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"Em poucos traços" é uma coluna assinada por Alexandre Soares Carneiro, professor assistente doutor do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL).

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Como e por que não sou romancista

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No início, era o desejo, a ânsia de primar. José de Alencar narra, em Como e porque sou romancista (1873), os primeiros passos de sua “peregrinação literária”. Na origem de sua vocação de escritor, a disputa pelo primeiro lugar da classe e o reconhecimento do mestre. Januário Ferreira “tinha o dom de criar no coração infantil os mais nobres estímulos” e zelava pela correta recitação dos autores de antologia, poetas e oradores sacros. Isso valerá ao jovem Alencar “o honroso cargo de ledor” em sua própria casa. Além das cartas e jornais, lhe confiam, nos serões familiares, a leitura dos volumes da pequena biblioteca disponível. A necessidade de recorrer repetidas vezes aos mesmos romances teria contribuído para gravar em seu espírito “os moldes dessa estrutura literária”.

Então é a vida acadêmica, a descoberta de Joaquim Manuel de Macedo e o “estranho sentir” despertado pelas homenagens à altura tributadas ao autor d’A Moreninha. “Qual régio diadema valia essa auréola de entusiasmo a cingir o nome de um escritor?” O encontro com a “escola francesa” (Balzac, Dumas, Hugo, etc) significará o reconhecimento do modelo romanesco, agora manufaturado com elegância e beleza superiores. “Poema da vida real”, o gênero lhe aparece então ao nível “dessas criações sublimes que a Providência só concede aos semideuses do Pensamento”. Seus esboços narrativos seguem guardados enquanto dirige, com amigos, a revista Ensaios Literários. Em uma temporada no Nordeste, revê as paisagens da infância e pesquisa os cronistas da época colonial. De volta à Corte, atua na imprensa e estreia como folhetinista, conquistando o público com Cinco minutos, A viuvinha, Lucíola, O guarani, etc.

A formação de um escritor não depende de um programa. Em Alencar, o fervor, a curiosidade e os acasos convergem em uma natureza provida de virtudes críticas. Desde a escola, com sua formação declamatória, passando pelas instituições de prestígio, como a Faculdade de Direito e círculos adjacentes, até a notoriedade, seu percurso sugere também o processo descrito por Paul Bénichou como “a sagração do escritor”. Para esse autor, a literatura, em sua acepção moderna, teria feito sua aparição apenas no século XVIII. Marc Fumaroli acrescenta que só no século XIX, libertando-se da eloquência, ela adquirirá consciência de sua autonomia, o que supõe escritores cientes de um poder espiritual reconhecido pela sociedade civil. A era romântica garante-lhe espaços concretos – revistas, editoras, enfim, o “mundo literário” – que lhe permitem “nutrir-se de si mesma e se expandir sobre um público cultivado e reverente.”

O século XX reformula, a partir do movimento simbolista, o ideal de uma supremacia quase religiosa da literatura, doravante afastada da “vida real” e legitimada por uma relação especial com a linguagem. A solenidade envolvida na missão do escritor acaba tornando-se objeto de irreverência, como a praticada por Ivan Lessa em “A difícil arte de não escrever”. O esoterismo estético moderno também tem peculiaridades que se oferecem à sátira (penso nas Crónicas de Bustos Domecq, de Borges e Bioy Casares, paródia de um vanguardismo extravagante). Vistas pelo aspecto favorável, as complexidades da arte verbal admitem uma abordagem mais coloquial e, ocasionalmente, em círculos não acadêmicos, a crítica recupera algo de seu papel didático. É assim que podemos ler esta obra recentemente traduzida no Brasil: Correio literário - ou como se tornar (ou não) um escritor, da poeta polonesa Wisława Szymborska (1923-2012).

Vida Literária era o nome da publicação em que, a partir de 1953, Szymborska atuou como resenhista e crítica. A futura ganhadora do Prêmio Nobel cuidava também da correspondência da revista, devendo comunicar a postulantes malsucedidos a recusa de seus originais, indicando os motivos. Com sarcasmo peculiar, ela se entrega à demolição de cartas desmazeladas, prolixas, ameaçadoras, que eram um mau presságio para os textos que encaminhavam. Esses, à parte os maus-tratos à gramática, resvalavam na emotividade e no desdém pela forma (“pecado original do estreante: a fé na onipotência do tema”). Szymborska explica que o talento “não é um fenômeno de massa”, pois, no fundo, “são os genes que decidem”. Mesmo um escritor talentoso requer, especialmente no princípio, “conselhos e instruções”, e assim incentiva uma atitude crítica frente às próprias produções, encorajando a leitura, a escrita de diários e cartas, a circulação privada dos versos, a reelaboração contínua dos escritos. E, em última instância, por que não ser apenas um leitor?

Despreocupados da fama, nos liberamos para aprender, com as contingências da “vida literária”, uma certa consciência autoral, em que o julgamento comparativo exerce um papel importante. Escrever como autor é colecionar de modo silencioso triunfos sobre nossos próprios limites. A revisão textual seria uma extensão dessa “vocação”: a de zelar por um texto correto, claro e relevante para o leitor. Quem conheceu a ingrata realidade das revisões de provas poderá eventualmente reivindicar o nobre ideal implicado na definição de George Steiner para o intelectual: alguém que tem na mão um lápis enquanto lê um livro. A correção de uma palavra, diz ele, é “um ato de fé”, pois “Deus se esconde nos detalhes”. A reconstrução estilística de um texto espúrio equivale a restaurar a grandeza de um escritor. Houve, porém, um momento em que eu mesmo aspirei a essa grandeza.

Tinha sete anos. Uma composição minha fizera furor entre as professoras (narrava os percalços de um herói socorrido por plantas antropomorfizadas). Uma delas era conhecida da família e minha fama de ficcionista chegou aos parentes, que cobraram novos textos. Eliminada a pressão escolar, faltou-me talento para inventar novos enredos. Arrisquei um poema mas tive dificuldades com as rimas. O sonho da glória literária não se sustentou, e minha carreira sucumbiu como a protagonista da composição de um colega com igual bloqueio criativo. Depois de preencher um parágrafo preambular com lugares-comuns sobre uma borboleta que voava de flor em flor, ele concluiu de forma fulminante: “Um dia, ela disse: Acho que vou morrer. E morreu”. Sua percepção do vazio da existência faria pensar em Beckett, mas seu incontestável vanguardismo consistiu no desejo alegre e corajosamente afirmado de não se tornar escritor.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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