte sofre com a estiagem intensa e com as altas temperaturas. Em 2021, por exemplo, o excesso de chuva e a umidade elevada foram responsáveis por causar perdas de até 100% em diversas lavouras de soja cultivadas no estado de Mato Grosso. Nesse mesmo ano, os estados da Região Sul do país experimentaram as consequências de uma seca severa. A estimativa é que a estiagem tenha provocado perdas de até R$ 100 bilhões, somando os prejuízos calculados para todos estados e produtores da região. A expectativa para 2022 não é muito diferente. Apenas no início deste ano, a seca provocou um prejuízo recorde para os produtores de soja do Rio Grande do Sul.
Eduardo Delgado Assad, Rogério Rudge Ramos Ribeiro e Alan Massaru Nakai comparam os riscos agrícolas em 1990 e em 2025 nos cultivos de arroz, feijão, milho e soja no Brasil. A passagem de riscos baixos para riscos altos nos cultivos do arroz e da soja são bem ilustrativos da rapidez vertiginosa da inviabilização da agricultura brasileira, pelo efeito combinado do desmatamento, do declínio da disponibilidade hídrica e das mudanças climáticas (Figura 3).
Muito em breve, esses riscos e perdas agrícolas se generalizarão, mantida a atual trajetória bolsonarista. E por “muito em breve”, entendo o presente decênio, se Bolsonaro for reeleito. Numa democracia, a reeleição de um presidente significa que a maioria dos eleitores endossou a governança do primeiro mandato, o que permite ao presidente reeleito avançar ainda mais na direção adotada nos primeiros quatro anos. A reeleição de Bolsonaro significará, assim sendo, uma destruição ambiental muito maior do que a perpetrada entre 2019 e 2022. Obviamente, por mais vertiginosa que seja a destruição das florestas brasileiras nos próximos anos, a agricultura não terá se tornado de todo inviável em 2026. Mas teremos então uma perda e uma degradação florestal tão pronunciada – com seus impactos sobre os recursos hídricos, sobre o clima e, enfim, sobre a agricultura –, que será então muito difícil, talvez impossível, reverter o processo de degradação ambiental do país. Em 30 de outubro de 2022 será preciso escolher. Poderemos ter Bolsonaro ou agricultura. Mas não poderemos ter os dois.
Notas
[1] Cf. André Borges, “Com desmatamento em alta, gestão Bolsonaro tem menor número de multas ambientais em 20 anos. O Estado de São Paulo, 8/XI/2021.
[2] Cf. Carolina Lisboa, “Relatório mostra que 99,8% dos desmatamentos no Brasil em 2020 foram ilegais”. ((o)) eco, 11/VI/2021. Baseado em Tasso Azevedo et al., “Relatório Anual do Desmatamento no Brasil. 2020”. MapBiomas Alerta, junho de 2021.
[3] Cf. André Borges, “Desmate da Amazônia em gestão Bolsonaro equivale à área do Estado do Rio de Janeiro”. O Estado de São Paulo, 6/X/2022.
[4] Cf. Aldem Bourscheit, “Quase 500 milhões de árvores derrubadas na Amazônia brasileira em 2021”. InfoAmazônia, 5/XI/2021. Veja-se Plena Mata <https://plenamata.eco/>.
[5] Cf. “Amazônia registra recorde de desmatamento no primeiro semestre de 2022”. Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), 8/VII/2022.
[6] Cf. Carolina Dantas, “Queimadas aumentam 82% em relação ao mesmo período de 2018”. G1, 18/VIII/2019.
[7] Cf. “Nasa diz que 2019 é o pior ano de queimadas na Amazônia brasileira desde 2010”. G1, 23/VIII/2019.
[8] Cf. “Brasil registra mais de 200 mil focos de queimadas em 2020”. DW, 03/I/2021.
[9] Cf. “Total de queimadas na Amazônia em menos de 9 meses de 2022 supera o acumulado do ano passado”. G1, 20/IX/2022.
[10] Cf. Xiao Feng et al., “How deregulation, drought and increasing fire impact Amazonian biodiversity”. Nature, 597, 2021, pp. 516-521.
[11] Cf. Murilo Pajolla, "Em alta no governo Bolsonaro, destruição do Cerrado dispara 7,9% e é a maior desde 2016". Brasil de Fato, 4/I/2022.
[12] Cf. Renata Peña, “Área queimada no Pantanal passa de 1 milhão de hectares”. WWF-Brasil, 4/XI/2019.
[13] Cf. “Comparando os incêndios de 2020 com 2021 no Pantanal: O que mudou?”. Pantanal SOS, 27/XII/2021.
[14] Cf. José A. Marengo et al., “Extreme Drought in the Brazilian Pantanal in 2019-2020: Characterization, Causes and Impacts”. Frontiers in Water, 23/II/2021.
[15] Cf. Amaury Ribeiro Jr., “Polícia Federal já tem provas para indiciar fazendeiros de MS por queimadas no Pantanal”. UOL, 25/IX/2021.
[16] Cf. Daniel Ito, “Pantanal: Estudo aponta morte de 17 milhões de animais em queimadas”. Agência Brasil EBC, 16/IX/2021; Giulia Alecrim, “Incêndios no Pantanal mataram quase 17 milhões de animais vertebrados em 2020”. Folha de São Paulo, 15/IX/2020.
[17] Cf. “Desmatamento na Mata Atlântica cresce 66% em um ano”. SOS Mata Atlântica, 24/V/2022.
[18] Cf. Mônica Bérgamo, “Mata atlântica perde 117 campos de futebol por dia em 2022, diz relatório inédito”. Folha de São Paulo, 31/VIII/2022.
[19] Cf. Mônica Bérgamo, “Mata atlântica perde 117 campos de futebol por dia em 2022, diz relatório inédito”. Folha de São Paulo, 31/VIII/2022.
[20] Cf. L. V. Gatti et al. “Amazonia as a carbon source linked to deforestation and climate change”. Nature, 595, 14/VII/2021; L. V. Gatti et al., “Amazon carbon emissions double mainly by dismantled in law enforcement”. Research Square (preprint), 19/IX/2022 <https://doi.org/10.21203/rs.3.rs-2023624/v1>.
[21] Cf. “O fenômeno dos Rios Voadores”. Projeto Rios Voadores.
<http://riosvoadores.com.br/o-projeto/fenomeno-dos-rios-voadores/>.
[22] Cf. A. D. Nobre, O futuro climático da Amazônia: relatório de avaliação científica. São José dos Campos: Articulación Regional Amazónica (ARA), 2014; Idem, “Dança da Chuva”. Parte 1: “Rios Voadores”. Pesquisa Fapesp, 26/XII/2017 <https://www.youtube.com/watch?v=uxgRHmeGHMs&t=27s>.
[23] Cf. Thomas E. Lovejoy & Carlos Nobre, “Amazon tipping point” (editorial). Science Advances, 4, 2, 21/II/2018; Idem, “Amazon tipping point: Last Chance for Action” (editorial). Science Advances, 5, 12, 20/XII/2019.
[24] Cf. Lovejoy & Nobre, cit., 20/XII/2019.
[25] Cf. Carlos Nobre, “A Amazônia está próxima de um ponto de não retorno?”. Manaus, 17/VII/2020 <https://www.youtube.com/watch?v=cg5Rh5CVm48>.
[26] Cf. “A Amazônia está à beira do precipício”, diz climatologista Carlos Nobre”. GZH, 21/VII/2022.
[27] Cf. A. D. Nobre, “O futuro climático da Amazônia. Relatório de Avaliação Científica”. S. José dos Campos, 2014; “There is a river above us”, 15/III/2011 <https://www.youtube.com/watch?v=01jYiXbpnoE>; “Dança da Chuva”. Parte 1: “Rios Voadores”. Pesquisa Fapesp, 26/XII/2017 <https://www.youtube.com/watch?v=uxgRHmeGHMs&t=27s>.
[28] Cf. Marcos H. Costa et al., “Climate risks to Amazon agriculture suggest a rationale to conserve local ecosystems”. Frontiers in Ecology and the Environment, 4/IX/2019; Reinaldo José Lopes, “Desmate diminui chuva na Amazônia e ameaça segunda safra anual na região”. Folha de São Paulo, 12/I/2020.
[29] Cf. “Risco na Lavoura: Inmet Emite Alerta Para Prejuízos Da Estiagem Sobre A Segunda Safra Do Milho Na Região Central Do Brasil”. 11/V/2022.
[30] Cf. “Seca causa prejuízo de R$ 45 bi para o agro em quatro estados”. Canal Rural, 13/I/2022.
[31] Cf. “Como seca histórica no Brasil traz risco de inflação e racionamento de energia”. BBC Brasil e G1, 21/V/2021.
[32] Cf. André Dominiquini, “Produtores calculam prejuízos nas lavouras e correm atrás de seguro rural para a próxima safra”. Bolsa Brasileira de Mercadorias, 4/VIII/2021.
Esse texto é um artigo de opinião e não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.