"Nova história do cinema brasileiro", obra organizada por Fernão Pessoa Ramos e Sheila Schvarzsman, reúne 27 autores
Os números são superlativos: quase 20 anos de maturação, 27 autores e 1.228 páginas, distribuídas em dois volumes. Mas é o ineditismo das pesquisas, das abordagens e da metodologia, sobretudo no campo historiográfico, que coloca Nova história do cinema brasileiro (Edições Sesc), livro organizado por Fernão Pessoa Ramos e Sheila Schvarzsman, no patamar das obras de referência – talvez, a maior – sobre o tema no país.
Fernão Pessoa Ramos, professor do Instituto de Artes (IA) da Unicamp, evita fazer comparações com obras predecessoras, mas indagado sobre as contribuições do livro na esfera acadêmica, ressalta a opção por uma metodologia que privilegia “o diálogo com o seu tempo”, deixando de lado “o excesso de divagação conceitual”.
“A coletânea se constitui na certeza de que é possível trabalhar com o tema contornando a hipertrofia metodológica que há em recortes recentes. Nossa opção foi partir de um campo já estabelecido de estudos sobre cinema brasileiro, acreditando na fecundidade de um eixo básico cronológico sem nos deter, obrigatoriamente, em fases, estágios, movimentos, ciclos ou recortes autorais referendados”, assinalam os organizadores logo na abertura da introdução do livro. “A intenção foi a de frisar o interesse em escrever e pensar o cinema feito no Brasil explorando sua singularidade e as múltiplas teias que dela se lançam”.
As teias mencionadas por Fernão Ramos e Sheila Schvarzsman, conforme demonstram as nuances e o conjunto da coletânea, levam em conta todo o percurso – invariavelmente, acidentado – do cinema no país, sem deixar de expor particularidades e angulações até então ignoradas, preservando o recorte cronológico e fugindo das limitações da “versão-padrão” decorrente da falta de pesquisa primária, como lembra Ramos ao mencionar as novas bases lançadas pelo teórico e historiador do cinema David Bordwell http://www.unicamp.br/unicamp/ju/614/arte-do-cinema-quadro-quadro, autor de Sobre a história do estilo cinematográfico (Editora da Unicamp).
Para ficar em alguns exemplos, são contemplados não apenas períodos e movimentos seminais ou consagrados, mas da mesma forma produções e personagens relegadas até então ao ostracismo ou ao rodapé. Paralelamente, lembra Fernão Ramos, com base em “novos padrões de pesquisa e metodologia rigorosa”, há interação com mídias sociais e a internet. “A figura do pesquisador de cinema brasileiro de perfil exclusivamente crítico, fiando-se na memória e em bancos de dados particulares, acumulados durante a vida, ficou para trás”, diagnostica o docente.
Nesse contexto, Fernão Ramos e Sheila Schvarzsman reforçam que “não ficaram de fora os estudos de práticas sociais especificamente cinematográficas, como a exibição e suas formas, assim como a relação com o espectador. Da mesma maneira, procurou-se incluir protagonistas que não tiveram o devido relevo na historiografia: a participação das mulheres no cinema brasileiro, a presença de gênero em sua diversidade e os cineastas e atores negros e indígenas”.
Na entrevista que segue, Fernão Ramos fala, entre outros temas, sobre o processo de produção do livro, ressalta a importância da obra no campo da pesquisa e do ensino, e analisa o cinema brasileiro contemporâneo.
Jornal da Unicamp – Como foi o processo de produção do livro?
Fernão Pessoa Ramos – A feitura envolveu trabalho de vários anos, iniciado no final de década de 1990, com viés mais objetivo para sua conclusão a partir de 2014. A ideia partiu de uma atualização da edição de 1986 do História do Cinema Brasileiro e evoluiu para um livro totalmente novo respondendo a demandas contemporâneas. Daí o nome Nova História do Cinema Brasileiro, que pretende incorporar temáticas e metodologias recentes. Traz à tona fontes primárias inéditas e pesquisas atuais, defendendo a pertinência do eixo cronológico que orienta e estrutura a obra. É um trabalho coletivo que envolveu 27 autores, incluindo eu e Sheila Schvarzsman como organizadores. São dois volumes e uma versão ampliada em e-book – com mais três ensaios e filmografia inédita de lançamentos.
Demos destaque a períodos que possuem tradição solidificada em pesquisa, mas com abordagens novas, como o cinema das origens no Brasil, os picos regionais de produção no mudo, a transição para o sonoro, o INCE, a Chanchada, a Vera Cruz, as produções independentes nos anos 1950, o Cinema Novo, o Cinema Marginal, a produção vinculada à Embrafilme, a Pornochanchada, a grande crise do final dos anos 1980, a Retomada, o cinema documentário, a produção contemporânea, etc. Orientamos os colaboradores para colocar ênfase em temáticas atuais envolvendo questões de gênero em sua diversidade, a atuação da mulher no Cinema Brasileiro em diferentes períodos históricos, as perspectivas contemporâneas com representações de povos indígenas e afrodescendentes.
JU – O que os moveu? Quais foram seus objetivos?
Fernão Pessoa Ramos – Nosso principal objetivo foi fornecer uma visão panorâmica da história do cinema brasileiro, em diálogo com seu tempo. A questão da atualidade foi central. Há agora novos padrões de pesquisa e muitos trabalhos com metodologia rigorosa lidando com parâmetros diferenciados para coleta de dados, inclusive interagindo com a abertura das mídias sociais e da internet em geral.
A figura do pesquisador de cinema brasileiro de perfil exclusivamente crítico, fiando-se na memória e em bancos de dados particulares, acumulados durante a vida, ficou para trás. Junto com as descobertas de fontes de informação, quisemos dar destaque a questões temáticas em sintonia com o mundo de hoje, sem ficar preso a dilemas do século passado.
JU – Qual é, em sua opinião, a maior contribuição do livro numa perspectiva historiográfica?
Fernão Pessoa Ramos – Talvez a de recuperar a própria ideia de uma história do cinema. A partir de questões levantadas pelo pensamento pós-estruturalista sobre as dimensões éticas que estão envolvidas na opção pelo próprio recorte histórico, corre-se o risco, em meu ponto de vista, de jogar-se fora a água junto com o bebê.
O trabalho focado em fontes primárias, levantamento de dados e viés cronológico, foi ofuscado pela ascensão solar da preocupação com questões metodológicas. Estas, em si mesmas, me parecem válidas, mas o excesso de divagação conceitual teve como consequência uma tendência – em nossa área e em outras também – de privilegiar conceitos abstratos que às vezes ficam rodando em torno de si, sem sair do lugar.
Nosso livro quer recuperar a vontade de se trabalhar com a história do cinema brasileiro, a partir de períodos e metodologia que incorporem questões quentes da atualidade.
JU – Na apresentação, os autores afirmam que a obra procura dialogar com a historiografia estrangeira. O que emergiu desse diálogo?
Fernão Pessoa Ramos – O diálogo se dá dentro dos parâmetros mencionados anteriormente. As referências para uma pesquisa contemporânea a partir de novos arquivos em cinematecas e outros centros de pesquisa produzem resultados palpáveis, tanto no Brasil como no mundo. Em livro lançado pela editora da Unicamp, Sobre a História do Estilo Cinematográfico, de David Bordwell, as potencialidades do trabalho nestas novas bases ficam evidentes.
Como diz o autor, trata-se de questionar as “limitações decorrentes da falta de pesquisa primária” que levaram a criação de uma espécie de “versão-padrão” da história do cinema, algumas vezes sustentada por mitos e quadros de memória. São versões mais fáceis, que buscam uma teleologia da história pouco precisa. A teleologia tecnológica, por exemplo, em sua sobre-determinação, pode ser mencionada. São válidas as preocupações do pensamento contemporâneo com base na desconstrução da dimensão subjetiva da voz enunciativa pelo saber/poder do eixo da enunciação fílmica. Mas elas não devem exaurir a visão de horizonte, podem abrir espaço para uma postura mais hermenêutica. O desafio está em saber penetrar o emaranhado, sem se deixar levar pelas elucubrações em abismo, nem perder de vista o cinema e esses entes que são os seus autores.
JU – Percebe-se que há um esforço de pesquisa a permear toda a obra. Quais as maiores contribuições do livro no campo acadêmico?
Fernão Pessoa Ramos – Certamente é o de estimular o interesse pelo cinema brasileiro entre estudantes e professores, fornecendo material para novas disciplinas e cursos, para o ensino e a pesquisa. A ideia é fornecer uma espécie de mapa da mina, apontando onde entrar e como se aprofundar. O cinema vem tardiamente para a universidade brasileira e entra pela porta de trás, principalmente a partir da década de 1970, dentro dos novos cursos de Comunicação.
Apesar de certa bibliografia em comum, o casamento entre cinema/audiovisual – por audiovisual imaginemos um “filme” bem expandido, partindo das instalações museológicas até as novas séries televisivas de formato Netflix – e a área de Comunicação sempre me pareceu um casamento forçado. Foi um encontro daqueles em que a noiva é levada ao pé do altar não por vontade própria, mas por conveniência. Da leitura dos dois volumes de nosso livro creio que fica claro que o cinema é uma arte, como o são a literatura, a música, as artes cênicas, a dança, a pintura.
Na Unicamp, ele aparece muito bem situado no Instituto de Artes. Mas, na classificação das áreas de conhecimento das agências federais, foi contemplado com uma pequena sesmaria – uma sub-subárea – da Comunicação que, por sua vez, ainda faz parte de um todo maior, as “Ciências Sociais Aplicadas”. As artes e a estética acabaram ficando longe neste quadro, o que gera uma série de dificuldades e deformações. Alguns dos problemas que enfrentamos são decorrentes de bibliografias e campos de conhecimentos díspares que não se complementam, não se articulam.
Então, nosso livro mostra que o cinema brasileiro existe em sua perspectiva diacrônica e é composto por algo que se chama filme, com seus autores nos diversos níveis da composição de uma expressão estética. O movimento do cinema no tempo da história vem em ondas orgânicas, interagindo com outras artes, com direções mais ou menos definidas que sobem e descem conforme o momento. As ondas formam tendências que são pontos específicos de interação com a sociedade, recortes ideológicos, que evoluem numa perspectiva diacrônica. E, o mais importante para nós, é que existe agora toda uma geração de pesquisadores, professores, alunos, dentro e fora da universidade, que gosta de trabalhar e de criar nesse modo de expressão que é estética. Eles são fascinados pelas perspectivas que abre para se exprimirem.
O espaço para o pensamento e para a própria expressão de sensações e emoções pela arte é então indispensável numa universidade moderna. As principais universidades do mundo o reconhecem e afirmam, e a Unicamp cada vez mais está em sintonia com essa demanda.
JU – Há, da mesma forma, ensaios que buscam novas abordagens, com um aprofundamento inusual e raramente encontrado em obras similares. Quais as lacunas preenchidas pelo livro nesse contexto?
Fernão Pessoa Ramos – Há poucos livros com uma visão de conjunto do cinema brasileiro. Não temos um grande autor, como na literatura, no teatro, ou na canção, que tenha se dedicado, no período clássico, a traçar esta visão mais global, que tenha tomado a peito o desafio de escrever uma obra panorâmica. As “histórias” que possuímos são manifestadamente introdutórias – como a de Alex Viany em Introdução ao Cinema Brasileiro, a de Glauber Rocha em Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, ou a de Paulo Emílio Salles Gomes em 70 Anos de Cinema Brasileiro. Há ainda aquelas mais preocupadas, carregando o peso dos questionamentos metodológicos, como é o caso de Jean-Claude Bernardet em Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro.
Uma inovação de nosso livro seria o desafio de traçar e afirmar o viés panorâmico, ainda que não pessoalmente autoral, mas levado a cabo por uma equipe. Também fugimos de ter uma visão mais temática como eixo, que tirasse sua gravidade de recortes singulares com abrangência distinta daquela que almejamos – por exemplo, um foco centrado na questão de gênero, no aspecto midiático do cinema, numa abordagem explorando a representação de classe, etc. Como mencionado, buscamos lidar com um vasto conjunto de demandas contemporâneas, as inserindo dentro de uma disposição historiográfica, que vê o cinema em sua dimensão diacrônica, explorando períodos que se delineiam.
JU – A obra mostra que, sobretudo desde os anos 1930 até o final do século XX, ora o cinema nacional dependia da mão do Estado – casos do INCE e da Embrafilme –, ora dos grandes estúdios e da iniciativa privada. Que balanço o sr. faz dessa alternância?
Fernão Pessoa Ramos – O cinema é uma arte que tem suas particularidades. Uma delas é envolver necessariamente custos altos para sua realização. Ainda que em determinados períodos históricos esta questão seja superada, promovendo os estilos de baixa produção que revolucionaram sua forma – o neo-realismo, a nouvelle vague, o Cinema Novo, o Cinema Marginal, agora produções usando tecnologia digital mais ágil –, o padrão mínimo de financiamento é sempre alto, principalmente se comparado à literatura, à pintura e outras artes. Cinema é uma manifestação em equipe que envolve sempre um grupo de pessoas e um esforço de produção para dar forma ao que chamamos de mise-en-scène.
Neste sentido, em todos os países do mundo – com exceção talvez de determinados setores da grande produção norte-americana –, o cinema, para tornar-se viável, costuma contar com o apoio do Estado. A Vera Cruz, neste sentido, foi uma exceção, que durou pouco e não vingou, respirando quase exclusivamente no excedente de capital que a nova ordem internacional do pós-guerra europeu jogou momentaneamente em economias não centrais. Como exemplo de boa articulação nacional com o Estado, aqui no Brasil, tivemos a Embrafilme. É um caso de interação bem-sucedida de uma estatal se envolvendo diretamente na produção e distribuição/comercialização dos filmes e que, em determinados momentos, dominou a distribuição na América Latina como um todo, assustando as majors norte-americanas.
Nos anos 1990/2000 esta estrutura foi substituída por outras formas de alocação de recursos do Estado, através de leis federais, estaduais ou municipais de isenção fiscal. Entre 1930 e 1960 existiu o INCE, Instituto Nacional do Cinema Educativo, com foco na produção de documentários que, com a capa de filmes educativos, permitiu a alocação de recursos estatais no cinema. Foi um sistema bem mais restrito de produção se comparado à época da Embrafilme.
No lado escuro da Lua, houve a única produção do Cinema Brasileiro completamente independente do Estado e que conseguiu criar um nicho necessário para florescer: a pornochanchada. Contemplando todo o circuito da realização da mercadoria cinematográfica – produção, distribuição e exibição –, as pornochanchadas dominaram vastos setores do Cinema Brasileiro por mais de uma década. Com pouco ou nenhum apoio da Embrafilme, principalmente na Boca do Lixo paulistana, este cinema construiu seu próprio circuito exibidor servido por uma dinâmica estrutura de distribuição que realimentava novas produções. Teve seu próprio star-system, suas formas de divulgação e revistas, diretores consagrados com obras autorais, técnicos formados que viviam exclusivamente das filmagens e um ambiente dinâmico de produção cinematográfica que fervilhava pelos bares e produtoras instaladas em torno da Rua do Triunfo, perto da Estação da Luz, em São Paulo.
JU – Ainda no campo da alternância, observa-se que há períodos de produção abundante e diversificada e outros de crise. A que o sr. atribui esse quadro?
Fernão Pessoa Ramos – Costumo dizer que o cinema, como a vida segundo o poeta, vem em ondas. Talvez em função do alto custo da arte, este caráter ondular, de períodos, é mais agudo. O fato é que, quando há condições favoráveis, o cinema germina como planta fácil e os filmes proliferam. Logo que falta chuva ou adubo, seca e definha, também em velocidade impressionante. Deve ser bom fazer cinema, para que haja tanta gente querendo experimentar – às vezes até mais gente do que quer assistir. Isso transformou o cinema numa arte tão perene quanto dinâmica. A cada dez anos se descobre uma nova tecnologia – o som, a televisão, o videocassete, as tecnologias digitais – e se decreta a morte do cinema e do filme que logo retornam assumindo novas variantes históricas e formais.
Resolvida a equação da produção, sempre se filma muito. No caso brasileiro, o último soluço, a última síncope da produção nacional, foi o final dos anos 1980 na chamada “grande crise”, sobre a qual temos um texto no livro. Saímos do período muito favorável da eclosão da geração cinemanovista seguida pelas conquistas da Embrafilme, para uma completa paralisia da produção. Um dos primeiros atos, literalmente, de Fernando Collor foi fechar de vez a Embrafilme. Extingui-la para ele foi algo simbólico. E o Cinema Brasileiro parou. É significativo que, simultaneamente, apesar de independente do Estado, também o ciclo da pornochanchada chegou ao fim.
Inicia-se então um novo processo de recuperação progressiva que foi chamado de Retomada, até desembocarmos na produção intensa dos dias atuais, ainda sofrendo os problemas de exibição e as deformações de divulgação que conhecemos.
JU – Numa perspectiva histórica, dá para afirmar que o cinema nacional espelhou, ao longo de sua trajetória, a sociedade brasileira e, em última instância, a própria história do país? Se sim, em que medida?
Fernão Pessoa Ramos – A questão do nacional, do estado-nação, no cinema é problemática. É fácil perceber que o cinema é dominantemente uma arte com fortes traços nacionais, uma arte que se delimita dentro dos diferentes “estados-nações”, inclusive pela questão das formas de apoio financeiro que historicamente são predominantemente nacionais. A constatação, no entanto, não deve se transformar em exaltação que envolva negação implícita de recortes comunitários minoritários dentro do Estado, ou correntes de sensibilidade estética ou ideológica que se constelem para além da nacionalidade.
O conceito de World Cinema trabalha bem com a contradição, embora às vezes acabe se enredando nela. Há também a questão da fala, da língua, que é forte no cinema como modalidade da expressão e que a visão mais internacionalista costuma deixar de lado. Paulo Emilio já chamava atenção da pertinência para este aspecto como ponto cego do “se olhar no espelho”. O Cinema Brasileiro provoca um tipo de reação visceral em nós que é singular, uma espécie de intimidade promíscua que não emerge no contato com outras cinematografias.
JU – É nesta proximidade promíscua que se coloca a representação da história e da sociedade?
Fernão Pessoa Ramos – Sim, há momentos na história do cinema brasileiro em que a representação da história e da nação se sobrepõe e vem para primeiro plano – como no segundo fôlego do Cinema Novo, no final dos anos 1960. É interessante notar como a produção mais significativa do cinema brasileiro, aquela que tem repercussão internacional, debate-se na cissura social que assola o país. Minha tese, neste sentido, é que existe um grande fantasma que assola nosso cinema, principalmente a partir da segunda metade do século XX e que dura até hoje: é o da culpa, da má-consciência pela exclusão social. É neste sentido que falo de um mal-estar promíscuo.
A necessidade de financiamento, já mencionada, faz da arte do cinema uma arte exclusivamente das classes médias e alta da sociedade brasileira e torna as coisas mais agudas. É uma arte das elites, se quisermos utilizar um termo de cores mais populistas. Não há um “cinema popular brasileiro”, como na canção há uma música popular brasileira. Não há uma manifestação orgânica, de raiz popular, como é o samba, envolvendo a comunidade de produtores culturais e espectadores/ouvintes. O momento a que chegamos mais próximo disso talvez tenha sido a pornochanchada, mas o corte ideológico, de pequena burguesia deslumbrada com os valores da alta sociedade, é muito forte para considerá-la manifestação “popular”.
Então, esta fissura social que a classe média esclarecida sente, tem um peso especial em nossa cinematografia. É ela – culpa exasperada ou melancolia pelo abismo social e sua crueldade –, que bate no nervo dos principais autores cinematográficos brasileiros. O mal-estar começa já em Humberto Mauro e fica mais intenso na geração cinemanovista, nos paradoxos potencializados barrocamente por Glauber, até chegar plenamente na produção contemporânea da Retomada.
Continuamos a senti-la na má-consciência lacrimosa de um Walter Salles em Central do Brasil; na ignorância leve de uma presença que cerca, bule, mas não pesa, presente no pós-modernismo de Fernando Meirelles (Cidade de Deus); na obtusidade com tons fascistas de José Padilha nos dois Tropa de Elite que quis marcar pelo ferro do ordenamento lógico – o sistema – a intensidade da pulsão que lhe escapa; ou nos grandes momentos do horror do mal-estar em Kleber Mendonça, imagens de um conflito social surdo e latente que transborda, cachoeira de sangue (Som ao Redor) ou praga térmita que devora por dentro (Aquarius). O grande cinema é, então, uma arte que, pela própria repercussão de massa – talvez venha daí essa ideia frágil de que é um ‘meio’ de comunicação –, traz muito perto esse hálito de bater de asas da história.
JU – Que análise o sr. faz da produção contemporânea?
Fernão Pessoa Ramos – O Cinema Brasileiro vive provavelmente um momento positivo, mesmo que longe do ideal. Segundo a Ancine, em 2017 foram lançados 158 longas-metragens, em plena crise econômica aguda. É um número que impressiona por si mesmo. O número de salas de cinema, 3.220, também está em expansão, muito próximo de bater o recorde histórico de 1975 – eram 3.276 salas. É quantidade significativa que contradiz quem acha que o cinema-sala morreu. Na realidade, o filme convive à vontade com os novos meios digitais de exibição, indo e vindo.
Para se ter uma ideia, atravessamos as décadas de 1930 e 1940 com algo em torno de uma dezena de longas por ano, aumentando progressivamente até chegar ao recorde histórico de 1984, com 104 longas, quantidade que deve ser relativizada pela forte presença de filmes de sexo explícito na época. Durante a grande crise no início dos anos 1990, e depois na Retomada, o número de lançamentos chegou a menos de uma dezena por ano, fazendo o quadro de 1984 parecer o sonho perdido de um passado distante.
Ocupamos atualmente cerca de 15% do mercado exibidor – o que não é um número desprezível se relativizado a outras cinematografias, também com tradição forte em seu próprio mercado, como a francesa, a alemã, a italiana ou a argentina. Mal ou bem, temos uma produção que entra no mercado exibidor. São predominantemente comédias, muitas vezes de gosto duvidoso, mas que caberá talvez ao futuro julgá-las com rigor. As chanchadas, que hoje nos deliciam os olhos, durante anos foram consideradas por nossa melhor crítica como um cinema menor.
Na face B do Cinema Brasileiro respira o cinema alternativo, as pequenas produções de jovens – e não tão jovens – cineastas que desafiam esquemas exclusivamente preocupados em fazer girar valor no mercado. Embora tanto o lado A, como o lado B, respirem dentro dos mecanismos de apoio do Estado brasileiro, o financiamento baixo e o circuito de exibição alternativo – festivais, cineclubes, salas de arte –, permite um tipo de expressão voltada para experiências mais radicais e inovadoras. São filmes que tencionam a fôrma narrativa mais clássica. Neste contexto, emerge uma inédita produção popular, colada na periferia, com produtoras com perfil de ONGs comunitárias.
Oscilando pela estilística do documentário, em modos híbridos de encenação e com uma respiração rítmica muito própria, o novíssimo cinema brasileiro quer mudar os tons da fala e da escuta nas telas. Cineastas como Affonso Uchôa (Árabia); Adirley Queiroz (Branco Sai, Preto Fica); André Novais Oliveira (Ela Volta na Quinta); Juliana Antunes (Baronesa); Rodrigo Siqueira (Terra Deu Terra Come); Helvécio Martins/Clarisse Campolina (Girimunho); Marília Rocha (A Falta que Me Faz); Sergio Borges (O Céu Sobre os Ombros); Gabriel Mascaro (Boi Neon); Cao Guimarães (A Alma do Osso) e tanto outros, compõem este quadro.
Há ainda Kleber Mendonça, talvez o mais talentoso dos novos, que já trabalha num esquema de produção mais amplo, com inserção no sistema exibidor e no grande circuito internacional. Em sua diversidade, a produção contemporânea do cinema brasileiro testemunha um burburinho inegável e o dinamismo dos jovens.
Quem é Fernão Pessoa Ramos é professor titular do Departamento de Cinema (Decine) do Instituto de Artes (IA), pesquisador CNPQ e coordenador do Centro de Pesquisas em Cinema Documentário da Unicamp (Cepecidoc). Foi presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine) e também atuou como professor convidado na Universidade Sorbonne Nouvelle Paris III. Na década de 1980, publicou Cinema Marginal (1968-1973): a representação em seu limite e a primeira edição de História do cinema brasileiro. Nos anos 2000, organizou a obra Enciclopédia do cinema brasileiro e Teoria contemporânea do cinema I e II. Mais recentemente, escreveu Mas afinal...o que é mesmo documentário? (2008) e A Imagem-Câmera (2012). |