O Rio Itaquaí deságua no Javari, afluente do Solimões, local próximo a cidades no entorno da tríplice fronteira do Brasil com a Colômbia e o Peru. A região do Alto Solimões compreende os municípios de Tabatinga, Benjamin Constant e Atalaia do Norte.
Todos os pesquisadores que trabalham ou já trabalharam na região sabem que cartéis de drogas mantêm um Estado paralelo no Alto Solimões, na Amazônia. É um Brasil onde existe uma organização que impõe regras próprias às comunidades ribeirinhas, indígenas e trabalhadores locais e onde pesquisadores, jornalistas e indigenistas sofrem forte influência de grupos ligados a atividades ilícitas e ao crime organizado nas margens do Rio Itaquaí e arredores. Trata-se de mega esquema de transporte de armas, drogas, de pesca e caça ilegais e lavagem de dinheiro que conformam um sistema complexo em plena atividade pelos rios, florestas e cidades, que tem impacto na economia e sociedades da região.
Foi da comunidade de São Rafael que Pereira e Phillips partiram no último dia 5 de junho em direção a Atalaia do Norte, até não serem mais vistos.
Sem controle do fisco, o dinheiro dos cartéis se mistura ao de negócios constituídos para dar aparência de legalidade aos esquemas que aliciam comerciantes, atravessadores, pescadores, garimpeiros, caçadores e políticos locais.
Todos sabem também que os assassinatos, as emboscadas e a guerra civil correm soltos na região. O que parece peculiar nesse caso não é a barbárie, pois esta dá o tom das relações sociais por ali e são conhecidas e difundidas como retrato da barganha de poder local e regional. O que nos revolta especialmente é a queda das cortinas que enevoavam a cena dramática que permanecia distante aos olhares dos habitantes de outras regiões do país e do mundo. Desta vez mataram e esquartejaram um indigenista conhecido de todos e um jornalista estrangeiro. A importância de ambos colocou o crime e a força dos assassinos no centro do drama nacional e internacional.
A impunidade e a dança da irresponsabilidade das instituições e organizações governamentais que deveriam ser as guardiãs daqueles que trabalham e defendem os cidadãos locais foram jogadas na cara na nação brasileira.
A própria Funai, que deveria velar pela segurança de aldeias e do trabalho em terras indígenas, sofreu um desmonte, como tinha anunciado o Presidente da República durante a campanha eleitoral de 2018: “se depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena”. Além de corte de recursos e do enfraquecimento da legislação de proteção de terras indígenas, Bolsonaro tentou subordinar a Funai aos interesses do agronegócio abrigados no Ministério da Agricultura, o que só não ocorreu graças as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Foi igualmente revelador que o delegado da Polícia Federal e atual Presidente da Funai já tivesse declarado sua vocação para “dar tapa na cara de vagabundo” e desclassificado a viagem de Bruno e Dom, considerada “temerária” e “sem autorização”
Pesquisadores trabalham nessa e em outras regiões pouco habitadas da Amazônia brasileira. Ora sozinhos, ora acompanhados por alunos, alunas, colaboradores e colaboradoras, eles alugam barcos, contratam a tripulação e viajam sem grandes temores por todas essas bandas, sentindo-se protegidos pelas instituições que representam, como universidades públicas e agências de financiamento. Contam também com a proteção e abrigo que proporcionam os sujeitos da pesquisa. Mesmo caminhando e navegando por áreas de conflito, que eram seu objeto de investigação, eles não experimentavam em outros tempos, em momento algum, a sensação de estar em uma terra sem leis.
Alguma coisa mudou e não foi pouca coisa. A transformação na Amazônia foi drástica, foi algo que estilhaçou as relações sociais locais e regionais. E as relações dela com o mundo.
Se estiver correto o um líder indígena quando afirmou que “a Natureza é o espelho de Deus”, é de supor que Ele não esteja feliz com a imagem refletida na natureza da Amazônia.
Onde estavam todos meu Deus? Talvez indo atrás de outras faunas, em outras curvas de rio.
LÚCIA DA COSTA FERREIRA é pesquisadora do Nepam e professora dos programas de doutorados em Ambiente e Sociedade e em Ciências Sociais da Unicamp. Coordenadora da equipe brasileira do projeto Transformações para sustentabilidade na mineração de ouro de pequena escala na Amazônia brasileira: uma perspectiva multi-ator e transregional (FAPESP Processo nº 2018/50033-6), do Programa Conjunto de Pesquisa Belmont Forum /NORFACE Joint Research Program on Transformations to Sustainability e Transformations to Sustainability. E-mail: luciacf@unicamp.br.
ROBERTO PEREIRA GUIMARÃES é Ph.D em Ciência Política, autor, entre outros, de The ecopolitics of development in the third world e The inequality predicament: report on the world social situation. Atuou como coordenador técnico nas Conferências Rio-92, Rio+5 e Rio+10d, desempenha atualmente as funções de presidente do Comité Director de IfE - Initiative for Equality (UN ECOSOC Consultative Status). E-mail: robertoguimaraes@hotmail.com.