Por Leila da Costa Ferreira*
A questão sociológica e analítica da problemática da emergência das mudanças climáticas seria: o que a mudança climática faz por nós e como ela altera a ordem da sociedade e a política? Vivendo na modernidade suicida (capitalismo), a caixa preta das questões políticas tradicionais se reabre. Isso induz a necessidade de superar o neoliberalismo e praticar novas formas de responsabilidade transnacional. No caso da mudança climática como metamorfose, há uma aglutinação entre natureza, sociedade e política.
Há vários atores importantes nesse processo; dentre eles as cidades mundiais que surgem como atores cosmopolitas. Ademais, em se tratando de um desafio antropocênico, caracterizado pela sua multidimensionalidade e natureza complexa, seria ingênuo acreditar que apenas um grupo de atores seria capaz de resolver a crise climática. O envolvimento de atores não governamentais, de organizações da sociedade civil, da iniciativa privada, das universidades e instituições de pesquisa é imprescindível para a produção de respostas eficientes e bem-sucedidas ao problema.
Todos sabemos que 54% da população mundial vive em cidades. No caso brasileiro essa população soma 85%. Além disso, as cidades são os maiores emissores de gases de efeito estufa. Segundo o Relatório do Fórum Econômico Mundial, quase metade do PIB global proveniente das cidades (44%) está sob risco devido a perdas da natureza e da biodiversidade.
O relatório mostra que as falhas na ação climática podem prejudicar a economia dos municípios ao redor do mundo. O estudo explica que a biodiversidade contribui positivamente para as atividades econômicas ao influir na qualidade do ar, nos ciclos da água e na regulação das enchentes, além de sustentar a produção de energia, alimentos e medicamentos.
No entanto, as políticas climáticas locais brasileiras são iniciativas isoladas no contexto nacional. Até 2016, apenas sete dos 5.570 municípios tinham legislação específica aprovada relacionada à questão do clima. A maioria delas foi aprovada a partir de 2009, em um momento em que a questão do clima era prioridade na agenda política internacional, na época da Conferência das Partes (COP), em Copenhague. Apenas Belo Horizonte (MG), Feira de Santana (BA), Palmas (TO), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP) e Fortaleza (CE) possuem leis que estabelecem políticas climáticas municipais. Mais recentemente, vimos Recife e Fortaleza com alguns planos políticos, mas ainda não sabemos se vão decolar.
No entanto, no Brasil, em junho de 2017, a Frente Nacional de Prefeitos (FNP), o ICLEI (Governos Locais pela Sustentabilidade) e a União Europeia assinaram o Pacto Global de Prefeitos pelo Clima e Energia, acordo que promove maior colaboração entre as cidades do mundo. Mais de 70 cidades brasileiras fazem parte dessa iniciativa, que buscou construir conexões entre municípios para aumentar a oferta de financiamentos e viabilizar ações locais para o clima e as energias renováveis. Este Pacto é considerado a maior aliança global de cidades e governos locais para conter as mudanças climáticas.
Em nível estadual, podemos observar que apenas 13 estados brasileiros aprovaram suas políticas climáticas.
Podemos analisar abaixo quatro fases das ações relacionadas às estruturas políticas institucionais no Brasil no nível federal.
Na primeira fase, podemos observar as estruturas político-institucionais (1992-2002) e verificamos os seguintes acontecimentos: o Programa Nacional de Mudanças Climáticas (gov) foi criado em 1994, assim como a Comissão para o Desenvolvimento Sustentável e o Centro de Estudos Climáticos (INPE/CPTEC). A Comissão de Mudanças Climáticas Globais foi criada em 1999.O Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas (governo, sociedade civil, setor privado e institutos de pesquisa), em 2000 e temos que considerar ainda a importância da sociedade civil no processo, como a atuação do Observatório do Clima (ONG) desde 2002.
Na segunda fase há o desenvolvimento da agenda climática (2003-2008). O Primeiro Inventário de Emissões dos Gases de Efeito Estufa acontece em 2004. O Plano Nacional de Mudanças Climáticas, em 2007, em conjunto com a Rede Global de Mudanças Climáticas (Rede Clima). Aqui saliento o papel do Centro do Sistema Terrestre (CCST) (2008) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia as Mudanças Climáticas (INCT). Por fim acontece o Plano Nacional de Mudanças Climáticas, em 2008.
Na terceira fase há o estabelecimento da política climática (2009-2012). Em primeiro lugar o Programa de Ação Nacional, em 2009, e o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC). A Política Nacional de Mudança Climática (PNMC) ocorre nesse mesmo ano (2009), em conjunto com o Fundo Nacional de Mudança Climática. Em 2010, acontece o Segundo Inventário Nacional de Emissões de Gases de Efeito Estufa e, em 2012, o Primeiro Relatório do Painel Brasileiro. Ou seja, um período muito significativo para o processo.
Na quarta fase ocorre, portanto, a implementação da política de mudança climática (2013-2017) com os seguintes planos abrangendo todos os biomas nacionais e vários setores: Plano de Controle do Desmatamento para Amazônia Legal, Plano de Controle para o Desmatamento do Cerrado, Plano Energético para Dez Anos, Plano de Agricultura de Baixo Carbono, Plano de Transformação da Indústria, Plano para Emissão de Baixo Carbono, Plano para o Transporte e Mobilidade Urbana.
Concluindo por agora. Até esse período portanto, podemos observar a ação de múltiplos atores e coprodução e ações multi escalares.
No atual governo há grande ceticismo em relação ao aquecimento global, mudanças climáticas e preocupação com os riscos. Além disso, ele promove ações contra o ambiente em casa, em consonância com os grupos ruralistas, aumentando o desmatamento e as queimadas. O governo nega ciência, por isso não há urgência em mitigar as mudanças climáticas, promovendo uma política interna e externa contra o assunto.
Na análise da importância da emergência na política externa de mudanças climáticas, entendemos que o governo é cético, portanto, não há preocupações com esta emergência nem com as atuais e sem perspectivas futuras. Acompanhando a mensagem brasileira em Glasgow, o país anunciou meta pouco ambiciosa de reduzir 50% de emissões até 2030. Na verdade, o Ministro de Meio Ambiente não aponta base de cálculo e o país pode continuar mantendo “pedalada climática”.
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É inegável que nas últimas décadas o Brasil tem tido uma relevância e protagonismo na área ambiental, incluindo aqui a emergência climática. Em todos os setores da sociedade houve avanços na internalização da problemática e podemos dizer que a relação política e ciência contribuiu muito para esse processo. Destaco a relevância dos cientistas brasileiros em diversos postos internacionais e nacionais de formulação e implementação de políticas climáticas. Destaco ainda a importância da diplomacia brasileira no âmbito internacional e saliento o papel que tivemos na Conferência Rio+20 na proposição dos ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável), aprovados pela Assembleia Geral da ONU em 2015.
A partir de 2019, esse governo nega a ciência promovendo uma política externa e interna contra o assunto. São tantos os exemplos que confirmam o caráter antidemocrático, negacionista e atrasado desse governo que os impasses são colocados em várias instâncias.
Neste sentido, os resultados da COP26 não são animadores. Devemos pensar nas eleições de 2022, quando estaremos celebrando 50 anos de Estocolmo. No caso brasileiro, há alguns pontos em que poderemos avançar significativamente, como por exemplo:
Devemos pensar em forte investimento em sistemas coletivos de produção de energia renovável em substituição de hidrelétricas e termelétricas; saneamento básico e sistemas coletivos de produção limpa de alimentos.
Promover forte investimento em economia 4.0 = modelos de produção com tecnologias para mudar a produção, os negócios, o mercado de trabalho e a própria sociedade, como por exemplo, produção tecnológica de essências, alimentos e fármacos a partir das florestas em pé e envolvimento das populações locais.
E robusto investimento cientifico e econômico para manutenção e conservação da biodiversidade, das terras indígenas, e para o replantio de florestas nativas e um forte investimento em acordos para diminuição do uso de agrotóxicos e produção agrícola mista, para proteger a disseminação de pragas na monocultura e para proteção de polinizadores. Além disso, a economia circular, novos modelos de negócios e otimização de processos, com menor dependência de matéria prima virgem, priorizando insumos duráveis, recicláveis e renováveis, melhorando a produção e destinação de resíduos sólidos.
As dimensões, ritmo e consequências devastadoras das mudanças ambientais globais (emergência climática, perda da biodiversidade e poluição) tornam as medidas nesse campo necessariamente estruturantes do conjunto.
A emergência climática, foco prioritário do combate às mudanças ambientais globais, é parte dos processos históricos de exclusão. Desse modo, o combate à emergência climática deve ser apresentado como necessário à correção das desigualdades estruturais. Essa abordagem, fundamentada em dados apresentados tanto pelas ciências da natureza quanto pelas ciências sociais, determina que economia, cultura, pesquisa, justiça, saúde e educação sejam pensadas a partir de compromissos com a transformação favorável tanto à justiça social quanto à justiça ambiental.
O combate à emergência climática deve ser apresentado como aquilo que efetivamente é, como garantia de dignidade humana e como fonte imediata de geração de emprego, trabalho e renda. Essa abordagem elimina a dicotomia entre cidade e campo e estabelece uma abordagem econômica equilibrada em que a geração de renda para o trabalhador não decorre apenas do incentivo à atividade industrial, mas do apoio à agricultura familiar orgânica de curta distância, cujas políticas de apoio devem visar tanto à segurança alimentar, quanto à produção de segurança hídrica e de biodiversidade.
Os sistemas de saúde e de segurança precisam ser preparados para o atendimento a situações de desastre e para a atenção às doenças físicas e mentais decorrentes do cenário ambiental.
A educação e a força psicológica permitirão às novas gerações mais oportunidades de atuação em favor de uma tecnologia orientada para o desenvolvimento social que, no novo cenário, não depende de crescimento econômico, mas da redefinição das prioridades e das oportunidades. Nesse sentido é fundamental o exame das demandas econômicas à luz daquilo que o país já tem em termos de terras disponíveis para uso humano a fim de conciliar geração de emprego e renda no campo, com o aumento da restauração dos ecossistemas terrestres, lacustres e marinhos.
Desse modo, as ações de combate às mudanças ambientais globais são estruturais e, portanto, transversais à economia, à cultura, à educação, à pesquisa e à salvaguarda da democracia. Elas devem ser o princípio necessário a todas as frentes sem se subordinar a nenhuma delas.
Leila da Costa Ferreira
Professora Titular do Departamento de Sociologia/IFCH e pesquisadora sênior do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam)
Observação: Os artigos publicados não traduzem a opinião do Jornal da Unicamp. Sua publicação tem como objetivo estimular o debate de ideias no âmbito científico, cultural e social.