A exposição chamou-se “O Sertão: da Caatinga, dos Santos, dos Beatos e dos Cabras da Peste” e ocupou o imenso térreo do Museu Afro Brasil. Memorável, era um encontro intenso com extratos significativos dos interiores da região nordestina, atualizados nas narrativas, nas imagens, nos objetos e nas obras de arte de inspiração sertaneja. Um encontro com o chamado Brasil profundo que convidava o visitante a olhar de maneira multifacetada para o universo da visualidade de inspiração rural e das cidades marcadas por feiras e devoção religiosa. Isso em São Paulo, lugar marcado pela presença nordestina em todos os seus poros e que nem sempre reconhece essa herança em sua formação e funcionamento.
Essa é apenas uma das passagens de várias experiências que se pode ter em exposições emancipadoras que foram assinadas pelo curador e artista visual Emanoel Araújo (1940-2022), que faleceu esta semana. Este texto é uma homenagem a sua contundente figura e a sua obra. A passagem que abre o texto dá conta de um processo de revelação que muitos de seus projetos curatoriais provocavam. Eles tinham a dimensão de um portal das verdades escondidas sobre nós mesmos, brasileiros, que conhecem tão pouco de sua história e da força amefricanista de suas tradições. E ia além. Ele evidenciava a força da criação em objetos cotidianos espalhados neste grande território brasileiro, informando sobre tecnologias e gambiarras, e suas potências. Tratava-se de um pensamento em ação, inquieto, realizado durante décadas, em várias instituições, o que resultou em um processo contínuo de pesquisa, descoberta e investimento crítico e reflexivo em extratos da arte e da cultura não-hegemônicos, do Brasil e que incluía extratos da África.
Sua trajetória artística e intelectual incluiu a terra natal, Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, onde nasceu e daí colheu matérias-primas, fazeres manuais e extratos vibrantes da cultura popular que iriam se desdobrar nos vários momentos de seu percurso criativo. Viveu em Salvador, na efervescência cultural, principalmente, dos anos 1960, período marcado pelo florescer artístico-intelectual que incluía o cinema, a música, a arquitetura, o teatro, as artes visuais. Desse momento, a passagem e a vivência com Lina Bo Bardi são fundamentais, de onde se recupera, por exemplo, sua participação na emblemática exposição “A mão do povo brasileiro”. Desse momento em diante, Emanoel Araújo iria viajar, expor e praticar intensamente sua arte atualizada em várias linguagens, sendo a escultura um lugar privilegiado de manifestação de sua poética. Até sua chegada a São Paulo, nos anos 1970, podemos recortar a participação na grande exposição panafricanista ocorrida na Nigéria, o FESTAC’77, o Segundo Festival Mundial de Artes e Cultura Negra e Africana, realizado em Lagos, em 1977. Ali se reafirmaria o refinamento de um olhar afro-brasileiro, com vivência e saberes baianos, aliados a essa dimensão transoceânica, que enxergava a África em perspectiva, desde sua ancestralidade à sua dimensão contemporânea, como os grandes nomes do pensamento diaspórico.
Emanoel Araújo fez a passagem e deixou um patrimônio inestimável para várias gerações. Tem uma obra artística reconhecida e que habita museus em todo o mundo. E de seu percurso, a exposição “A Mão Afro-Brasileira”, realizada em 1988, no Museu de Arte Moderna (MAM/SP), é um trabalho monumental, que deixou fincado na história da arte brasileira, para não restar dúvidas sobre a presença, influência e força de artistas negros que compõem esse repertório na pintura, escultura, arquitetura, desenho, fotografia etc. O trabalho na Pinacoteca do Estado de São Paulo posiciona-o como um gestor inovador que intervém no espaço do museu e olha, de maneira complexa, seus acervos, exposições e a cidade.
Não qualquer cidade. Foi na capital paulista que ele deixou sua marca maior, inaugurando o e tornando-se o diretor-curador do Museu Afro Brasil, projeto síntese de sua experiência aglutinadora e multicultural, que posiciona afro-brasileiros em uma rede caleidoscópica de criação. Não há aula de história que caiba nessa experiência, ali brotam aulas, num percurso transdisciplinar que remodela as concepções escolares. Indumentárias convivem com fotografias e seguem para instalações, em um fluxo semiótico que conjuga anônimos, mestres e artistas de várias temporalidades.
Visitar esse lugar é um gesto polivalente de remodelação do olhar e da compreensão sobre o que há de mais significativo na cultura brasileira, em conexão com o mundo. Dali, empoderaram-se artistas e pesquisadores que estão disseminando e reelaborando saberes que emanam desses corredores. É de Araújo, em conexão com pensadores-chave tais como Machado de Assis, Lima Barreto, Abdias Nascimento, Carolina de Jesus, Lélia Gonzalez, entre outros, que a ideia, hoje em voga, de decolonialidade foi previamente elaborada e traduzida em várias frentes. Isso para, resumidamente, termos uma ideia da força de seu legado. Emanoel Araújo, Presente!
Gilberto Alexandre Sobrinho. Professor Livre-docente no Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação/Instituto de Artes e Assessor Docente junto à Diretoria Executiva de Direitos Humanos – DEDH
Esse texto é um artigo de opinião e não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.