Reflexões sobre o papel da formação universitária no enfrentamento da (in)sustentabilidade da vida humana na Terra
Há muitas décadas, as questões, ditas, “ambientais” ocupam a realidade – e o imaginário – de diferentes sociedades em todo o planeta, seja pelos crescentes impactos sofridos e pelo consequente número de refugiados ambientais, seja pela profusão de eventos de todas as ordens e dimensões. Nesse campo de ação e reflexão, são inimagináveis a quantidade e a diversidade de eventos locais e globais, de publicações para diferentes públicos e línguas, de discussões em âmbitos distintos, de formulação e implementação de políticas públicas, de pesquisas a partir de diferentes áreas do conhecimento, de programas de formação “ambiental”, de acordos e tratados nacionais e internacionais. Enfim, um sem-número de ações e produções humanas. Essas tinham e, ainda têm, o objetivo de difundir, discutir e tentar refrear diferentes processos de degradação jamais vistos anteriormente que demonstram a insustentabilidade de um determinado modo hegemônico de vida humana no planeta. Além da quantidade e pluralidade desses processos, sua dimensão complexa e global tem sido sentida em um número sempre crescente de territórios, em suas populações e, pelas próprias características, nas intrínsecas relações entre essas sociedades e seus ambientes. Dentre todas essas alterações que levam a degradações sociais e ambientais, talvez as mais evidentes, emblemáticas e com consequências sobre muitas outras dimensões humanas e naturais sejam as alterações que nos levaram à emergência climática que estamos vivendo coletivamente, porém, com uma clara desigualdade de impactos e condições de enfrentamento.
Nesse sentido, a dimensão coletiva da emergência da (in)sustentabilidade da vida humana na Terra parece, num primeiro momento, se chocar com as diferenças de percepção, de compreensão e de valoração que essa questão vem suscitando entre os 8 bilhões de pessoas com quem compartilhamos nosso planeta. Não podemos nos esquecer de que as desigualdades de acesso às informações, as dificuldades de compreensão de determinados modos de comunicação, os diferentes graus de exclusão e urgência a que estamos todas e todos submetidos no nosso dia a dia e, finalmente, os diferentes valores e pontos de vista sobre essas questões enfraquecem uma dimensão e postura coletivas que a questão exige!
Como um exemplo entre tantos, e mesmo tendo todas essas diferenças e desigualdades em mente, causa muitas inquietações e dúvidas ler que “40% dos brasileiros acham que combustível fóssil é energia limpa”. Apresentado no dia 15/11/2022 na COP27 (conferência sobre mudanças climáticas realizada neste ano, no Egito), um estudo[1] realizado em seis países, pelo Climate Action Against Disinformation (com apoio no Brasil do Observatório do Clima), traz, entre outros, esse tipo de dado coletado entre adultos com mais de 18 anos no Brasil, na Austrália, na Índia, na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Variando entre 14% (Inglaterra) e 57% (Índia), e com todos os cuidados que enquetes desse tipo suscitam, esses números deveriam nos levar a refletir sobre a ideia de um problema “coletivo” e, principalmente, sobre o papel da Educação no enfrentamento dessas questões.
Mesmo com as diferentes desigualdades apontadas acima, dados como esses causam estranhamento e nos convidam a uma necessária reflexão sobre três aspectos relativos aos processos comunicativos e educativos (aqui divididos de maneira didática, mas que guardam complexas e profundas relações entre si):
- se e como as informações sobre as diferentes degradações chegam às pessoas e se dialogam com seus outros conhecimentos (dimensão “cognitiva”),
- qual sentido essas informações têm para as pessoas e como afetam suas vidas (dimensão “afetiva”) e
- se e como essas informações dialogam com valores e visões de mundo das pessoas (dimensão “política”).
Talvez, neste momento, seja oportuno pensar no papel que universidades, no nosso caso uma instituição pública, podem – e devem – desempenhar frente à evidente, e largamente comprovada, emergência da (in)sustentabilidade em todos os seus graus e dimensões. Como outras instituições, empresas ou organizações sociais, universidades de modo geral e a Unicamp, em particular, vêm construindo interessantes reflexões e ações sobre essas questões e têm estabelecido relações responsáveis por impactos menores frente, por exemplo, ao uso de energia, de água, de “recursos” naturais, à produção de resíduos e sua destinação adequada, à mobilidade dentro de seus campi, à manutenção e ampliação de áreas naturais, enfim, a muitas das dimensões da emergência que estamos vivendo. Essas se constituem em necessárias e indispensáveis ações de gestão ambiental sem as quais nossas contribuições para a insustentabilidade seriam ainda maiores.
De outro lado, universidades são instituições com duas fundamentais missões que podem produzir, a meu ver, impactos “ambientais” muito mais positivos do que aqueles que as ações de gestão ambiental buscam: a produção de conhecimento sobre essa temática e a formação de profissionais que irão atuar por décadas nas mais diferentes esferas da vida social nacional e internacional. O risco da produção de conhecimento para a (in)sustentabilidade da vida pode ser tema de outra reflexão. Neste último caso, gostaria de continuar a reflexão abordando as formações profissionais que oferecemos, na Unicamp, a milhares de jovens anualmente. Essas diferentes formações preparam esses futuros profissionais para compreender e enfrentar essas questões? Quais formações deveriam, obrigatoriamente, receber esse tipo de formação? Há alguma formação para a qual esse tipo de formação seria dispensável? Enfim, quantas e quais contribuições para a insustentabilidade da vida nossos ex-alunos podem gerar se não tiverem na sua formação elementos suficientes na sua atuação como cidadãos e profissionais?
Inicialmente, por força de Lei Federal (9.795/1999), somos obrigados, há mais de duas décadas, a desenvolver a Educação Ambiental como “uma prática educativa integrada, contínua e permanente em todos os níveis e modalidades do ensino formal” e “de maneira integrada aos programas educacionais” que desenvolvemos. Por outro lado, sabemos que a Educação Ambiental se constitui num campo de conhecimento no qual diferentes conceitos e práticas convivem: diferentes concepções de Educação e diferentes concepções de Ambiente trazem para esse campo uma diversidade de Educações Ambientais que exigem que nos perguntemos: qual Educação Ambiental nos oferece condições para a compreensão e o enfrentamento da insustentabilidade social e ambiental que estamos vivendo?
No campo da formação de profissionais universitários, a essa pergunta fundamental, articula-se outra de igual valor e importância: qual cidadão/profissional queremos formar?
As respostas a essas perguntas devem obrigatoriamente passar pela concepção que temos sobre a (in)sustentabilidade da vida humana na Terra, o que exige que nos esforcemos para identificar algumas de suas principais características. Não são poucos os autores que reconhecem ser essa questão:
1) COMPLEXA, pois envolve e articula diferentes saberes e dimensões do mundo natural e social;
2) COLETIVA, pois exige a inclusão de todos os diferentes grupos sociais para seu enfrentamento, dada sua natureza complexa;
3) SOCIOAMBIENTAL, pois apresenta uma indissociabilidade entre as dimensões social e ambiental, e
4) MULTIESCALAR, pois tem características interconectadas entre o local, regional, nacional e global.
Ao considerarmos as graves, múltiplas e distintas emergências ligadas à questão da insustentabilidade aliadas a essas quatro características acima, não parece difícil considerar que o maior objetivo da formação profissional é oferecer condições para que cada estudante, de qualquer área de conhecimento, seja capaz de, individual e coletivamente, posicionar-se ética, autônoma e criticamente sobre essas questões.
Nesse sentido, a Educação Ambiental que favorece esse objetivo deveria nos ajudar a superar práticas centradas fortemente ou, às vezes, exclusivamente, na transmissão de conteúdos. Dessa forma, permitimos que cada estudante, ao se deparar com a realidade das questões da insustentabilidade – sua complexidade, a necessária postura coletiva, a indissociabilidade das dimensões sociais e ambientais e a interconexão entre as realidades locais e globais –, consiga se apropriar de um conjunto de conhecimentos sobre a questão, reconhecer seus próprios afetos e empatias e, fundamentalmente, se posicionar politicamente sobre cada situação experimentada. Como nos ensinou Espinosa, o conhecimento da causa de nossos afetos aumenta nossa potência de agir sobre o mundo! Uma formação universitária que ofereça condições – individuais e coletivas – para que nossos / nossas profissionais reconheçam e articulem seus saberes, seus afetos e suas visões de mundo parece ser o grande objetivo da universidade e de uma Educação Ambiental comprometida com a construção de sociedades sustentáveis.
A superação da emergência da insustentabilidade passa necessariamente – mas não suficientemente – pela construção de um novo processo de formação universitária e de produção de uma Ciência mais comprometida com as demandas sociais atuais e futuras.
Atualmente, já há nas universidades excelentes experiências que permitem esse conjunto quase revolucionário de práticas educativas, transformando nossos estudantes, nossos docentes e nossos técnicos-administrativos, as populações e as realidades com quem desenvolvem suas ações: são os inúmeros projetos de Extensão Comunitária Crítica que têm um enorme potencial de ampliação devido ao crescente processo de Curricularização da Extensão!
*Sandro Tonso atua nas áreas de Educação Ambiental e Extensão Comunitária como pesquisador e docente na Unicamp desde 1995. Desde 1998 é professor da Faculdade de Tecnologia e do Pecim (Programa de Pós-Graduação Multiunidades em Ensino de Ciências e Matemática da Unicamp). Também atua na Comissão Assessora de Mudança Ecológica e Justiça Ambiental (Cameja)/Diretoria Executiva de Direitos Humanos (DeDH) da Unicamp e coordena a Câmara Técnica de Educação Ambiental do Grupo Gestor Universidade Sustentável (GGUS) da Unicamp.
[1] Pesquisa: 40% dos brasileiros acham que combustível fóssil é energia limpa
Esse texto é um artigo de opinião e não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.