Ataques foram também uma crise de segurança

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No dia 8 de janeiro de 2023, ocorreu um assalto massivo ao Planalto de Brasília. De modo inédito, foram depredados e furtados vários objetos do patrimônio público. Foi um ataque simbólico às instituições do Estado e à democracia, mimetizando a invasão do Capitólio nos Estados Unidos, que ocorrera dois anos antes, em 6 de janeiro de 2021. Num e noutro lugar, as ações foram coordenadas por adeptos radicais de Bolsonaro e de Trump, incapazes de aceitar que seus presidentes não resistiram à força das urnas no segundo pleito eleitoral.

Nos quartéis generais, “QGs” espalhados pelo país, instalados em frente a instituições das forças armadas, permaneceram centenas de pessoas acampadas durante dois meses. Todos os dias, clamaram pela intervenção militar. Na manhã do dia 1º de janeiro, no QG de Brasília, os ânimos se exaltaram, e houve a pretensão de invadir o Planalto para impedir que Lula da Silva, presidente eleito, assumisse. Tudo pôde ser acompanhado diariamente e em tempo real no canal do Youtube “Política sem curva”. No dia da posse, uma liderança subiu no palanque e discursou: “Não temos número suficiente. Aqueles que leram ‘A arte da guerra’ de Sun Tzu sabem que precisamos de milhares para vencer esta guerra. Cadê os milhões que votaram no presidente Bolsonaro? Por que não estão aqui?”

Ali se previa que era preciso organizar o movimento, e assim aconteceu na semana seguinte. O número seria mobilizado à custa da “terceirização” e privatização da luta política. Tudo indica que houve participação ativa de quadros militares e das forças armadas. O movimento foi ativado com pagamento de diárias e “vaquinhas”, como é frequente acontecer no Brasil com trabalhadores temporários em eventos de lazer improvisados. Vários dos manifestantes conseguiram penetrar a esplanada, adentrar os espaços dos três poderes — executivo, legislativo, judiciário — e causar danos ao patrimônio.

Embora o Ministério da Justiça e de Segurança Pública (MJSP), na figura de seu ministro, Flávio Dino, tenha afirmado que estava articulada a segurança aos prédios, ficou claro que além da revolta política se instalou uma crise de segurança pública. Podemos analisá-la em duas vertentes complementares, a crise de segurança do Estado e a crise de segurança nas ruas.

Mediante a irremediável suspeita de colaborações nos bastidores, o secretário de segurança pública do governo do Distrito Federal, Anderson Torres (de férias na Flórida, EUA), foi oficialmente exonerado da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal no dia seguinte aos ataques dos três poderes, e o governador eleito, Ibaneis Rocha, foi afastado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) durante 90 dias até a conclusão das investigações. Houve conivências e omissões políticas a vários níveis, envolvendo uma pequena parcela de diversas forças de segurança: a Polícia Militar do Distrito Federal e a guarda presidencial (Batalhão do Exército conhecido como “Duque de Caxias”). Também a Polícia Rodoviária Federal nas estradas, ao contrário do que aconteceu no dia da eleição, assistiu passivamente ao ocorrido e escoltou manifestantes chegando em dezenas de ônibus lotados a Brasília. Dias após a ocorrência das ações antidemocráticas e de atentado golpista, foram presos milhares de criminosos.

O episódio de vandalismo ocorrido no dia 8 de janeiro de 2023 coloca em relevo a complexa relação entre as polícias no Brasil e a articulação das atribuições que competem a cada uma delas.

Os órgãos policiais encarregados pela segurança pública estão assentados pela Constituição de 1988, no art. 144, sendo a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Ferroviária Federal, as Polícias Civis (incluindo as Polícias Técnico-Científicas), as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares, as Polícias Penais Federal, Estaduais e Distrital.

Acrescentem-se ainda a Força Nacional (composta por forças policiais estaduais civis e militares, incluindo bombeiros) e as Guardas Municipais (Lei nº 13.022/2014, art. 144, § 8º). Para a segurança do poder público federal, existem a Guarda Presidencial (Exército) e a Polícia Legislativa.

A Polícia Federal (subordinada ao MJSP) e a Polícia Civil desempenham papel judiciário (de investigação) e trabalham para identificar autores de crime e coleta de provas que serão encaminhadas ao Ministério Público para, então, prosseguirem com a ação penal. Às polícias militares cabe a função de atuação ostensiva no combate ao crime. A Força Nacional é cedida ao MJSP para atuar em catástrofes, rebeliões em presídios, fronteiras e questões de ordem pública que envolvem a esfera federal. Às guardas municipais, cabe o papel de zeladoria dos territórios municipais.

A Guarda Presidencial, que no dia do evento foi à última da hora dispensada, está destinada a função cerimonial e função operacional de preservar o prédio do Palácio do Planalto. Já a Polícia Legislativa atende a questões administrativas dos dois poderes do Congresso (Câmara dos Deputados e do Senado) e do acesso dos visitantes e ao bem público destes dois poderes, além de atuar nos protestos e na contenção de tentativas de invasão.

As Forças Armadas (FFAA) podem ser consideradas um capítulo à parte. A sua participação na história recente da política brasileira se desenvolve há mais de 25 anos, se considerada exclusivamente a Política Nacional de Defesa, com papel cada vez maior nos diversos níveis do governo federal e cujas atribuições abrangem desde missões de paz no exterior até o combate à criminalidade nos estados.

O protagonismo das FFAA vem suscitando análises de que elas caminham para elevar ao nível institucional um projeto capaz de instaurar um centro de inteligência enquanto dispositivo avaliador do Estado. E, não por acaso, seu contingente humano nas decisões governamentais se torna cada vez mais expressivo. Mais de 6 mil militares foram empregados na administração pública de 2019 a 2021, dentre os quais houve participantes nas manifestações de 7 de setembro. No final de 2022, havia 1.231 integrantes ativos das FFAA cedidos ao governo Bolsonaro, contra 1.026 ao final de 2018, fechando o governo Temer. Isto representa uma alta de 20% em 4 anos, segundo dados do Ministério da Fazenda.

Não é na falta de um quadro sistêmico de policiamento de Estado que reside o problema. Ao contrário, conferir organicidade a este emaranhado de funções e atribuições pode resultar em efeitos colaterais, como presenciados durante a tentativa de golpe de Estado. E, entre a desgastada tentativa de golpe, o vandalismo popular básico e incauto e a criação dessa espécie de evento improvisado com pessoas subcontratadas, ficou mais uma vez escancarada a brecha política na segurança pública com potencial de adesão individual e inconstitucional. Não é suposto as forças policiais trabalharem para a inoperância e omissão pública quando convocadas para conter as violências das manifestações em curso.

A crise de segurança pública passou, assim, para as ruas, o segundo eixo de análise neste texto. No evento de 8 de janeiro, como noutros, observa-se o problema de não haver clareza entre o que é do domínio do controle da ordem pública e do direito individual à manifestação, com possível uso de violência. É nesta brecha que, frequentemente, se politizam as forças policiais e seus agentes individualmente. A história evidencia que as ações de força tendem a ser mais substanciais, quando não de extrema violência, contra as manifestações progressistas, sendo que nestes eventos se registram comportamentos amistosos, diferentemente do que ocorre com as manifestações conservadoras. Esta oscilação, com o uso desigual do poder repressivo e a parcialidade de agentes públicos nas ruas, transforma a polícia num ator político que deixa de lado a preparação técnica que lhe cabe quando se trata de dirimir quaisquer atos violentos e conflitos. Isso é suficiente para gerar crises de segurança nos estados, tal como aconteceu no Brasil.

A possibilidade de comandos e de seus policiais individualmente se politizarem é um enorme dilema para o Estado, pois pode colocar em xeque a isenção de atuação das forças de segurança. Nos últimos quatro anos, assistimos à radicalização e instrumentalização política destas forças.

Dias depois da tentativa de assalto à Praça dos Três Poderes, encontrou-se uma minuta na residência do então secretário de segurança pública do DF, Anderson Torres, cujo conteúdo fazia explicitamente a menção de quebra de ordem instituída. E o desfecho poderia ter sido mais grave, se o presidente Lula tivesse acionado a missão de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) pelas condições expostas num contexto de apoio de setores das FFAA e das frações policiais aos golpistas. Essa minuta com intenções golpistas, cujo objetivo era reverter a derrota de Bolsonaro nas eleições presidenciais, efetivaria a instauração de estado de defesa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Na história recente brasileira, não houve momento tão propício quanto o de 8 de janeiro para possibilitar aos policiais individualmente alcançarem capital político. Isto levou a que, no seio das forças, fosse alargada a confusão entre direitos políticos e individuais.

O que se viu no fatídico 8 de janeiro de 2023 foi a Praça dos Três Poderes com exíguo contingente de segurança interna da polícia legislativa, judiciária e da guarnição do Exército da rampa do Planalto.  Na ocasião, poucas lideranças políticas se encontravam no Distrito Federal. Foi posto em curso um potencial movimento golpista reprovado pela própria sociedade enquanto se veiculava em tempo real a destruição e a barbárie dos manifestantes.

Assim, assistimos nas ruas a uma ambiguidade profundamente enraizada nas forças de segurança, que alcançou uma imensa capilaridade. Todavia, a possibilidade de realização de golpe de Estado vem sendo cogitada e intensificada desde os primeiros meses no governo federal.

Veja-se que um dos objetivos estratégicos dos golpistas foi cogitado nas redes sociais, qual seja, a possibilidade de acionar a polícia internacional para se restabelecer a quebra de possível autoridade constitucional do governo legitimamente eleito. A polícia internacional é acionada em caso de sublevação ou quebra de hierarquia no comando das polícias nacionais. Este foi o maior temor para os setores a favor da pressão antidemocrática ocorrida nas comemorações oficiais de 7 de setembro de 2022, que contaram com o apoio político do ex-presidente.

Algo semelhante aconteceu com a quebra de disciplina militar em 2019 na Bolívia de Evo Morales, quando manifestantes civis não aceitaram os resultados das urnas. Acrescente-se que o discurso dos bolsonaristas não necessariamente pregou o retorno de Jair Bolsonaro ao poder, haja vista que os grupos nas redes sociais estão fortemente engajados no fim da democracia e na defesa de um governo militar. Isto vem se gestando num pequeno grupo radical e golpista no Partido Liberal.

Do exposto, pode-se inferir que a ocorrência de 8 de janeiro não foi apenas uma versão do Capitólio estadunidense de dois anos antes, mas um projeto político de ingerência militar nas decisões da vida política brasileira. As manifestações na Praça dos Três Poderes foram premeditadas com lastro financeiro que se estendeu do privado para o público, visto que foram custeadas não apenas por empresários, como também por fundo eleitoral de bolsonaristas (alguns deles presos) que se candidataram em 2022 e que integraram a sigla do Partido Liberal, Patriota, PMN, PRTB, Solidariedade e Democracia Cristã.

Se, há décadas, os movimentos sociais organizados vêm pedindo a desmilitarização das polícias, no sentido de estas deixarem de ser fundamentalmente aparatos de repressão baseados em instrumentos militares, hoje, um outro dilema ganha a cena. A questão é saber se os policiais devem agir individualmente, de acordo com as suas posições, chapas e cargos políticos, ou se precisam ser “despolitizados”. Onde está a distinção clara (que nunca o é realmente) entre os direitos individuais e os deveres coletivos que os agentes da segurança assumem ao enveredar por essas profissões?

Não se pode esperar dos policiais, nem dos cidadãos, que estejam individualmente motivados e preparados para respeitar a ordem pública. Quer se goste ou não, educar os cidadãos e cidadãs para a convivência pacífica é um dos papéis históricos assumidos pelos Estados. Ações de segurança demasiado violenta ou lenientes e tardias não ajudam a construção democrática. E, como temos visto, oficiais de polícia e soldados agindo com arbitrariedade e parcialidade podem mesmo contribuir para a destruição do sentido da política.

Cumpre dizer que as análises realizadas por diversos especialistas comprometidos com a democracia tratam do episódio com o respeito às instituições. Da mesma forma, as autoridades dos Três Poderes e as medidas adotadas pelo recém-empossado Governo Federal vêm demonstrando unidade de ação entre os poderes institucionais e políticos contra os golpistas, fortalecendo as instituições do país, incluindo as forças de segurança na ordem pública e garantia da democracia.

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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