ReproduçãoRenê José Trentin Silveira é professor livre-docente do Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, onde fez doutorado (1998). Membro do grupo de pesquisa Senso do Programa de Pós-Graduação em Educação da FE. Atua nas linhas de pesquisa “Pensamento filosófico e educação” e “Ensino de Filosofia”. Principais áreas e temas de pesquisa: Antonio Gramsci, Ensino de Filosofia; História da Educação brasileira no período pós-1964; Filosofia e Educação.

 

ReproduçãoRoberto Goto é professor do Departamento de Filosofia e História da Educação (Defhe) da Faculdade de Educação da Unicamp e membro do Grupo Senso, dedicado a estudos e pesquisas sobre pensamento filosófico e ensino de Filosofia. Escreveu e publicou os ensaios Ideologia do Brasil malandro, A atitude macunaímica e O escritor e o cidadão.

 

ReproduçãoRodrigo Marcos de Jesus é professor de Filosofia na Universidade Federal de Mato Grosso/UFMT. Doutorando na Faculdade de Educação da Unicamp. Coordenador de área do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência/PIBID Filosofia (2012-2017). Integrante da Rede de pesquisa “História e Catolicismo no Mundo Contemporâneo”, do Grupo Senso e do Grupo FIBRA (Filosofia no Brasil/FAJE). Autor de Cristianismo Libertador: religião e política em Leonardo Boff.

Hipótese equívoca, raciocínio falaz

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O estudo “Efeitos da inserção das disciplinas de Filosofia e Sociologia no Ensino Médio sobre o desempenho escolar”, reportado por Érica Fraga na edição de 16 de abril da Folha de S. Paulo (Filosofia e sociologia obrigatórias derrubam notas em matemática), atribui ao ensino das citadas disciplinas, tornado obrigatório em 2008 pela Lei 11.684, uma redução das notas de alunos de escolas públicas localizadas em municípios com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH); segundo ele, a queda teria sido de 11,8% em Redação, 8,8% em Matemática e 7,7% em Linguagens.

Tal como se apresenta – e é reproduzida pela reportagem –, a hipótese formulada pelos autores do trabalho padece do que Merleau-Ponty (em seu Elogio da Filosofia) chamava de má ambiguidade, na medida em que responsabiliza explicitamente as disciplinas e implicitamente os efeitos acarretados na carga horária por sua inserção no currículo. Esse segundo fator só se torna conhecido graças aos argumentos expostos pelos pesquisadores, que apontam para o seu desdobramento em dois aspectos: Thais Waideman Niquito lamenta que, com a entrada de Filosofia e Sociologia, “disciplinas como Matemática” sejam “sacrificadas”; Adolfo Sachsida considera que “são muitas disciplinas”, o que demandaria a realização de estudos extraclasse e prejudicaria os jovens que não dispõem de tempo e/ou de familiares que os ajudem nessas tarefas.  Embora convergentes e complementares, trata-se de proposições distintas entre si: a primeira, mais específica, indica que a introdução de Filosofia e Sociologia se dá em detrimento de outras disciplinas, notadamente Matemática; a segunda, mais genérica, acusa a ampliação do currículo e a concomitante e consequente sobrecarga de trabalho escolar. De toda a forma, em ambas as vertentes, a argumentação não prova a hipótese explícita; mostra apenas que o problema está no fato de Filosofia e Sociologia ocuparem uma carga horária que faria falta a outras disciplinas. Nesse caso, seria indiferente o fato de tratar-se das mencionadas disciplinas ou de outras quaisquer, pois o que prejudica o desempenho dos alunos em Matemática, Redação e Linguagens seria, basicamente, a redução da carga horária dessas disciplinas e/ou áreas.

 Para responsabilizar direta e precisamente Filosofia e Sociologia pelo suposto prejuízo seria necessário encontrar no ensino e nos conteúdos daquelas disciplinas causas específicas do declínio observado no desempenho escolar dos jovens nos domínios em questão: por exemplo, em que medida o fato de ter de haver-se com um texto de Platão ou de Durkheim levaria o estudante a tirar notas baixas em Matemática, Redação e Linguagens. Não há, ao menos na reportagem, nenhum indício de que a pesquisa haja se aprofundado a tal nível, o que, porém, se supõe como imprescindível para apresentar uma hipótese que, considerando o título do estudo, põe em questão as disciplinas qualitativamente, apontando um dedo acusador para seus nomes próprios. Sem um tal aprofundamento, o raciocínio que parece embasar a pesquisa incorre numa falácia do tipo post hoc, que toma o que ocorre depois de um evento (no caso, a implementação, a partir de 2009, da Lei 11.684) como efeito desse mesmo evento.

Mesmo na dimensão quantitativa, a demonstração da hipótese pressupõe e exige a apresentação de dados relativos ao número de aulas ocupadas pelas disciplinas introduzidas a partir de 2009 e a análise de seu impacto na carga horária dos componentes curriculares. Em outros termos, quantas horas-aulas, exatamente, foram atribuídas à Filosofia e à Sociologia em cada série e o que isso representou, quantitativamente, em perdas para outras disciplinas e áreas? Os pesquisadores ficam a dever esses cálculos e informações quando da publicação de seu estudo pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), bem como a explicação de aparentes incongruências ou singularidades, como o fato de no “país todo” as notas em Ciências Exatas terem caído 1,1%, ao passo que nas localidades com baixo IDH a queda foi menor, de 0,9% – estatística que, aparentemente, fragiliza ou “relativiza” a hipótese do trabalho.  

Quando se sabe que, de modo geral, as escolas têm sido parcimoniosas na atribuição de carga horária às disciplinas alvejadas pelo estudo, não destinando mais que uma (1) hora-aula semanal para cada uma, fica a dúvida a respeito do tamanho da falta que ela pode fazer em disciplinas que continuam tendo carga horária três ou quatro vezes maior. Nesse ponto, entretanto, passa-se dos juízos de fato para os de valor, e o sabor que remanesce da leitura da reportagem é um tanto amargo: a impressão é a de que se trava uma competição por migalhas, no contexto de uma repetitiva subordinação do educacional ao econômico e de um raciocínio bastante estreito, para não dizer acanhado.

Vê-se, pela manifestação da autora da pesquisa, que sua preocupação predominante é com “o baixo nível de capital humano no Brasil”, o que demanda a escola como formadora de mão de obra – função associada à qualificação para o trabalho, que ocupa o terceiro lugar no elenco das finalidades que a Constituição (em seu artigo 205) atribui à educação, as outras duas sendo o pleno desenvolvimento da pessoa e o preparo para o exercício da cidadania. “Não podemos nos dar ao luxo de piorar o que já é ruim”, acrescenta a mesma autora. Esse comentário, no contexto em que ocorre, suscita pelo menos duas perguntas: 1) será um luxo a manutenção de Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino Médio?; 2) não se deve, em vez de competir por uma carga horária insuficiente, propor e propugnar sua ampliação de molde a contemplar satisfatoriamente todas as disciplinas?

Em suma, por que considerar que as disciplinas concorrem umas contra as outras? Se o propósito é a formação integral do estudante – na qual se inclui o preparo para o exercício da cidadania, como prescreve a Lei de Diretrizes e Bases –, impõe-se a cooperação entre os componentes curriculares e não faz sentido priorizar e/ou privilegiar uma determinada área do conhecimento. É preciso levar em conta o conjunto de saberes e competências fundamentais para a formação da pessoa. Isso implica, no mínimo, oferecer aos estudantes a possibilidade de contato com o acervo cultural e científico que se encontra organizado e sistematizado em um conjunto de disciplinas, presentes na estrutura curricular brasileira. Restringir-se ao estudo de um grupo limitado de saberes numa fase crucial de formação, como é o Ensino Médio, significa privar os jovens estudantes do convívio com parte expressiva daquilo que a humanidade produziu em termos de cultura e ciência, além de estreitar a visão de mundo e as possibilidades existenciais de cada pessoa que frequenta a escola.  

 

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