Audiodescrição: Imagem colorida de uma gota de água projetando uma planta no fundo.

A coluna Ambiente e Sociedade é um espaço de discussão crítica e analítica sobre as questões ambientais contemporâneas, dando ênfase às problemáticas concernentes às transformações para sociedades sustentáveis. Dentre outros, são abordados temas como mudanças climáticas, políticas públicas ambientais, biodiversidade, degradação ambiental urbana e rural, energia e ambiente, Antropoceno, movimentos ambientalistas, desenvolvimento e sustentabilidade, agricultura sustentável e formação de quadros na área.

Os avanços tímidos e imprecisos de Glasgow

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A decisão de acontecer e de estar em Glasgow foi cercada de incertezas por vários motivos. A COP em si foi realizada em condições atípicas, por conta da pandemia de Covid-19. Vista como COP não inclusiva e esvaziada pelas barreiras sanitárias, impostas a países e a sociedades de todos o mundo, Glasgow revelou, em todos seus aspectos, o momento incerto que o mundo vive. E os seus resultados imprecisos revelam essas incertezas e contradições.

As COPs acontecem em três ambientes bem específicos e que dialogam (ou não) entre si: o da negociação diplomática formal e política; o do mundo de interesses, dos stakeholders e dos influencers; e o das ruas. Mesmo com as suas restrições e formato excepcional, Glasgow recepcionou os três ambientes com as autenticidades e as ambiguidades inerentes. As duas semanas da Conferência foram vividas com dinâmicas próprias em cada um dos ambientes mencionados, além de roteiros orientados por busca de sinergias de visões e de interesses pela descarbonização da economia global.

Boris Johnson e Joe Biden na COP 26. crédito: Fotos Públicas
Boris Johnson e Joe Biden na COP 26. crédito: Fotos Públicas

Numa síntese objetiva, a COP 26 reafirmou que o Acordo de Paris está de pé. Embora não se deva ignorar que Glasgow aconteceu no contexto internacional do pós-Brexit e orientada por uma evidente ambição política de realçar os novos ares de liderança britânica, a perspectiva europeia, acolhida pelo resto do mundo, prevaleceu: o pacote de Glasgow deve levar à implementação do Acordo de Paris e não à sua substituição. Não obstante a Conferência ter sido palco de uma declaração conjunta da China e dos EUA, de busca de alinhamento de visões e de agendas para lidar com a crise climática, os seus resultados políticos foram fragilizados por uma posição de países emergentes (Índia, China e África do Sul) sobre o banimento do carvão mineral.

As duas semanas da Conferência foram marcadas por processos, interesses e dinâmicas políticas diversas, que acabaram por refletirem, em parte, nas negociações diplomáticas e devem seguir marcando a trajetória de consultas e de ação para a COP 27. O Pacto de Glasgow: uma base para uma ação ambiciosa, traduz as bases de um acordo, envolvendo o Livro de Regras para o Acordo de Paris e o compromisso de promessas adicionais de mitigação até 2030, antes do final de 2022.

Embora Glasgow não deva ser vista como um fracasso, os seus resultados e avanços são tímidos, muito aquém das necessidades definidas pela ciência e pautadas pelas ruas, com vistas à meta de manter a elevação média da temperatura do planeta em 1,50 Celsius. Se por um lado, não faltaram promessas por parte dos Chefes de Estado que participaram da Cúpula de Líderes que marcou o início da Conferência; por outro, o teste para verificar se Glasgow significou um avanço ficou adiado para a COP 27, no Egito. É somente lá que os países e os seus governos deverão tornar evidente como as promessas serão implementadas na prática, e como o mundo vai monitorar este processo. Até 2025, o tema da governança climática deve emergir se consolidar como estratégico para lidar com a implementação do Acordo de Paris e o seu Livro de Regras.

As regras para os mercados regulado e voluntário de carbono e de integridade ambiental foram adotadas. Mas, ainda há trabalho a ser feito para lidar com o risco de greenwashing por parte de países e empresas. Por outro lado, o financiamento por parte dos países ricos para a mitigação em países em desenvolvimento foi mais uma vez adiado, embora novas demandas tenham sido apresentadas. Uma frustração política que contribuiu para o distanciamento e a confiança de países em desenvolvimento nos países desenvolvidos. Porém, avanços tímidos foram obtidos para o financiamento da agenda de adaptação, embora esteja cada vez mais presente uma perspectiva de tratar as duas agendas de forma conjunta e orientadas pela resiliência às mudanças do clima.

As declarações políticas de natureza voluntária – florestas e o fim do desmatamento até 2030, carvão, metano, direitos dos povos indígenas e eletrificação de carros – marcaram a primeira semana da COP 26, tornando evidente a sinergia de interesses da sociedade civil, setor privado e (alguns) governos em torno da descarbonização e da construção de resiliência. Além disso, a COP foi palco de inúmeras promessas e compromissos por parte de países, fundos privados, coalizões e alianças internacionais e instituições filantrópicas, afirmando a visão da neutralização do carbono em 2050 e a clara necessidade de uma nova direção para a economia global.

No entanto, Glasgow fez emergir a desconexão entre a visão política dos movimentos das ruas e os corredores da Conferência. Ficou clara a necessidade de mecanismos e de processos de ligação desses dois contextos políticos, orientados por mais transparência, rastreabilidade e accountability, em particular nos setores econômicos. Esse tema não parece estar esgotado e acabou sendo bem ilustrado no frustrado tom do Presidente da COP 26 quanto à decisão (menor) envolvendo a redução progressiva do uso de carvão mineral. Importante lembrar que o enfrentamento às mudanças do clima requer o phasing out (e não o phasing down) de todos os combustíveis fósseis e não somente do carvão mineral. É fundamental que os reais interesses de países produtores de petróleo e gás natural fiquem evidenciados e não somente a dependência de tais fontes de energia por parte de países emergentes e em desenvolvimento.

Além do contexto das negociações, a COP 26 será lembrada pela emergência e consolidação do espaço político da natureza. A agenda de uso da terra, em particular na agricultura, o papel da proteção das florestas tropicais para a segurança climática do planeta, as soluções baseadas na natureza e a conservação de ecossistemas terrestres e marinhos são parte estratégica da meta de 1.50 Celsius. O desafio está em buscar sinergias entre as COP 26 de clima e COP 15 de Biodiversidade, e traduzi-las em ações concretas e financiamentos nos processos das contribuições nacionalmente determinadas – NDC e da plataforma pós-2020 de Conservação da Biodiversidade.

Um dos pontos altos da COP 26 foi a participação da sociedade civil. crédito: Fotos Públicas
Um dos pontos altos da COP 26 foi a participação da sociedade civil. crédito: Fotos Públicas

Não há como deixar de reconhecer que o ponto alto de Glasgow foi, sem dúvida, a participação da sociedade civil, especialmente do Sul global. Durante as duas semanas, pessoas do mundo todo ocuparam as ruas de Glasgow, além das redes sociais, pressionando seus governos por avanços na ambição climática e pela descarbonização da economia global. Esse é mais um movimento político sem volta que está no legado de Glasgow.

Por fim, quanto ao Brasil, o destaque foi sua sociedade e o seu Climate Action Hub. O Brasil verdadeiro estava lá, diverso, pulsante, vigoroso, criativo e com uma maturidade para o diálogo político com o mundo sem precedentes. O Brasil verdadeiro brilhou e foi acolhido pelo mundo. A participação de indígenas, negros e quilombolas, além de jovens brasileiros fez a diferença para o bem. O tema da justiça climática ganhou contornos de brasilidade e inseriu-se de forma definitiva no debate internacional. O envolvimento de governos subnacionais, do setor produtivo e de parlamentares foi percebido, na sua maioria, de forma positiva, pois lá chegaram agendas próprias e capacidade de diálogo internacional. Erraram aqueles que lá foram para defender o passado. A COP 26 tratou do futuro e das incertezas do presente. Sobre o Governo Federal, exceto pelo retorno do Itamaraty em uma versão tímida, embora positiva, não há o que comentar. Foi tudo fake green. É melhor esperar a COP 28.

 

Observação: Os artigos publicados não traduzem a opinião do Jornal da Unicamp. Sua publicação tem como objetivo estimular o debate de ideias no âmbito científico, cultural e social.

 


Izabella Teixeira é copresidente do Painel Internacional de Recursos Naturais da ONU, foi Ministra do Meio Ambiente do Brasil (2010-16). Nomeada Campeã da Terra em 2013, ela é membro titular da Comissão Assessora de Mudanças Ecológicas e Justiça Ambiental da Diretoria Executiva de Direitos Humanos (DEDH), UNICAMP.

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