Maior frequência de eventos severos, como chuvas intensas e inundações, sinalizam a necessidade de rever modelos de desenvolvimento
“Tudo está relacionado”: enchentes, incêndios, ondas de calor, recordes de temperatura e o aumento de eventos extremos. Assim reflete a professora Ana Maria Heuminski de Ávila, do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) da Unicamp. Para a pesquisadora, este verão é didático ao demonstrar a necessidade de atentar para a possibilidade de que eventos intensos, como as fortes chuvas e enchentes que vêm ocorrendo no estado de São Paulo, se tornem cada vez mais frequentes e, assim, venham a fazer parte de uma nova normalidade climática.
“As mudanças climáticas são nada mais do que esses eventos que temos acompanhado se tornando mais frequentes e dentro de uma condição de normalidade. Temos percebido que nos últimos anos, sobretudo depois dos anos 2000, há uma frequência maior destes eventos intensos, que são aqueles que se distanciam da média daquilo que é a nossa referência”, observa Ana. Há um aquecimento da atmosfera e, com isso, um maior potencial para retenção de umidade, o que faz com que as nuvens se tornem mais intensas e a precipitação seja mais forte. “É como uma esponja com o potencial de reter água e quando essa água cai, cai de uma vez. Aí temos as chuvas mais intensas e estiagens mais prolongadas”, aponta.
Os eventos extremos sempre existiram, mas o que a comunidade científica vem evidenciando é que a maior regularidade tem próxima relação com a ação humana. Nos últimos meses, as recentes inundações nos estados de Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo vitimaram pelo menos 70 pessoas e deixaram dezenas de milhares de desalojados ou desabrigados. Moçambique, Reino Unido, Estados Unidos, Indonésia e Índia enfrentaram eventos similares, demonstrando também que há uma amplitude global dos fenômenos. Já na Austrália, uma temporada de incêndios devastadora foi seguida também de graves enchentes. As temperaturas, em nível mundial, bateram recordes em 2019, inclusive na Antártica, o que levou o secretário da Organização das Nações Unidas, em pronunciamento recente, a afirmar: "nosso planeta está queimando".
A severidade dos acontecimentos coloca um alerta para as consequências relacionadas à ação humana e a seus desdobramentos no tocante às mudanças climáticas, ao aquecimento global e aos desastres. A professora Lúcia da Costa Ferreira, coordenadora do Doutorado em Ambiente e Sociedade do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam/IFCH) da Unicamp, explica que as mudanças climáticas não são um fenômeno novo. Elas sempre ocorreram, com as eras geológicas mudando o clima do planeta Terra ao longo do tempo. No entanto, a era Antropoceno, em que vivemos atualmente, designa um período em que a ação humana se sobrepõe às forças da natureza. “O que é importante quando se fala em mudanças climáticas hoje é que há praticamente um consenso de que essas alterações estão sendo provocadas pela ação humana, e não mais por fatores geológicos, cósmicos, etc. A ação do homem tem provocado uma mudança muito rápida na temperatura do planeta que pode provocar alterações que são importantes para o homem e para todas as outras espécies”, afirma.
Inimigos do clima
Inúmeras pesquisas, pontua Lúcia, demonstram que as ações do homem estão provocando uma alteração brusca e profunda no clima do planeta, especialmente após a Revolução Industrial, iniciada no século XVIII, que elevou a emissão de gases de efeito estufa no planeta. “Os principais vetores são o consumo desenfreado de materiais fósseis. A gente usa o petróleo em muitas coisas, mas os combustíveis fósseis têm sido os principais responsáveis pela alteração climática e é por isso que tem muita gente que nega isso, porque há toda uma cadeia produtiva que se produziu em torno do petróleo e que seria afetada se em algum momento houvesse uma alteração dos hábitos e comportamentos”, analisa. A professora também cita o uso de carvão para gerar calor, nos países frios, como outro elemento de impacto negativo. “Tudo isso entra na lista dos inimigos do clima”, observa.
O negacionismo de setores da sociedade e de governos, como o de Donald Trump nos Estados Unidos, e o de Jair Bolsonaro, no Brasil, também é avaliado como prejudicial pela pesquisadora. “O governo brasileiro atual continua nesta política de negação das mudanças climáticas, investindo fortemente em uma política desenvolvimentista predatória. As queimadas que estão acontecendo na Amazônia com o aval do governo federal e os desgastes da legislação ambiental são péssimos para as mudanças climáticas. O Brasil tinha uma posição de liderança no mundo e era muito respeitado por diversas conquistas em prol do controle das mudanças climáticas e hoje está na franja junto com países que são considerados inimigos do controle das mudanças climáticas”, destaca Lúcia.
As queimadas na Amazônia de 2019, lembradas pela docente, destruíram 72 mil km² da floresta, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Um em cada três focos de incêndio ocorreram em zonas desmatadas, conforme levantamento da WWF-Brasil, sugerindo que a prática está em parte relacionada ao uso agrícola da terra. Os impactos da perda da floresta, além de afetarem diretamente o bioma da região, interferem no clima de toda a América do Sul, inclusive no regime de chuvas, como explica a professora Ana. “A conservação da floresta tem um papel nas chuvas. A nossa climatologia está relacionada com a floresta. Em São Paulo, por exemplo, o clima está totalmente ligado com a floresta amazônica”.
A pesquisadora lembra que os estudos pioneiros sobre a Amazônia, do cientista Carlos Nobre, alertam para a possibilidade do bioma tornar-se uma savana caso o desmatamento ultrapasse 25% da área. Hoje, estima-se que 20% já foram desmatados. “Isso tem uma implicação para o clima e traz um efeito dominó. O norte é uma região úmida com a floresta. Se tira a floresta, reduz a chuva para nós no verão. E para onde vai essa chuva? Vai se distribuir durante o ano, vai ser mais escassa? Todas essas questões vão se intercalando”. Estudos sobre a região de Campinas, dos quais ela participou, por exemplo, mostram que a primavera, até os anos 2000, costumava ter chuvas. Hoje, é uma estação seca e já com ondas de calor. Já no inverno, a ocorrência de geada praticamente não acontece mais.
Ana aponta que o modo como agricultura foi expandida, sobretudo a partir da década de 1970, também precisa ser revisto, pois tem uma relação com as mudanças climáticas e incide sobre a destruição das matas ciliares. A manutenção dos rios e das nascentes, dessa forma, é prejudicada e, consequentemente, o ciclo hidrológico torna-se incompleto. “Tudo isso está ligado com a questão climática”, avalia, inclusive o uso de agroquímicos que poluem as águas.
Além disso, segundo a professora, as mudanças climáticas prejudicam a própria produção dos agricultores, com perdas de safras. “Se determinados eventos meteorológicos ocorrem numa época inesperada, causam um transtorno econômico muito grande”, frisa. Um estudo realizado pelo Cepagri mostrou, ainda, que o zoneamento dos cultivos está se alterando. “O resultado da pesquisa foi assustador. Parte das culturas não vão mais produzir nas áreas onde elas produziam com potencial”, afirma.
Outro elemento importante no agravamento dos eventos extremos, salientado pelas professoras Ana e Lúcia, é a urbanização desenfreada e mal estruturada. “Quantos quilômetros a gente anda em uma cidade totalmente pavimentada, sem estrutura de parques adequados? Há uma forma desordenada com que as pessoas foram se organizando”, diz Ana, citando o exemplo de São Paulo.
Lúcia indica que um dos principais problemas do projeto de urbanização em São Paulo é o “empacotamento de rios”. “A cidade São Paulo é uma cidade construída numa região riquíssima de rios. É um absurdo que a cidade tenha empacotado esses rios, colocado tudo em baixo da terra com um sistema de canalização de escoamento da chuva através de canalização das águas pluviais. Esses encanamentos têm uma potência e aguentam um tanto de chuva. Mais do que isso, não só eles são destruídos como a água vai extravasar”. Sistemas “fáceis e amigáveis”, avalia, como as cidades permeáveis à chuva, precisam ser desenvolvidos para mitigar os efeitos dos eventos extremos.
Consequências amplas e ações urgentes
As dimensões das consequências das mudanças climáticas ocorrem em diversos âmbitos, interferindo na vida de todas as espécies, alterando as condições do ciclo de vida, impactando sobre a produção de alimentos, aumentando os níveis do oceano e trazendo maiores riscos de inundações e de períodos de seca. A crise hídrica de São Paulo, em 2014, e os recentes episódios de enchentes são ilustrativos deste desequilíbrio. Assim como os incêndios e os alagamentos na Austrália.
Até pouco tempo, o Brasil não possuía a característica de ter temporadas de fenômenos extremos, como lembra Ana. Porém, eles estão se tornando parte da realidade no país. Por isso, ela avalia que é preciso investir em sistemas de monitoramento, integrados com a Defesa Civil e com sistemas de comunicação, para que se possa atuar de forma efetiva quando um desastre ocorre. O estado de Santa Catarina, observa, é o mais bem preparado em termos de Brasil, uma vez que a ocorrência do furacão Catarina, em 2004, alavancou a necessidade de um sistema mais sofisticado.
A professora Lúcia também afirma que há tecnologia e ciência para este fim. Além disso, há recursos, que muitas vezes ficam parados, como se observou no caso da cidade de São Paulo. “A gente sabe que há vontade dos nossos cientistas, há capacidade científica e tecnológica. Mas além do dinheiro, além das cooperações, precisa a vontade política em todas as escalas. Precisamos ter gente bem treinada, laboratórios, lugares para que essas pessoas se reúnam e tenham um sistema de ação integrado entre múltiplos atores e em múltiplos níveis, para funcionar no momento de um evento extremo”.
Mas para que estes eventos não passem a ser, de fato, a nova normalidade, não basta operar somente quando ocorrem. É preciso rever modelos de desenvolvimento rumo à sustentabilidade. “É uma pena que o Brasil esteja agora do ponto de vista governamental na contramão de um sistema de produção industrial, agrícola e de mercadoria que seja o oposto dessa busca pela transição para a sustentabilidade”, lamenta Lúcia.
No entanto, ela destaca que muito vem sendo feito por grupos de pessoas agindo em torno de alternativas, com pequenas experiências de desenvolvimento social e econômico mais integrados à sustentabilidade e, assim, em sintonia com as possibilidades de se ter avanços no futuro. No âmbito do consumo, Lúcia aponta que a compra de produtos que não causem degradação ambiental e desigualdade social é uma forma de pressionar o mercado a se modificar. “Nós precisamos estudar inovação tecnológica e de comportamentos que sejam mais compatíveis com a área ambiental e com a sustentabilidade”, conclui.