A emergência climática requer um inestimável esforço em termos de mitigação, de adaptação e, cada vez mais, do enfrentamento de perdas e danos. Dentre as saídas já há muito identificadas está uma mudança radical quanto às fontes de energia, com o emprego cada vez mais disseminado de alternativas renováveis, mais limpas e sustentáveis. A transição busca reduzir a dependência da humanidade em relação aos combustíveis fósseis – como carvão, petróleo e gás natural – e ampliar a adoção de fontes renováveis, o que implica também alterações profundas em setores como os de transporte, da indústria e da agricultura.
Será que a essa transformação na produção e no consumo de energia pode vir a ser um jogo com ganhos positivos? O que pensar das transformações ocorridas nas novas cadeias produtivas que hoje se espalham pelo globo? No caso da energia solar e da eólica, a China alcançou a liderança nos elos a jusante dessas cadeias produtivas (ou downstream) quando, desde o início do milênio, pôs em marcha a aceleração de competências tecnológicas, de ações de liderança na produção de conhecimento científico e técnico-produtivo e da produção em escala das tecnologias associadas à produção e ao consumo desses tipos de energia. O país asiático tem mostrado liderança global também nas tecnologias associadas ao uso dessas fontes, como os veículos elétricos, baterias e componentes eletrônicos.
No panorama geopolítico, a transição energética tem provocado o que Otaviano Canuto, em 2023, chamou de uma versão tecnológica de proxy wars. Uma proxy war é um conflito no qual duas ou mais potências antagônicas empregam terceiros como substitutos para realizar ações militares, de forma que as potências em si não se enfrentam diretamente em confrontos abertos, mas influenciam e apoiam terceiras partes – grupos, facções, países – que combatem entre si. Observa Canuto: “O ambiente econômico global mudou, pois os EUA – e, em um grau menos conflituoso, a União Europeia – estabeleceram claramente um contexto de rivalidade tecnológica com a China” (Canuto, 2023, p.1).
A emergência de um paradigma energético renovável traz a perspectiva de transitar de uma civilização petrodependente para um novo modelo que se mostra intensivo quanto ao consumo de alguns minerais, os chamados minerais críticos. No Cenário Net Zero Emissions by 2050 (NZE), a Agência Internacional de Energia (IEA), em 2023, apontou que a demanda por minerais críticos crescerá três vezes e meia até 2030. Dentre eles, destacam-se os elementos das terras-raras (usados, entre outros fins, na produção de ímãs para turbinas eólicas e motores de veículos elétricos), o lítio (componente de baterias e de outros sistemas de armazenamento de energia), o cobalto (também usado em baterias), a grafita (usado nos ânodos de baterias de lítio), o cobre (condutor elétrico amplamente utilizado na infraestrutura de energia elétrica e em componentes de veículos elétricos), o níquel e o vanádio (ambos utilizados em baterias e outros sistemas de armazenamento). Pelo menos quatro fatores podem influenciar esse cenário de dependência mineral e gerar implicações geopolíticas.
Primeiramente, é verdade que o setor de baterias tem experimentado uma intensa mudança tecnológica, com a constante ampliação das alternativas, gerando impactos quanto aos materiais demandados. Em segundo lugar, é certo que o conhecimento sobre reservas depende de pesquisas e que a prospecção mineral é relevante para se pensar as perspectivas geopolíticas da transição. Em terceiro lugar, observa-se, tanto nos países de alta demanda por minerais como nos países produtores deles, a proliferação de políticas públicas que podem afetar os desdobramentos do panorama das cadeias produtivas das energias renováveis. Finalmente, os investimentos públicos e privados, incluindo parcerias internacionais, avançam rapidamente – inclusive para o fundo do mar. Tudo isso traz implicações para esse panorama que, dessa forma, se mostra vertiginosamente dinâmico. Dito isso, observa-se que a “fotografia atual” dos dados sobre a produção desses minerais não tem mostrado uma grande modificação quanto à distribuição desses materiais pelo planeta, uma distribuição bastante distinta daquela verificada no caso das fontes fósseis (conforme figura abaixo). Nos últimos três anos, essa especialização, aliás, tem se intensificado.
Embora muitas vezes referido com auras de redenção, um novo paradigma renovável também traz preocupações ambientais e sociais. No caso dos minerais críticos, sua extração pode levar – e em muitas situações de fato leva – a conflitos sobre o uso da terra, à perda da biodiversidade, à superexploração e contaminação das águas e a graves infrações dos direitos humanos. Situações amplamente reconhecidas como dramáticas têm desafiado os governos locais, os chamados sistemas ESG (governança ambiental, social e corporativa, na sigla em inglês) e iniciativas locais e globais de proteção aos direitos humanos. O trabalho infantil e as condições de trabalho análogas à escravidão são velhos conhecidos do setor de mineração de cobalto na República Democrática do Congo. Desmatamento, perda da biodiversidade, contaminação da água, conflitos entre etnias e várias formas de violência se intensificaram com a disseminação no país africano dessa atividade, cujos lucros têm sido associados ao financiamento de grupos armados na região.
A mais recente explotação do lítio no chamado Triângulo do Lítio, que abrange territórios da Argentina, do Chile e da Bolívia, tem trazido ameaças à disponibilidade e qualidade da água em uma região que já sofre com a escassez hídrica. O Triângulo do Lítio corresponde a um ecossistema sensível que pode sofrer fragmentação e colapso com a escalada da explotação do mineral. Além disso, muitas das áreas ricas em lítio da região abrangem territórios indígenas e pequenas comunidades locais. A atividade mineradora tem colocado em risco a herança cultural, o direitos às terras e os próprios modos de vida dessas populações.
Os casos do cobalto no Congo e do lítio na América do Sul ilustram os graves riscos ambientais e sociais que podem estar associados à pressão no upstream das cadeias produtivas no limiar do paradigma renovável. Estaríamos abrindo, novamente, as veias da América Latina e do Sul Global?
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
CANUTO, Otaviano. “A Tale of Two Technology Wars: Semiconductors and Clean Energy”. Policy Brief. Policy Center for the New South, Morocco, November 2023. Acesso em 01/02/2024
IEA (2023). “Critical Minerals Market Review 2023”. Acesso em 06/02/2024
Rosana I. Corazza é docente do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp e membro da Comissão Assessora de Mudança Ecológic e Justiça Ambiental (Cameja). Economista, atua em ensino e pesquisa alinhados aos temas da mudança tecnológica, das transformações sociais e do meio ambiente. Atualmente, coordena o projeto interinstitucional Minerais Críticos para a Transição Energética (MineTransE), com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Beatriz M. Saes é professora da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Economista, atualmente é presidente da Sociedade Brasileira da Economia Ecológica (Ecoeco). Na pesquisa, atua nas áreas de desenvolvimento econômico e meio ambiente e economia ecológica.
Neri de Barros Almeida é professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Historiadora, representa a área de humanidades junto à Cameja. Tem interesse no estudo da memória histórica na comunicação da emergência climática.
Bruna A. Branchi é professora na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Economista, atua no Programa de Pós-Graduação em Sustentabilidade, na linha de pesquisa sobre planejamento, gestão e indicadores de sustentabilidade. É líder do grupo de pesquisa Desigualdades Socioeconômicas e Políticas Públicas.