Importa dizer que aumento não é aumento. Assim suas excelências, ministros do Supremo Tribunal Federal, nos ensinaram, pacientemente, em lições transmitidas por todos os veículos de comunicação do país no dia 7 de novembro, quando foi aprovado o aumento de 16,38% do salário dos ministros e dos membros da Procuradoria Geral da República (PGR). “É reposição, não é aumento”, disseram, quase em uníssono, os ministros consultados. O ministro Lewandowski lavou as mãos: “Foi o Senado que decidiu. Nós temos defasagem e a reposição cobre parte dessa defasagem dos vencimentos dos juízes em relação à inflação.” Na mesma linha, o ministro Marco Aurélio Melo explicou que suas excelências “vêm tendo perdas nos últimos anos”, e que a decisão “é uma reposição do poder aquisitivo considerado o período entre 2009 e 2014.” E assim se pronunciaram todos, exceto os ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Celso de Mello e Cármen Lúcia, que se posicionaram contrários ao reajuste.
Do ponto de vista jurídico, parece não haver dúvida de que “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”, como se diz na linguagem popular. Uma coisa – a revisão – se refere à mera recomposição do valor da moeda em decorrência da inflação registrada no período, e a outra coisa – o aumento ou reajuste – se refere ao incremento do valor inicial, descontado o efeito corrosivo da inflação. Tendo me formado primariamente em Direito, não tive dificuldade para entender essa lógica. Mas como cursei o liceu clássico e tive formação insatisfatória em matemática (hoje me dou conta que à época já era um absurdo formar jovens sem o domínio da linguagem matemática, e hoje é praticamente um crime que 70% dos nossos estudantes de 15 anos estejam abaixo da proficiência básica nesta área, como indica o PISA), não consigo entender como é possível repor uma perda salarial sem ao mesmo tempo conceder um aumento: se eu tinha 10 e perdi 2, a reposição da perda exige um aumento equivalente ao que foi perdido. Parece que sem aumento a conta não fecha. Logo, como leigo, posso concluir que não é correto dizer que o aumento concedido não é aumento, ainda que o objetivo do reajuste/aumento tenha sido apenas repor as perdas.
Não preciso lembrar o que todos sabemos: que neste mesmo período que suas excelências perderam parte do seu poder aquisitivo, o rendimento médio do brasileiro – que em 2017 era de R$1268,00, o equivalente a 1/26 do salário básico dos ministros – também foi reduzido, e a maioria não tem como obter o reajuste concedido generosamente aos ministros. É também preciso dizer que pelas mesmas circunstâncias econômicas que afetaram o poder aquisitivo dos ministros, que de todo modo contam com auxílio habitação, boas diárias quando se distanciam do Planalto, plano de saúde especial e de altíssima qualidade, automóvel oficial, dentre outros benefícios “menores”, praticamente 13 milhões de brasileiros perderam toda a sua renda e, de quebra, ainda perderam parte da “dignidade” que em nossa sociedade advém de ter um emprego e uma renda. E pior ainda, quase 15 milhões de brasileiros – os desalentados, segundo o IBGE – já não contam nem com a esperança de conseguir um trabalho.
Mas é preciso dizer, também, que os ministros não estão sozinhos neste pleito por reajustes e aumentos salariais e na busca de reparação do direito ferido pela inflação. Vemos, por toda parte, funcionários públicos exigindo dos governantes a recomposição das perdas salariais, como se estes tivessem uma varinha mágica para produzir os recursos necessários para atender as demandas e não vivêssemos a mais grave crise econômica da história da República. O fato é que, mesmo mandando às favas os direitos dos demais, incluindo o acesso aos serviços de saúde e educação e um mínimo de segurança pública, não seria possível conceder os aumentos porque não existe o milagre da multiplicação dos peixes, e nem mesmo os bons governantes – raros nos tempos de hoje – podem resolver, no curto prazo, este conjunto de demandas. Coloca-se, sem dúvida, uma decisão espinhosa para os políticos: o Estado deve servir à Nação ou a Nação trabalhar para manter um Estado que zela primariamente pelas demandas corporativas de seus funcionários, sem separar o joio do trigo e capitular diante dos grupos que têm maior poder.
Esta situação lembrou-me de uma carta de Dom Pedro II à Princesa Isabel, a qual menciono de memória. Respondendo às lamúrias da princesa quanto às dificuldades que enfrentava para viver com a verba oficial a ela destinada, Dom Pedro lembrou-a, em primeiro lugar, que ela não era princesa do Império Britânico, e que ele mesmo nunca havia solicitado aumento (e suponho que nem reposição) porque sabia que se o fizesse, todos os demais, senadores, deputados, ministros e conselheiros, aumentariam seus soldos, e o Império não aguentaria tantas despesas. Suas excelências, tão bem informados, deixaram de levar em conta os efeitos da reposição sobre as contas públicas, e o impacto que terá sobre o bem-estar da Nação – caso seja sancionado pelo Presidente Temer. Tampouco parece que pensaram que neste caso o direito deles e da minoria que se beneficiará da reposição-aumento se contrapõe, diretamente, ao direito da maioria absoluta, a começar pelos 70% de aposentados que recebem o salário mínimo, os enfermos que não têm acesso aos medicamentos básicos, os ... Melhor interromper a lista, que é grande demais para o espaço do artigo.
Em outra carta, essa sim disponível na excelente coletânea Conselho aos Governantes, publicada pelo Senado Federal, Dom Pedro II dá uma boa lição à filha, que bem poderia ser aproveitada pelos ministros, ao lhe escrever: “Com bem entendida economia, e fugindo o mais possível do que é luxo, chega sempre o dinheiro para muito, e estou certo de que minha filha não quererá qualquer aumento do que recebe do Estado.” Um exemplo claro de moralidade pública que falta nos dias de hoje.
Bem ao contrário do que vemos hoje no Brasil: o “luxo” virou direito e o muito dinheiro nunca chega para satisfazer as necessidades de uma pequena casta de funcionários que se sente acima da cidadania. E os aumentos e reajustes são sempre demandados, e concedidos, em nome do interesse público maior, embora aqueles que mais servem à população, profissionais da saúde, professores e policiais, dentre outros, recebam sempre bem menos do que aqueles que têm maior poder político.
É preciso dizer que este livro de Conselho aos Governantes deveria ser leitura obrigatória para todos os políticos eleitos e funcionários de Estado. É provável que alguns nem consigam ler, posto que são analfabetos funcionais, embora tenham sido democraticamente eleitos e ou regularmente indicados para função gratificada como pagamento de favores que Dom Pedro II condenava, ao aconselhar que a Princesa regente evitasse nomeações de “qualquer autoridade” por conta de “graças e favores”, e recomendar que a ocupação dos cargos deveria depender, “sobretudo da nomeação de empregados honestos e aptos para os empregos”, lembrando que “os interesses eleitorais contrariam, no estado atual, direta ou indiretamente, o acerto dessa nomeação.” Outra parte dos leitores compulsórios nada aprenderia, mas nesse caso a leitura valeria como castigo. E certamente muitos – talvez a maioria dos servidores públicos – passariam a levar em conta vários dos bons conselhos contidos no volume, e a Nação se beneficiaria das ações destes funcionários e governantes.
Falando do Tesouro, parece que Dom Pedro II escreveu pensando na situação de hoje: “o estado deste [do Tesouro] exige muita economia, isto é, gastar com o maior proveito.” Em uma segunda carta, volta ao assunto e diz ser dever do imperador evitar “ser pesado ao tesouro público, mesmo pelo que possa parecer despesa de ordem pública ou aos particulares, e não aceitando favores destes ou do Poder Legislativo em tal sentido.” Parece que já estava condenando os presentes, o toma lá dá cá e os acertos espúrios que tomaram conta da política brasileira. O Estado não deveria ser pesado à sociedade, a quem deve servir.
Um imperador sem dúvida neoliberal, que manda para a filha uma citação de Du Halde, encontrada na Compilação das obras escritas sob os Ming, que diz: “La rovina delle dinastie di Tsin e di Tiu venne da ció, che invece di limitarsi come gli antichi ad un ispezione generale, la sola che a sovrano convenga, precesero governare ogni cosa immediatamente da sestessi." E complementa com outra afirmação, de Cantu (História Universal), que se pergunta: “é non é questa una delle cause generale di rovina alle monarchie?" Não apenas da monarquia, como bem ilustra nossa ruína atual, provocada principalmente pelas ações de um Estado que há décadas pretende governar todas as coisas, e que para tanto vem distribuindo recursos e favores, e se tornou pesado para o Tesouro e para a sociedade.
Dom Pedro II também se preocupa com a formação do gabinete, em uma passagem cuja leitura é bastante útil para o momento atual. Diz que “o Conselho de Estado deve compor-se das pessoas de ambos os partidos constitucionais, isto é, que respeitem o nosso sistema do governo, e que sejam honestas, de maior capacidade intelectual e conhecimento dos negócios públicos. Cumpre firmar bem este princípio, mesmo para que os adversários do Ministério não pensem que este os propõe para conselheiros de Estado a fim de influir sobre suas opiniões políticas.” E arremata: “A intolerância, que não é independência, a qual vão mostrando os partidos, reclama todo tino no modo de proceder a eles.” Também recomenda “escolher o honesto, o moderado, o que tenha mais capacidade intelectual e serviços ao Estado”.
Impressiona sua visão estratégica de estadista. Em 1876, em um império escravocrata, Dom Pedro diz que “sem educação generalizada nunca haverá boas eleições; portanto, é preciso atender, o mais possível, a essa importantíssima consideração.” Passados quase 150 anos a verdadeira educação ainda é um privilégio, e a prova é a posição do Brasil nos testes internacionais de proficiência do ensino. Também se preocupa com a infraestrutura para o desenvolvimento do Império: depois de recomendar “que se dê andamentos aos projetos de lei das estradas de ferro do Madeira, e [da] que deve ligar o alto da bacia S. Francisco ao longo da parte encachoeirada”, diz que dá “tamanha importância a uma estrada de ferro para Mato Grosso, que não posso deixar de recomendar insistentemente que se cuide de sua melhor direção e construção, embora lenta, conforme o permitam os recursos do Tesouro.” Certamente que nunca imaginou que seria tão lento a ponto de até hoje não ter sido completada. O agronegócio agradece as providências pedidas por Dom Pedro II em sua missiva à princesa.
Desviei-me do assunto principal, e peço desculpas aos leitores pela perda de foco, e espero que compreendam que fui seduzido pelo conjunto de conselhos dados por um personagem importante da nossa história, mas completamente desconhecido para a maioria dos jovens, que talvez nem saibam que o Brasil um dia foi um império de fato, e não apenas nos desfiles das escolas de samba.
É preciso dizer que o presidente Temer perdeu sua última oportunidade de se comportar como estadista. Talvez nunca tenha lido os conselhos de Dom Pedro. E se os leu, não aprendeu. Como a maioria dos estudantes brasileiros
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