“Toda coisa material tem o seu lado celestial”, afirmava o escritor norte-americano Ralph Waldo Emerson em “Da utilidade dos grandes homens”, texto de abertura de Homens representativos (1850). Essa intuição, que atravessa sua ampla obra, inspira também reflexões sobre a escrita. Ao final de “Goethe, ou o escritor”, capítulo que conclui o livro, ele diz: “Também nós devemos escrever Bíblias, unir de novo os céus e o mundo terreno”.
Em Emerson, o aspecto espiritual da escrita abrange as dimensões da reflexão e da ação. O autor manteve uma intensa atividade de conferencista e ensaísta após abandonar o ministério religioso, ou direcioná-lo a um plano mais intelectual. Devoto da natureza, seu evangelho deriva de uma revelação, aquela testemunhada pela existência dos grandes homens, que orientam um nosso desejo inato de elevação. “A natureza parece existir para a excelência”. Mas esses homens bons, “que tornam a terra salutar”, estão acessíveis. “O que é bom é efetivo, generativo [...]. O que eles sabem, sabem para nós.”
A compatibilidade entre as esferas tem sua correspondência nas palavras. Admirando um engenhoso mecanismo de aproveitamento das marés para a movimentação de moinhos, ele dirá: “Atrele sua carroça às estrelas.” (“Civilização”, 1870). A presença do extraordinário no ordinário sobressai em um fraseado coloquial, porém único, semelhante àquele traço de fisionomia que o fotógrafo capta em um registro afortunado. “Na escrita, o momento da moldagem é da maior importância, e não adianta, em um daguerreótipo, ter o próprio homem diante de si, se sua expressão escapou.”
Formulações certeiras podem desencadear percepções do incomensurável: “uma sentença num livro ou uma palavra insinuada em uma conversa libera nossa fantasia e instantaneamente nossas cabeças são banhadas pelas galáxias”. Tais lampejos, porém, não nascem do vazio. Um espírito elevado se beneficia da grandeza pressentida por outros. Anotações sobre o processo criativo são recorrentes nos diários de Emerson, como mostra Robert D. Richardson. Há desanimadores períodos de esterilidade. Mas sempre se pode trabalhar na colheita daquilo que a língua produziu de marcante, num ecoar mútuo entre falas alheias e voz interior. Em um registro de 1836, encontramos essa sugestão: “Faça sua própria Bíblia. Selecione e colecione todas as palavras e frases que em todas as suas leituras foram para você como o toque de uma trombeta”. Em “Autoconfiança”, ensaio de 1841, sugere-se que acordes angelicais também ressoam quando expomos com liberdade nossas intuições; “pois aquilo que é mais íntimo torna-se, no seu devido tempo, o mais externo — e o nosso primeiro pensamento nos é retribuído pelas trombetas do Juízo Final”.
Um caderno de notas pode ter um papel transformador. Sua forma pode corresponder àquela dos exercícios de autoconhecimento, que ganham publicidade a posteriori. “Para si próprio” era a frase que identificava o conjunto de anotações hoje conhecido como as Meditações de Marco Aurélio. Registros assim abrem uma janela para mentes poderosas em seu estado natural: não há outra maneira de sugerir o efeito do Zibaldone de Leopardi, dos Sudelbücher de Lichtenberg, dos Journaux intimes de Baudelaire ou do Quadern gris de Josep Pla.
Não surpreende que essa forma tenha se desdobrado em uma produção onde a livre reflexão associa-se ao prazer da imaginação. O diário com estatuto literário (ficcional ou não) está representado no Brasil por nomes como Machado de Assis (Memorial de Aires), Helena Morley (Minha Vida de Menina), Cyro dos Anjos (O amanuense Belmiro) e Carlos Drummond de Andrade (O observador no escritório). Mais próximo ao idealizado por Emerson estão os chamados commonplace books, cadernos em que o escritor compila passagens para uso em sermões, discursos, ensaios, como exercício da pena ou mero colecionismo. A prática, que remonta à antiguidade, associa-se ao hábito das edições anotadas e das marginalia. Com seus comentários (mostrou Anthony Grafton), o erudito humanista criava um registro de seu desenvolvimento intelectual.
A simples cópia seria uma maneira de absorver uma verdade, e desfrutar dela de uma forma pessoal, com a marca da própria caligrafia. Versões modernas matizam a solenidade romântica emersoniana. Bioy Casares assim apresenta seu De jardines ajenos: “A lo largo de la vida copié en cuadernos versos breves y fragmentos en prosa que me parecieron muy atinados, o muy hermosos, o muy absurdos.” Consta que sua publicação sofreu vários atrasos, já que os impressores demoravam-se, às vezes às gargalhadas, na leitura dessa miscelânea que combina trechos de Shakespeare, Góngora, Pessoa e outros clássicos a provérbios, coplas populares, frases de parachoque de caminhões e graffiti de banheiros. A vulgaridade também tem seus primores, e essas fagulhas anônimas mostram o quão comumente distribuído é o gosto pelo jogo com as palavras.
Em uma visão complementar, Joan Didion examina (em “Sobre ter um caderno”) o hábito, adquirido na infância, de fazer anotações sem um sentido claro, diálogos ouvidos ao acaso em bares ou elevadores, receitas culinárias, relatos contaminados pela fantasia. Os eventos evaporaram, mas os registros lhe permitiriam recuperar determinado estado de ânimo. Nossos cadernos nos revelam, diz ela, “e o denominador comum do que vemos é sempre, de forma transparente e desavergonhada, o implacável ‘eu’”. Seu papel seria, assim, manter canais abertos para nós mesmos.
Mas não traria toda descoberta a cifra de algo mais elevado? Baudelaire anotou em Meu coração desnudado: “Deus é o eterno confidente nessa tragédia da qual cada um é o herói”. No mesmo manuscrito, lemos: “Ser um grande homem e um santo para si mesmo, eis a única coisa importante”. Inaugurar um diário ou commonplace book não deixa de ser um válido projeto de ano-novo. E presentear com um caderno em branco corresponderia bem ao espírito do período, de dádiva e expectativa. “Em cada nova mente (escreve Emerson) transpira um novo segredo da natureza; nem pode a Bíblia ser dada por completa até que nasça o último grande homem”.