Em maio de 2017 comemorou-se o cinquentenário do lançamento de Terra em Transe, filme de Glauber Rocha que influenciou não só o Cinema Novo (Cacá Diegues, Leon Hirszman, Paulo César Saraceni, Arnaldo Jabor, Joaquim Pedro de Andrade), mas também um conjunto amplo de artistas como Hélio Oiticica, José Celso Martinez, Caetano Veloso e vários outros. É considerado um dos marcos inaugurais do movimento que, nas artes brasileiras, chamamos de “tropicalismo”. Ainda respirando os últimos ares da surpresa com o golpe militar de 1964, foi realizado no segundo semestre de 1966 e lançou sua influência em direção ao final da década e aos anos de chumbo que se seguiram à proclamação do AI 5, em dezembro de 1968.
Terra em transe pode ser visto como obra síntese dos dilemas da geração cinemanovista. É seu grande instante, seu momento operístico, quando o fôlego tem densidade para atingir o tom de exaltação dramática no contato com a grande História e nela penetrar com desenvoltura e naturalidade. Oscilações existenciais, que antes engatinhavam, adquirem densidade para um salto qualitativo e conseguem a figuração em tragédia. Paulo Martins, o personagem protagonista interpretado por Jardel Filho, é a cristalização direta desse salto, personagem raro em nossa filmografia pela facilidade com que cresce e ganha densidade para pular, sem artificialidade, do corriqueiro cotidiano para o instante extremo da grande História – “o cosmos sangrento”, como ele mesmo define. Depois de Terra em Transe, outros tentarão imitar o trânsito, mas poucos farão o caminho com sucesso. Nos anos seguintes, o cinema brasileiro parece ser inundado de pequenos “Paulo Martins” se debatendo para sair da vida e entrar na história, mas o pulo é frágil e fica aparente a artificialidade do movimento. A questão do “transe”, que surge no título e na abertura do filme com a trilha de atabaques e cânticos de uma cerimônia de candomblé, é chave para a compreensão do filme.
Transe é a força de intensidade pulsional, espécie de energia solta vinda de-dentro, que vibra em sua irracionalidade liberada. É interior, potência em energia que aflora sem entendimento. No filme se manifesta apesar de si para desconfiança da ação racional, seja política, seja prática. A representação do “transe” desemboca, com duas faces, na representação da cultura popular e nos devaneios exaltados do líder populista que sintetiza o discurso da direita religiosa nacionalista (o personagem Porfírio Diaz/Paulo Autran, inspirado livremente numa figura barroca, mista de Carlos Lacerda, Jânio Quadros e passado colonial). Segundo Glauber, o fascismo tupiniquim não surge com as linhas limpas do modernismo europeu, mas com as tortuosas do passadismo barroco em sua mistura. Por este mundo em transe, oscila o protagonista Paulo Martins, jornalista, intelectual de classe média, que erra em Eldorado (o país imaginário do filme), entre forças políticas diversas que o atraem e repelem. São elas que farão com que rodopie em agonia tentando se liberar do fascínio da potência fascista irracional de Diaz, mas também, contraditoriamente, das forças populares que negam o transe e querem impor o domínio do dever pela cobertura da consciência de culpa, ou má-consciência. Paulo Martins alternativamente sacode e aceita as cobertas da responsabilidade e do “engajamento” (como diria certa filosofia popular na época), para ser livre e adentrar sem peias o mundo do transe que se oferece diante de si. É movimento que Glauber Rocha irá radicalizar progressivamente em direção à afirmação do transe e sua irracionalidade na cultura popular, como encontramos na produção seguinte de 1968 e 1969 (Câncer e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro), e que se agudiza definitivamente na produção filmográfica de exílio (e no documento manifesto Eztetyka do sonho/1971), preparando a eclosão dessa espécie de obra testamento que é Idade da Terra/1980. Mas, em Terra em Transe, as potências da pulsão livre criadora ainda estão encadeadas nos polos opostos do imã e seu protagonista gira em exasperação para se livrar das cadeias que lhe obrigam.
Paulo Martins tem um grande tormento, uma grande culpa que carrega nas costas e atravessa o filme como móvel: ele, no fundo, despreza o povo e sua passividade, sua servilidade, “seu sangue sem vigor”, como diz a determina altura. É um desprezo que surge em sequência do início quando conflita o líder camponês recriminando-o de ser “tão covarde, tão servil” e define o “outro-popular” como “gente fraca sempre, gente fraca e com medo”. Segue a mesma linha depois em outra sequência central na obra quando, oscilando sempre em dúvidas, não tem sucesso em fazer vibrar sua empatia com a figura popular. O transe que emana do povo na sequência intitulada “Encontro de um líder popular”, forma uma espécie de marcha carnavalesca, com políticos e passistas populares evoluindo juntos num ritmo musical envolvente. Nele, Paulo é cercado por uma miríade de vozes simultâneas que transbordam em enunciados relâmpagos contraditórios. Sara (Glauce Rocha), a militante engajada representando a esquerda comunista tradicional, quer se contrapor ao atormentado protagonista em suas dúvidas, insistindo que “a culpa não é do povo, a culpa não é do povo” (frase que depois se repete em outros filmes do Cinema Novo, sintetizando um sentimento de época). Paulo Martins vê o transe do povo pelo lado negativo que aliena a práxis na passividade. Emite então frases cortantes de ironia com expressões de angústia. Sara se dirige em desespero ao protagonista imerso em mal-estar. Para fisgá-lo das dúvidas e da náusea, insiste: “por que, por que você mergulha nessa desordem?”, afirma ela nesse momento-chave do filme.
Sara quer escapar da visão do povo como fraco e alienado no transe e provar que existe algo diferente para Paulo Martins. Ela retira então um líder sindical do meio da confusão, Jerônimo (José Marinho), pedindo-lhe com insistência para que “fale”. O militante comunista, companheiro de Sara, abre espaço para o pronunciamento de Jerônimo metralhando os ares. Nesse ponto, o transe popular e a balbúrdia cessam. O silêncio se faz para escutar Jerônimo. A liderança popular autêntica, o “outro-povo”, o personagem popular, começa seu discurso: “[estou] na luta das classes [...] está tudo errado, eu não sei mesmo o que fazer, o melhor é aguardar a ordem do presidente”. A situação é constrangedora, a imagem do povo submisso e covarde, da qual Sara quis escapar ao dar a palavra a Jerônimo, se evidencia. Os demônios interiores de Paulo Martins novamente afloram. Não suportando a exibição da submissão, ele avança em direção a Jerônimo e lhe tapa a boca com a mão. Olhando fixo para a câmera, dirige-se diretamente ao espectador e fura o universo diegético da ficção – numa postura dramática bretchiana que se repete em outros pontos do filme, quando se explica a “conjuntura”. Pronuncia então a frase-chave do filme que causou muita repercussão na época: “vocês estão vendo o que é o povo, um imbecil, um analfabeto, um despolitizado – já pensaram Jerônimo no poder?”. Sua voz é pausada e grave, a última interrogação é pronunciada de modo gutural.
Imediatamente o transe, com o batuque em alto som e o povo sambando, volta à toda e cerca os personagens. Outra figura popular desponta, um autêntico “homem do povo” (interpretado por Flávio Migliaccio) consegue se afirmar na confusão e manifesta querer falar. Destapa a boca do líder sindical, tirando a mão de Paulo Martins, e pede “licença dos doutores”. Diz então, com rosto tímido, que “seu Jerônimo faz a política da gente, mas não é o povo, o povo sou eu que tenho sete filhos e não tenho onde morar”. Todos se calam, então, para ouvir esse segundo “homem do povo”, mas assim que ele termina a reação é imediata. É acusado de “extremista” aos berros pelos militantes comunistas. O “homem do povo” simples, que não é sindicalizado, mas tem carne, voz e corpo de povo, acaba morto logo em seguida, com um revólver figurado em sua boca e os olhos fechados. Paulo Martins, se afunda noutro de seus “mergulhos na desordem” existencial, olhando exasperado para os lados. Questiona-se sobre o “transe dos místicos” e é cercado pelos gritos agressivos dos militantes, próximos de Sara, que querem mais atitude de sua parte. Aos gritos de “sua irresponsabilidade política” e “seu anarquismo”, ou ainda “suas teorias reacionárias”, lhe envolvem, figurando no filme o discurso dos militantes políticos da esquerda engajada. Resumem o tipo de cobrança racional que dilacera a consciência do protagonista de Terra em Transe entre náusea, indiferença e culpa – síntese de um contexto ideológico no qual mergulhou toda uma geração na época.
A morte do “homem do povo”/Flávio Migliaccio pode novamente ser debitada a Paulo Martins. É a segunda morte de um homem do povo que cai em sua conta (ao lado do camponês que é assassinado no início), em sua culpa. É lastro pesado e que faz ancorar o motor da má consciência. Se a culpa não é do povo, de quem é? Paulo possui em sua personalidade, como defesa, uma espécie de recuo fenomenológico que aciona quando olha o mundo e consegue se estabelecer sobre a balbúrdia, que fica distante. É maneira que congela suas sensações e afetos, um modo particular de lidar com o transe que em seguida, na obra glauberiana, irá se aproximar bem mais para explodir em frangalhos. Em Terra em Transe, Paulo não consegue – nem realmente deseja – ultrapassar a distância que o mantém avesso ao universo cultural do outro-povo e seu modo de ser. Não o compreende, não vê desafio em querer compreendê-lo, nem se permite um retorno egóico para ter satisfação no entendimento da alteridade povo. Também não experimenta prazer em transformar o entendimento em catarse, pela via da compaixão. Paulo certamente não é personagem cristão e o flagelo pela culpa não perdura ou lhe provoca. Mas também a experiência da possessão, do êxtase pulsional livre nas religiões populares, fica distante no modo da subjetividade que chamei de recuo. Quer exercer sua potência, sua vontade de ação, mas a passividade do outro “popular’ lhe contrai e retarda. Ao mesmo tempo, é por demais auto-centrado para fazer valer a posição iluminista da didática da reificação, ou a dialética da práxis esclarecida. Antevê a falácia dos dilemas mais simples nas demandas da práxis política, conforme cobrada pelos militantes (aqueles que o acusam de “irresponsabilidade política” e gritam “seu anarquismo”). São dilemas que repercutem de modo progressivamente distante em sua alma. No plano final do filme ainda aparecerá de armas em punho, após tentar se engajar, se esvaecendo para a morte com som de música épica ao longe. Mas é a memória que o leva até lá, não o encadeamento lógico ou consequente da ação engajada.
As dúvidas existencialistas de Paulo Martins impedem, portanto, o desabrochar da ação que não consegue se conflagrar no modo que fulguração da práxis esclarecida exige. E isso causou, e causa, espanto e polêmica na recepção do filme. A fragmentação caleidoscópica da representação (“estilhaços sobre Copacabana”) – e a liberação da consciência que se distancia da analítica causal da ação política responsável – fazem com que Terra em Transe, corretamente, seja encarado como obra inspiradora do movimento tropicalista. Entre a bandeira negra fascista, os valores da família e o barroquismo tupiniquim de Porfírio Diaz/Autran, o populismo de esquerda de Vieira/José Lewgoy, o novo império da mídia de Fuentes/Paulo Gracindo, respira o Brasil de 1966/1967, numa sintonia não muito distante com dias que vivemos hoje. Nisto tudo, Paulo Martins era o poeta, a sensibilidade com a subjetividade aflorada na pele pelas sensações, que errava, em sua capacidade meio casual de liderança, no mundo da práxis e das ações objetivadas em termos de poder. Um pouco como a figura de seu criador, Glauber Rocha, que entre Golbery, Jango, Darci Ribeiro e outros, oscilava rodopiando com cabeça de poeta e artista. Glauber faz, na bela cena que tem a câmera de Dib Lufti envolvendo o casal Sara/Paulo, Sara dizer para Paulo Martins, sussurrando em seu ouvido, “você não entende, um homem não pode se dividir assim”, “a poesia e a política são demais para um homem só”, realçando a impossibilidade, conforme queria Mario Faustino, do “nobre pacto”, “entre o cosmo sangrento e a alma pura” (verso que é grafado manuscrito sobre cena inicial que detona o flash back que narra o filme). A fala de Sara marcou época e comoveu a geração “engajada”, dilacerada entre a “curtição” poética da contra-cultura e o lastro, pesado de carregar, da práxis política. Lastro e leveza que, em sua mortal imponência original, trazem para os dias de hoje a sensação de farsa com aquilo que, pela singularidade, não se repete na história.