Este é terceiro artigo da série com alguns resultados de um estudo sobre planejamento urbano de hubs de inovação. No primeiro texto, apontamos que os novos parques de tecnologia e inovação têm se tornado cada vez mais urbanos, enquanto os parques brasileiros seguem um modelo urbanístico que não potencializa a interação adequada. No segundo artigo, analisamos o histórico da legislação incidente sobre o Polo de Alta Tecnologia de Campinas para compreender se seria possível implementar nessa área um polo tecnológico de 3a. geração. Neste artigo, será discutida a inserção do HIDS no modelo de planejamento e gestão adotado pela administração municipal de Campinas.
A iniciativa de se criar um polo tecnológico em uma área imbrincada por um conjunto de importantes instituições de alta tecnologia, incluindo o CPQD, o CNPEM, a Unicamp e a PUC-Campinas, demanda o desenvolvimento de um projeto urbanístico que considere minimamente as articulações necessárias entre essas instituições, questão que deveria ser, de antemão, apontada nos instrumentos de planejamento do município. Mas, considerando tratar-se de uma estratégia que reúne interesses diversos, a concepção de um novo polo de tecnologia vem mobilizando outros agentes, além da administração municipal, em especial, a Unicamp, que, ao adquirir uma fazenda de 140 hectares no interior do perímetro, vem protagonizando um movimento no sentido de pensar e conceber um novo projeto que alcance os desafios impostos pelas demandas tecnológicas do futuro. Assim é que o HIDS vem ampliando, paulatinamente, o conjunto de atores interessados em desenvolver esse polo, nas condições mais avançadas do ponto de vista da inovação tecnológica e da sustentabilidade ambiental, princípios que vêm sendo postulados sob uma perspectiva bottom-up, a partir das mobilizações em curso. Tal mobilização põe em xeque os modelos tradicionais de planejamento e gestão que, tradicionalmente, são utilizados pelas administrações públicas municipais.
Um dos principais desafios impostos pelo projeto do HIDS é a sua inserção no modelo de planejamento e gestão adotado pela administração municipal, responsável pelo ordenamento do território do município de Campinas. Muito embora a definição do Polo II CIATEC tenha sua origem ainda na década de 1980, os dois últimos planos diretores (2006 e 2018) não chegaram a estabelecer diretrizes mais específicas para a sua instalação na área onde se insere o HIDS. Cabe notar que, em ambos os planos, as estratégias relacionadas com os modelos de negócios esperados para esse setor da cidade não foram devidamente tratadas, deixando obscura a relação intrínseca entre estratégias de gestão e diretrizes urbanísticas associadas. A Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo aprovada em 2018 (Lei Complementar 207/2018), inseriu a área do HIDS em uma Zona de Atividade Econômica (ZAE) do tipo A, que permite apenas usos não residenciais de baixa, média e alta incomodidade, com coeficientes de aproveitamento (CA) mínimo de 1 e máximo de 2 e lote mínimo de 500 m2, sem que seja possível vislumbrar um cenário de ocupação para todo o complexo. Tal lacuna evidencia a necessidade de se pensar o instrumento urbanístico mais adequado para o local, considerando tratar-se de uma área que abarca um mosaico de propriedades públicas e privadas de várias naturezas, além de um conjunto de instituições tecnológicas já instaladas, e com uma significativa parcela de áreas de preservação ambiental, incluindo nascentes, córregos, corredores ecológicos e fragmentos de mata nativa.
Os instrumentos tradicionais de gestão utilizados pelos municípios - os planos diretores, as leis de zoneamento e os códigos de edificações - muito utilizados durante todo o século XX nas cidades brasileiras, consagraram um modelo de gestão baseado eminentemente no controle do uso e ocupação do solo, considerando que a produção urbana se dá a partir das iniciativas individuais de proprietários, públicos ou privados, que devem ser enquadrados em normas que lhes permitam utilizar suas propriedades sob restrições da lei. A adoção do instrumento do zoneamento no município de São Paulo, em 1972, por exemplo, repercutiu em um objetivo contrário ao interesse público, já que elevou as condições para a proteção da propriedade privada no tocante à sua relação com a cidade. A fragmentação advinda desta lei nunca refletiu uma atitude de coesão urbana e, nem tampouco, foi suficiente para determinar uma conciliação entre forma e paisagem com vistas a uma qualificação do ambiente construído, ressaltando o que se viu ao longo do século em termos de segregação sócio espacial e valorização dos imóveis segundo os padrões de ocupação estabelecidos pelos coeficientes de aproveitamento.
Pressões econômicas parecem dirigir, muitas vezes, as ações sobre os territórios e as formas de produção urbana. Estudos que tratam do zoneamento como instrumento de controle urbano nos Estados Unidos já demostraram como nas cidades americanas o zoneamento esteve vinculado aos interesses das incorporações imobiliárias, sendo usado para atingir determinados objetivos de mercado. Além disso, autores que tratam do assunto reforçam a importância de que o “zoneamento” como instrumento deve avançar para um modelo menos excludente do ponto de vista da segregação por zonas e mais inclusivo quanto à diversidade de tipologias e à mescla de atividades, questão que, por muito tempo, foi negligenciada pela monofuncionalidade presente nos códigos de zoneamento. Algumas propostas criativas enfatizam a possibilidade de dar às leis de regulação urbana maior concretude a partir da representação gráfica como alternativa ao texto, como é feito no form-based code.
Não há dúvida de que o instrumento do zoneamento é importante e tem servido como um mecanismo de controle urbano sob prerrogativa do poder público no intuito de buscar um equilíbrio das externalidades produzidas pelos mais diversos interesses da sociedade. Mas, ao mesmo tempo, esse instrumento pode não ser suficiente quando há tantas especificidades envolvidas na produção do espaço, tornando-se necessário induzir um desenho que seja mais adequado aos objetivos de desenvolvimento preconizado, conciliando a forma à paisagem, a partir de uma base projetiva preliminar. O modelo de empreendedorismo brasileiro, bastante adaptado às liberalidades de ocupar o território apenas a partir de restrições legais (e até mesmo à margem delas) não é capaz de trazer a qualidade espacial necessária aos espaços urbanos considerados especiais e, seguramente, a insistência em deixar que esta ocupação se dê a partir apenas de parâmetros descritos na lei dificilmente trará coesão para o cenário final que se espera obter.
A compreensão acerca da qualidade espacial e das especificidades envolvidas na produção do espaço urbano põe em xeque dispositivos legais rígidos tal qual o zoneamento como solução para determinadas situações que exigem uma outra postura dos agentes envolvidos. Esta compreensão trouxe mudanças significativas no marco legal brasileiro já a partir do final da década de 1980, com o reconhecimento das especificidades do território. A inserção dos assentamentos precários como territórios legais é um claro exemplo deste reconhecimento, tomando-os como territórios exclusivos com a demanda de projetos específicos, sem a definição, a priori, como em geral se estabelece, de parâmetros a serem seguidos, mas o estabelecimento destes após o desenvolvimento de um projeto especial. Este tem sido o procedimento para várias porções do território que dependem de uma estratégia específica. Em casos em que há um conjunto de atores reunidos em uma determinada área estratégica para o desenvolvimento urbano, cabe também salientar que a intervenção pode ocorrer a partir do compartilhamento de interesses, questão que também foi abarcada pelo marco legal brasileiro através de vários instrumentos urbanísticos, muitos deles já utilizados em experiências locais, como é o caso das operações urbanas. Ao assumir que algumas áreas estratégicas demandam intervenções acordadas, associadas e integradas, tais instrumentos, se bem aplicados, orientam as intervenções de forma a atingir tais objetivos de integração.
No próximo artigo, serão analisados os instrumentos urbanísticos utilizados em duas experiências internacionais de projetos urbanos em áreas que guardam semelhança com o HIDS, bem como os instrumentos análogos já existentes no Brasil.
Por Profa. Dra. Maria Gabriela Caffarena Celani (FEC Unicamp), Prof. Dr. Carlos Eduardo Verzola Vaz (UFSC) e Prof. Dr. Sidney Piochi Bernardini (FEC Unicamp)