Acompanhando a coletiva de imprensa do Grupo de Trabalho de Meio Ambiente do Gabinete de Transição do Governo, fui anotando as palavras-chave. “Agenda Climática”, “Sustentabilidade”, “Florestas Tropicais”, “Amazônia”, “Desmatamento”, “Povos Originários”, “Unidades de Conservação” e “Bioeconomia” foram alguns destaques. A prioridade desse GT, por ora, está apresentada na meta do “desmatamento zero até 2023”, como disse a ex-ministra e deputada eleita Marina Silva. O vocabulário dos discursos apresentados na coletiva foi semelhante ao do discurso proferido, na COP-27, pelo presidente eleito. Uma palavra de que senti falta nesses dois momentos: “banheiros”.
O acesso a água potável e ao saneamento são direitos humanos reconhecidos pela Organização das Nações Unidas. No Brasil, o “saneamento básico”, que engloba os serviços de abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo dos resíduos sólidos e drenagem urbana, assume papel central na garantia dos direitos constitucionais de saúde pública e de meio ambiente equilibrado. A existência de banheiros e o destino do esgoto sanitário – aspectos centrais, inclusive, para o Censo do IBGE 2022 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) que está em andamento – têm relação direta com a promoção de uma sadia qualidade de vida, como apontado no artigo 225 da Constituição Federal. Qual seria a estratégia político-institucional para deixar estático o debate sobre o saneamento no âmbito da “infraestrutura” e das “cidades”?
Em reportagem publicada na imprensa no dia 17 de novembro, foi apontado que o GT de Cidades estaria propondo recomendações no que tange ao “Novo Marco Legal do Saneamento”. A Lei 11.445/2007, que até o ano de 2018 se apresentava como o grande pilar estruturante do setor de saneamento, começou a entrar na agenda política de forma mais intensa após as duas medidas provisórias assinadas pelo então presidente interino, Michel Temer – MP nº 844/2018 e MP nº 868/2018. Apesar de seus prazos de vigência terem se encerrado, os efeitos dessas medidas provisórias se materializaram no Projeto de Lei nº 4.162, aprovado na Câmara dos Deputados em dezembro de 2019. Em junho de 2020, o projeto foi aprovado no Senado e, um mês depois, sancionado por Jair Bolsonaro.
A rápida mobilização política para a aprovação desse Novo Marco Legal trazia os argumentos de segurança jurídica, regulação mais estável e atração de investimentos privados, mesclado com a relevância do tema em plena crise sanitária posta pela pandemia de covid-19. Liderado por representantes do Ministério da Economia e por atores não governamentais como a Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon), assim como agências reguladoras e prestadores de serviço, o debate ficou restrito ao aspecto “infraestrutural” em sua dimensão material e econômica.
A invisibilidade dos aspectos socioambientais relacionados aos serviços de saneamento no contexto da aprovação do Novo Marco faz emergir a necessidade urgente de transbordar o debate do GT de Cidades e/ou o GT de Infraestrutura para o GT de Meio Ambiente. Acrescento, ainda, a necessidade desse transbordamento alcançar o GT de Povos Originários e o GT de Igualdade Racial. Falar de “banheiros” no contexto dos Povos e Comunidades Tradicionais é relevante no atual cenário de inexistência de dados específicos em relação à cobertura de abastecimento de água e esgotamento sanitário de todas as 29 categorias reconhecidas pelo decreto nº 8.750/2016, gerando-se diagnósticos incompletos que contribuem para que esses grupos sociais permaneçam excluídos da meta de “universalização” do saneamento. A reivindicação da garantia de atendimento das necessidades básicas por meio de políticas públicas integradas, como arduamente fizeram as redes de solidariedade atuantes nos territórios tradicionais durante a pandemia, fortalece a dimensão do combate à desigualdade, pilar central do governo eleito.
“Banheiros” é uma palavra-chave agregadora: estimula o diálogo de dez políticas públicas nacionais, entre elas a Política Nacional de Meio Ambiente, a Política Nacional de Saúde e a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais; demanda a articulação de 11 ministérios, a exemplo do Ministério do Desenvolvimento Regional, Ministério da Cidadania, Ministério da Economia e Ministério do Meio Ambiente; e fortalece a participação da sociedade civil na construção e no monitoramento dos diversos programas e projetos atrelados ao tema, mobilizando seis conselhos nacionais deliberativos e consultivos, como o Conselho Nacional de Recursos Hídricos e o Conselho Nacional de Meio Ambiente. Além de seu poder agregador no âmbito governamental, a palavra estimula ações de educação ambiental e extensão universitária, a partir da práxis freiriana.
As metas do “desmatamento zero” e da “universalização do saneamento” até 2033 podem caminhar juntas, mobilizando os atores governamentais e não governamentais atuantes na agenda socioambiental. E o diálogo entre essas duas metas começa com uma palavra: “banheiros”.
*Lara Ramos Monteiro Silva é Engenheira Ambiental pela Universidade de São Paulo (USP) e mestra em Política Científica e Tecnológica pelo Instituto de Geociências (IG) Unicamp. É membro do Laboratório de Tecnologia e Transformações Sociais (LABTTS) do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT/IG), Unicamp.