Durante o processo de fecundação, 50% do conteúdo genético vem da mãe e a outra metade do pai. Até aí, nenhuma novidade. Mas, e se mãe e pai fossem capazes de transmitir também aos seus filhos, características de controle sobre o processo da expressão desses genes? Ou seja, pais e mães, apesar de transmitirem seus genes à prole, podem transmitir características que irão interferir na forma (intensidade) como esses genes irão trabalhar. Mas é possível ir além! E se os avós e os bisavós também fossem capazes de controlar, de alguma forma, o funcionamento do DNA do neto/bisneto? Talvez o bebê tenha recebido os genes do olho azul do pai e também da mãe, mas mesmo assim apresenta incríveis olhos de jabuticaba! Aprofundando um pouco mais nisso, talvez o bebê tenha herdado os genes que mantêm em concentrações ótimas o mau colesterol, mas por alguma razão esse gene não funciona bem e esse herdeiro poderia manifestar hipercolesterolemia, mesmo se alimentando de forma adequada.
Recentemente aprendemos que, uma coisa é o fato de herdarmos e, portanto, sermos portadores de genes específicos, mas outra coisa é a forma como esse gene irá trabalhar. Então, dá-se início à ciência da programação fetal! Atualmente compreendemos isso como “epigenética”, ou seja, apesar do indivíduo ser portador de um gene específico, esse gene trabalhará de acordo com informações privilegiadas (ou não), obtidas de acordo com as características ambientais onde seus antecessores viveram. Trocando em miúdos, o ambiente funciona como um tipo de hacker que altera a programação original do sistema.
Mãe obesa, pai obeso e, principalmente, ambos obesos podem transmitir características de economia energética aos descendentes. Que fique claro, não estamos falando de genes! Desta forma, mesmo sob dieta controlada e atividade física, os descendentes teriam tendência a acumular peso. Mas se não são genes que controlam isso, o que seria então? Durante o processo de transmissão gênica, os genes podem estar trazendo dos pais algumas moléculas acopladas, capazes de nortear seu funcionamento, para mais ou para menos.
O interessante estudo sobre a “fome holandesa” nos ensinou muito sobre isso. Hitler, no auge de sua loucura, ordenou cerco à Holanda, cerceando o abastecimento de alimentos ao país. O consumo energético despencou de aproximadamente 2.900 Kcal/dia para 1.000 Kcal/dia. Entretanto, sagazes, os holandeses avançaram com as técnicas de plantio de batatas! Ordinário, Hitler mandou inundar os campos das plantações holandesas. Naquele estágio, o consumo calórico chegou à média de apenas 500 Kcal/dia. A desnutrição avassaladora foi cruel com o país. Mortes por diversos motivos, e agora, fome severa. Ainda assim a vida continuava. Casais tiveram filhos nesse período. Foram chamados de “filhos da fome”. Após o fim da segunda guerra e com o retorno do abastecimento à Holanda, os mesmos casais tiveram outros filhos, mas agora sob estado nutricional normal. A partir disso, iniciou-se estudo comparativo entre irmãos de mesmo pai e mãe. Teoricamente, a variação genética entre irmãos seria pequena, restando mesmo as características ambientais onde os fetos foram gestados, como a principal variável a ser debatida. Diga-se de passagem, esse estudo só foi possível graças ao elevado grau de complexidade e organização de coleta de dados de saúde que a Holanda já possuía para a época.
O desfecho não foi surpreendente de início. Filhos de pais gestados no período da fome desenvolveram obesidade, em comparação aos irmãos gestados em ambiente com distribuição alimentar normalizada. Já era sabido que, de alguma forma, ambientes energeticamente carentes eram capazes de induzir acúmulo de energia no descendente, mesmo se esse descendente se mantivesse em consumo calórico normal durante sua vida. Mas se isso não é surpreendente, o que poderia ser? Esses descendentes do período da fome, mesmo em situação normal, também apresentaram insuficiência renal e traços de esquizofrenia, quando comparados aos irmãos do período abastado. Ora, não estamos falando apenas sobre genes. Existe algo mais. Além do pai e mãe, avós e bisavós, o ambiente também passa informação. Isso se demonstra fundamental do ponto de vista evolutivo. Acontece que esse padrão de alteração na função dos genes influencia regiões inesperadas. Neste momento a ciência concentra-se em tentar compreender qual gene poderá ter sua ação modificada a partir de um mesmo comportamento ambiental dos ancestrais.
Os primeiros hominídeos, caçadores e coletores, disputavam com hienas e abutres os restos de animais. Praticamente passavam dias correndo atrás do alimento, que insistia em fugir! Quando conseguiam a caça, a duração era de no máximo dois dias, já que não dominavam o fogo ainda. Mas mesmo com esse domínio, a duração do alimento aumentou apenas 1 dia em média. Portanto, os indivíduos continuavam correndo 6-8 dias atrás de alimento e o alimento durando pouco. Então, nesse período de escassez extrema e gasto energético elevadíssimo devido à alta atividade física, o ambiente imperou mais uma vez. Os indivíduos que sobreviveram foram aqueles que projetaram para sua prole características de economia, induzindo elevação no consumo alimentar e poupança no gasto energético. O ambiente foi capaz de induzir esse belo exemplo de seleção natural. Sobreviveram os indivíduos capazes de poupar mais. O problema é que essas características se mantêm até hoje, sendo uma das causas evolutivas associadas à obesidade, já que nosso ambiente transitou da escassez à abundância alimentar.
Para evitarmos os deselegantes termos químicos, compreendemos atualmente que os genes podem ter suas ações facilitadas ou prejudicadas. Imagine que um gene é um código preso no DNA e que precisa ser acessado em determinado momento. Se a estrutura responsável por esse acesso tem dificuldade, esse gene pode ser pouco ou nada copiado e, portanto, poucas moléculas estarão disponíveis para executarem sua função característica. Mas o contrário é verdadeiro. Um gene que se acessa com muita facilidade produz muitas cópias de moléculas que executarão muito sua função. Para resumir e simplificar, dependendo ao que a mãe ou pai foram expostos durante sua vida, o padrão de acesso a esse gene pode ser modificado, e isso passado para a próxima e próxima geração.
Apesar de ser visível em humanos, foi em roedores que aprendemos o mecanismo disso. É possível encontrar gordura no fígado de camundongos que se alimentam de dietas equilibradas, mas que são netos de camundongos(as) obesos(as) que consumiram muita gordura durante sua vida. A gordura alimentar em excesso nos avós induziu alteração no padrão de síntese de gordura hepática nos netos, mesmo estes e seus pais se alimentando normalmente. Os genes que controlam a “queima” estão truncados nos netos, enquanto que aqueles responsáveis pela síntese estão muito disponíveis. Ainda estamos na fase de determinação do mecanismo desses desfechos, mas o que sabemos por enquanto é que você não é feito apenas de suas experiências, mas das experiências de seus pais, e dos pais de seus pais. Lembre-se que o excesso ou ausência de atividade física, agrotóxicos, medicamentos, poluição, estresse etc., também interferem na programação genética. Portanto, cuide do seu ambiente e tenha um “hackeamento” mais saudável!