Não perca seu latim. Essa expressão veicula um conselho útil aos que insistem em explicar a quem não parece disposto a entender. Era mais corrente, naturalmente, quando se associava aquela língua a um saber prestigioso, transmitido por poetas, historiadores e filólogos antigos, medievais e renascentistas. A perspectiva prudencial dos provérbios e aforismos manifesta-se frequentemente de forma negativa: escolher não fazer, saber calar, preservar-se. Do evangélico “não lançar pérolas aos porcos” (Mt 7, 6) até a máxima do Duque de La Rochefoucauld – “Não basta ter boas qualidades, é preciso poupá-las” –, são lições de economia.
A frase, porém, ganhou um uso espirituoso no título de uma obra de Paulo Rónai (1907-1992), o grande erudito, professor, tradutor e ensaísta húngaro radicado no Brasil. Trata-se de uma coleção anotada de sentenças latinas de uso geral ou efeito lapidar, repertório que pareceu digno de ser preservado, considerando seus ecos na cultura vernacular, mas também sugerindo certa forma de philosophia perennis cara aos humanistas do renascimento, período importante para seu estudo.
Recordo duas dessas expressões, que me evocam a figura do próprio professor Rónai. In angulo cum libelo seria, em bom português brasileiro, “num cantinho com um livrinho”. Ouvi contar que, ao receber hóspedes no Sítio Pois É, ele mantinha um livro à mão, para retornar à leitura assim que liberado das obrigações de anfitrião. Já Nulla dies sine linea traduz outro hábito cultivado com empenho: sempre estar a fazer notas para o próximo livro, artigo, dicionário, tradução.
Máximas inegavelmente valiosas, pois o exercício contínuo de leitura e escrita ajuda a conquistar o domínio de nosso instrumento de trabalho. Rónai, sabemos, alcançou a maestria em nossa língua, tendo se aproximado dela ainda em seu país de origem, como tradutor de poesia. Mas a falta de desafios dessa magnitude não impediria sua prática.
O estudo dos provérbios (ou “paremiologia”) e o conteúdo dessas sentenças inspiraram, aliás, alguns dos expedientes que passei a usar para sugerir a meus alunos experimentos em escrita ensaística, já que a explicação sobre a pessoalidade desse tipo de texto costuma desencadear elucubrações válidas apenas como acesso aos desassossegos comuns entre os jovens. Elas até podem tornar-se um ponto de partida, se formos capazes de induzi-los a reelaborarem suas inquietações voltando-se a obras de sua predileção, por exemplo. Escrever sobre algo externo para abordar o que nos toca de perto é propor nossa experiência como algo compartilhável, é criar uma oportunidade de encontro com nossos semelhantes.
De modo mais estratégico, no entanto, sugerir um simples "comentário a um provérbio" foi, ao lado de outros exercícios igualmente despretensiosos, replicáveis com relativa facilidade, um modo de levar os estudantes a aventurarem-se em reflexões, sob ângulos variados, acerca de temas gerais e da própria linguagem. A prática, como apontei, remete à tradição humanista e pode nos abrir à experiência ensaística. Penso aqui nos Adagia de Erasmo.
Coleção de provérbios gregos e latinos de enorme sucesso editorial à sua época, a obra, impressa inicialmente em 1500, foi ampliada aos poucos até atingir 4151 entradas em 1536, ano da morte do autor. Comentários adicionais exploram os usos, nuanças e sentidos ocultos das expressões, referidas como "centelhas de uma antiga sabedoria"; eles comportam vastas considerações históricas e filológicas, mas também abrem espaço para digressões filosóficas, caracterizando-se como verdadeiros ensaios. Exemplar a esse respeito é a ampla exposição sobre a expressão "sileni alcibiadis".
Alusão ao caráter paradoxal de Sócrates, indivíduo monstruoso que escondia em seu interior segredos preciosos – um dos pontos-chave do Banquete de Platão –, ela permite a Erasmo mostrar convergências entre o filósofo e Cristo e discutir temas como a piedade e a reforma do clero, reflexão que repercute em sua obra mais famosa, o Elogio da Loucura. Os próprios provérbios, já se observou, poderiam ser lidos nessa chave, visto que, em sua vestimenta simples, sugerem conteúdos inesgotáveis. Recordo que explorar os diferentes sentidos de uma sentença platônica foi o procedimento adotado por Montaigne em um importante texto, "Que filosofar é aprender a morrer". Naturalmente, não se trata de mera especulação sobre palavras.
Voltando à figura de Paulo Rónai, biografado com muita competência por Ana Cecilia Impellizieri Martins, diria que ele encarnava um tipo de filólogo humanista formado segundo as bases clássicas de nossa cultura, mas a seu modo ambientado na experiência brasileira em seus registros mais coloquiais, por índole e pela via do intenso convívio com autores do nosso modernismo. Ainda na Hungria, iniciou, como vimos, seu contato com a literatura do país que o acolheria em um momento crucial de sua vida. Aqui escreveu sobre Guimarães Rosa, Drummond, Jorge de Lima, entre outros; sobre o último, aliás, produziu um ensaio a muitos títulos admirável, "Encontro com a poesia de Jorge de Lima". Redigido em 1948 e republicado dez anos depois em Encontros com o Brasil, revisita ali o impacto que sofreu e a recepção inicial, em seu país, do poeta alagoano, tão peculiarmente apocalítico, que traduzira ao húngaro quando a barbárie nazista já assombrava a Europa.
Não fosse, aliás, a existência de uma respublica literaria – outro pilar da experiência humanista –, teria ele provavelmente sucumbido, como alguns de seus próximos, sob a perseguição e a violência do momento: a intervenção do diplomata Ribeiro Couto, seu consultor para dificuldades lexicais e um dos poetas traduzidos na antologia publicada em 1939, facilitou a concessão, pelas autoridades de um governo antissemita, do asilo ao professor de origem judaica, que lia Virgílio no campo de trabalho a que o enviaram em 1940; e que nesse período funesto registrava, em diário, referências às obras que continua a traduzir, junto a cogitações mais sombrias. Algo daquela noche oscura del alma ecoará em suas reflexões sobre Jorge de Lima, que ainda hoje admiramos pela intensidade das questões existenciais ali difratadas em uma prosa límpida.
Enfim, um itinerário que faz pensar no humanismo, sua crise e sua sobrevivência em contextos desfavoráveis, como as instituições de ensino das províncias periféricas pós-modernas. Mas o que conviria tão bem a um professor de humanidades quanto dissipar seu latim e esperar que a semente caia em bom terreno?
Esse texto é um artigo de opinião e não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.