Sobre antípodas, mapas e Terra plana

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Foto: Antonio ScarpinettiEduardo Marandola Jr. é geógrafo pela Universidade Estadual de Londrina (2002-3), doutor em Geografia (2008) e Livre Docente em Sociedade e Ambiente (2016) pela Unicamp, onde é professor associado do Núcleo Geral Comum da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA). Tem trabalhado principalmente com a abordagem fenomenológica, discutindo ontologia, epistemologia e literatura, em busca de abordagens teórico-metodológicas da interdisciplinaridade contemporânea.

 

ReproduçãoMapas são artefatos extraordinários. Eriçam nossa sensibilidade e aguçam nossa imaginação. Nos apresentam o mundo para ver de longe, do alto, mas também permitem o mergulho, a sensação corpórea de estar-no-mundo.

Não é à toa que já inspiraram muitos, desde aqueles que compuseram verdadeiras obras de arte desde a antiguidade (quem não aprecia a sensação deliciosa de se perder diante de um mapa antigo, com seus traços, imagens e símbolos), passando pela moderna map art (que explora inclusive os mapas digitais georreferenciados) até poetas, escritores e outros artistas.

São célebres os poemas “Legenda com a palavra mapa”, de Adélia Prado, ou O mapa, de Mário Quintana, ou ainda os fantásticos mapas criados em obras de ficção, como os da Terra Média, de Tolkien, de Westeros, nas Crônicas de Gelo e Fogo, de Utopia, na clássica obra de Erasmo, de Lilliput, nas Aventuras de Gulliver, entre tantos outros mapas criados pela literatura.

A situação dos mapas entre retrato objetivo da realidade, sua representação e a imaginação, portanto, parece ser uma constante em sua história. Ao contrário do que o senso comum parece acreditar, a história dos mapas não é a da objetividade pura, mas de uma posição sui generis entre representação e apresentação. De um lado, se tomamos os mapas como representações, eles são obras que elegem elementos de um dado quadro espacial, social e temporal, constituindo-o como imagem que se dá à apreensão. Ou seja, busca representar com exatidão uma dada realidade geográfica a partir de uma linguagem semiótica. De outro lado, entendendo o caráter de apresentação dos mapas, estes podem estar mais comprometidos com uma forma de ver o mundo, ou seja, com a apresentação de um imago mundi, que tem menos compromisso com o que o mundo é, orientando-se mais para aquilo que o mundo pode ser.

Trata-se, nada mais, do que a fronteira borrada e pouco nítida entre ciência e arte. Os mapas são obras que historicamente habitaram esta região limítrofe que às vezes parece muito clara (falsamente), entre um conhecimento objetivo e uma obra subjetiva. Eles, particularmente, parecem desafiar este afã delimitador, deslocando-nos no espaço-entre destes dois aparentemente distintos mundos.

Este flerte entre o histórica e geograficamente dado e a lenda, o mito e a imaginação é um dos motes do excelente História das terras e lugares lendários, de Umberto Eco (Record, 2013). Lindo livro que explora estas nuances, o famoso escritor e semiologista italiano nos convida a explorar esta terra de ambiguidades na qual a própria historiografia nos lança, entre verdades veementes de uma época que se tornam lendas em outras, e lendas que se criam como verdades, ambas atestadas pelos testemunhos de mapas.

Logo no seu primeiro capítulo, que me motiva nesta escrita, Eco debate os posicionamentos acerca da forma da Terra, tomando como ponto de partida um entendimento corrente de que na Idade Média europeia era consolidada a ideia de que a Terra era plana. Este entendimento é sustentado fartamente pelos mapas, como os famosos mapas O-T (Figura 1), cuja esfericidade plana (O) estava dividida pelos mares (T) entre os três continentes conhecidos: Ásia (acima), África (à direita) e Europa (à esquerda), com Jerusalém ao centro. Eco, no entanto, vai mostrando, com aquela erudição que lhe é particular, que a crença na esfericidade da terra, já presente entre os pré-socráticos e reafirmada pelos gregos, só será combatida fortemente por alguns autores menos conhecidos do medievo, como o geógrafo bizantino do século XI, Cosme Indicopleutes, o qual promoveria uma defesa da Terra com a forma do tabernáculo israelita (Figura 2).

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Figura 1: Mapa O-T, de La fleur des histoires, 1459-1463, Paris, Bibliothèque Nationale de France | Fonte: Eco (2013, p. 10).
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Figura 2: Reconstrução do cosmos em forma de tabernáculo, Topografia Cristiana, de Cosme Indicopleustes | Fonte: Eco (2013, p. 14).

Em sua obra Topografia Cristiana, Indicopleutes defenderia que o tabernáculo feito por Moisés durante o exílio no deserto do Sinai seria a imagem do próprio cosmos, como representação da forma terrestre. Eco, no entanto, argumenta que é o pensamento laico oitocentista que promove a associação da Terra plana ao pensamento cristão, em reação à oposição destes às teorias evolucionistas, afinal, a própria obra de Indicopleutes não teve a repercussão que se parece atribuir a ela a posteriori, e o argumento das representações dos mapas é, no mínimo, incompleto para defender uma crença na Terra Plana.

O argumento que Eco constrói é de que nós, modernos e contemporâneos, parecemos mais afeitos a acreditar em lendas do que os próprios medievais. Ele qualifica de lenda, por exemplo, nossa crença atual de que naquela época a Terra plana era amplamente aceita. Para ele, lemos os mapas de forma equivocada (afinal, são planos por que estão em superfície plana), ignorando seu caráter de representação, e deixamos de lado outras tantas evidências de que o entendimento da terra esférica era amplamente aceito e, inclusive, representado nos próprios mapas e também na literatura.

Cita, por exemplo, a representação do inferno de Dante, o qual atravessa o funil infernal e sai do outro lado, aos pés da montanha do purgatório, avistando estrelas desconhecidas (Figura 3), sem cair ou topar com o casco de uma tartaruga. Menciona os mapas romanos que eram lineares, mostrando as conexões das cidades por suas estradas, sem dar atenção à forma do relevo ou da Europa (à maneira dos mapas contemporâneos de sistemas de metrôs e trens). Eco tenciona dissociar as escolhas do mapeador na confecção de seu mapa da forma de representação escolhida, a qual tem relação direta com a informação a ser apresentada e não necessariamente com a forma da Terra.

O mais forte exemplo, no entanto, é o dos antípodas. Eco colhe diferentes relatos desde a antiguidade de que havia, no sul, do outro lado do mundo (esférico) pessoas como os europeus (os habitantes do chamado mundo conhecido), mas de cabeça para baixo, os quais possuíam valores e posicionamentos invertidos em relação às pessoas do norte (Figura 4). Há uma longa tradição de discussão sobre sua natureza e existência (ou não), o que colocava em cheque crenças basilares do mundo medieval europeu. Se, de um lado, a esfericidade da Terra aparecia como pano de fundo não questionado, de outro, conceber que havia pessoas que provavelmente não descendiam de Adão ou não estavam ao alcance da redenção universal era muito mais difícil de acomodar.

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Figura 3: Sandro Botticelli, A voragem infernal, ilustração para A divina comédia, c. 1480, Cidade do Vaticano, Biblioteca Apostólica Vaticana | Fonte: Eco (2013, p. 13).

Em vista disso, não é sem surpresa que os antípodas passam também a representar a terra dos monstros, do inabitado, daquilo que está em oposição à virtude e à possiblidade da redenção. O sul dos antípodas é uma terra onde os rios correm ao contrário, onde vive-se de cabeça para baixo e onde tudo está de ponta-cabeça. São vistos como contra a natureza, e por isso a ideia de uma Terra plana é, também, a negação desta possibilidade da existência de um Outro ao sul, de outro que, não sendo eu, não pode existir.

A discussão de Eco me faz pensar nas implicações dos mapas para nossa imaginação e compreensão de mundo. Debater a forma da Terra, como voltamos a fazer nos últimos anos, nos lança novamente na zona fronteiriça entre representação e apresentação, trazendo o poder da imaginação, seja para a ciência, seja para a arte. Mas traz um outro componente, que sempre esteve ligado à história do pensamento científico: o empirismo.

Este filho rechaçado ao longo do século XX como estando ligado a um entendimento ingênuo, obstáculo ao conhecimento científico (como na epistemologia bachelardiana), está na base de muitos argumentos em prol da forma terrestre, esférica ou plana. Seja quando os antigos observavam a sombra ou o horizonte, vendo ali sua esfericidade, seja quando os atuais terraplanistas tentam, em vão, observar a curvatura da terra em um amplo horizonte, os mapas aparecem como meio de justificação, de uma prova auto-evidente.

No entanto, ambos ignoram este caráter fronteiriço dos mapas que, no fundo, lança-os em seu mais significativo domínio: a imaginação. Não é o objetivismo científico, nem a descrição empírica, nem a apresentação de visão de mundo que definem com maior precisão os mapas, mas seu caráter imaginativo, ou seja, a mobilização de imagens, sentidos, pensamentos, silêncios e imaginários. Os mapas, portanto, são muito mais dinâmicos e móveis do que sua aparência estática sugere. Os mapas são dispositivos que disparam a imaginação em vez de limitá-la em sua precisão objetiva.

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Figura 4: Agostinho discute a existência dos antípodas em De Civitae Dei. Ms. Fr. 8 f. 163v, Nantes, Bibliothèque Municipale. | Fonte: Eco (2013, p. 32).

Neste sentido, tanto os antípodas quanto a Terra plana deixam nossa imaginação em polvorosa: quem está de cabeça para baixo? Qual o lado da redenção e qual o lado dos monstros? Quem vive de um lado e de outro? E, mais importante, quem constrói estes lados e seus valores? Um dos dramas da modernidade, aprofundado na sociedade contemporânea, é a descoberta de que os antípodas não estão do outro lado do mundo, mas estão aqui, “infiltrados” dentro de nossos próprios muros, o que torna muito mais urgente identificá-los e separá-los.

Ao final, parece que a advertência da Santo Agostinho pode ser útil para nós: ao debater-se sobre a forma da Terra como tabernáculo ou como esfera, chegou à seguinte conclusão: como isso não seria importante para salvar a alma, tratava-se de uma questão que poderia ser ignorada.

Alguns opositores das novas lendas parecem ignorar este conselho sábio, debatendo-se em questões subjacentes quando a concepção mais nociva que a história da cartografia talvez nos tenha legado seja a crença em antípodas antinaturais que não merecem redenção, e não a questão, certamente secundária, sobre a esfericidade ou não da forma terrestre.

 

 

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