As eleições do México, em 1 de julho de 2018, devem ser as mais importantes para a América Latina quanto a seu impacto e significados políticos para a reconfiguração geopolítica na região. A se confirmar a vitória de Andrés Manuel López Obrador (AMLO), candidato de centro-esquerda pelo Movimiento de Regeneración Nacional (MORENA), o México terá feito uma escolha histórica e na contramão da hegemonia de candidatos de direita, como a recente eleição na Colômbia, Chile e Peru. O significado eleitoral tem múltiplos aspectos a serem observados e, consequentemente, analisados no contexto das políticas internas e externas.
López Obrador disputa a sua terceira eleição presidencial. Nas duas eleições anteriores (2006 e 2012), AMLO contestou resultados. Para seus seguidores, AMLO foi o vitorioso e o viciado processo eleitoral mexicano, com fraudes e manipulações, fez emergir governos sem legitimidade nos dois últimos mandatos. As pesquisas eleitorais deste ano indicam ampla maioria para o candidato da frente esquerdista “Juntos faremos história”.
A possível vitória de López Obrador pode significar o efetivo enfraquecimento do PRI, principal máquina partidária do México desde a Revolução no início do século XX, que governou o país de forma ininterrupta entre 1928, ainda com outra nomenclatura, até o ano 2000. A direita, dos ex-presidentes Vicente Fox (2000-2006) e Felipe Calderón (2006-2012), do PAN, não se tornou o caminho inevitável dos votos anti-PRI, pois ambos representam a pauta do livre mercado e de grupos conservadores.
A possibilidade de um governo de centro-esquerda reúne expectativas de enfrentar graves problemas históricos comuns aos demais países latino-americanos. A enorme desigualdade social, a insuficiência dos serviços públicos como educação, saúde e transporte, a explosão da violência, as constantes crises econômicas que se refletem em indicadores como o desemprego e baixo poder aquisitivo da população, além das agendas de integração econômica em um contexto de anunciada guerra comercial capitaneada pelos Estados Unidos, são alguns dos desafios do próximo governante.
Não são poucas as análises travestidas de torcida que anunciam uma catástrofe no governo de López Obrador. Mesmo sem grandes detalhamentos do programa de governo durante a campanha eleitoral, suas promessas seguem um receituário que prevê protagonismo do poder público, atendimento de demandas de movimentos sociais e o entendimento com as forças de mercado. Em pleno processo eleitoral, os adversários de AMLO tentaram associá-lo ao governo de Nicolás Maduro e o receituário de um modelo venezuelano para o México. O fato, como disse o próprio candidato, é que México não é Venezuela, nem AMLO é Maduro.
Questões internas e a “regeneração” mexicana
A larga vantagem de López Obrador é fruto das campanhas eleitorais anteriores, de sua experiência como chefe de governo do Distrito Federal, com altas taxas de aprovação e, não menos importante, com a promessa de regeneração. O termo é bastante ambíguo, mas explicita a crise das principais organizações partidárias e a aposta dos mexicanos em um recomeço.
O México protagonizou a primeira grande revolução do século XX. A revolução pôs fim ao regime personalista de Porfírio Díaz, que governou o país entre 1876-1911, e estabeleceu pautas progressistas, como mandatos definidos e eleições periódicas, o protagonismo de camponeses e indígenas que lutavam por uma ampla pauta social, da reforma agrária ao reconhecimento das propriedades comunais. A consigna “Terra y Libertad” resume o espírito de um processo revolucionário longo, controverso e que se arraigou na sociedade mexicana. O nacionalismo que emergiu após a Revolução e os modos como a vida política e social se sucedeu estiveram em diálogo aberto com os legados revolucionários.
Em 1968, quando jovens foram massacrados por protestarem contra o governo do PRI, às vésperas dos Jogos Olímpicos, a população, considerando críticas anteriores, consolidou uma reavaliação sobre a Revolução. As guerrilhas urbanas e rurais que se seguiram nas décadas seguintes, assim como movimentos mais recentes, como o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), a partir de 1994, recuperaram aspectos revolucionários como a contínua mobilização da população contra os acordos de livre comércio com os EUA e a defesa dos interesses dos camponeses. Outros grupos, como os professores em Oaxaca, desde 2006, e os 43 estudantes de Ayotzinapa, desaparecidos em 2014, indicam um quadro de exasperação com o funcionamento do Estado mexicano. O caso de Ayotzinapa é uma ferida aberta que manchou o governo e a velha política que assassina os que se insurgem contra ela.
Nesse sentido, a “regeneração” é um discurso contra o autoritarismo, a impunidade, a agenda dos tecnocratas da educação e da economia e contra a corrupção e subserviência do Estado mexicano aos interesses de grupos oligárquicos nacionais e suas vinculações internacionais. AMLO terá que enfrentar o narcotráfico e a explosão da violência que, inclusive, marcou a campanha eleitoral com mais de 40 políticos assassinados.
A habilidade da negociação será posta à prova nos momentos iniciais do possível governo do MORENA. A provável vitória de um candidato de centro-esquerda, com 64 anos de idade, demonstra que o discurso da modernização neoliberal, encarnada na gestão de Fox, o ex-executivo da Coca-Cola, ou a aposta de rejuvenescimento do PRI, com Peña Nieto, fracassaram. O descrédito das lideranças e partidos mais tradicionais está conduzindo a centro-esquerda ao poder no México, realizando uma guinada política dentro de um modelo conhecido, sem recorrer a outsiders.
A força do partido, criado recentemente, está na própria figura de Andrés Manuel López Obrador. Opositores e analistas criticam a possibilidade de um governo com características personalistas, o que não é usual no México pós-1911. A postura do candidato nos debates eleitorais e diante de um partido novo e pequeno fez acender a preocupação com a adoção de pautas que se aproximariam do populismo clássico, pautado no carisma e na força da liderança presidencial. Os adeptos de AMLO argumentam que a ampla base de movimentos sociais, grupos religiosos, intelectuais e novas lideranças políticas funcionarão como salvaguarda contra esse risco personalista.
O que muda para a América Latina
A aproximação com os demais países da América Latina deve ser intensificada. O México, após o acordo do NAFTA, centrou sua política externa nas boas relações com os Estados Unidos e perdeu o protagonismo com os países ao sul. O México viu aumentar o protagonismo brasileiro na América do Sul e estender suas influências na região. Porém, desde 2014, a crise política brasileira fez com que o país não sustentasse a condição de liderança regional. O Brasil, num cenário de incertezas, mesmo com eleições, demorará para se recompor como liderança regional.
Outro protagonista regional, a Argentina, poderia ocupar o vácuo brasileiro, mas a crise econômica levou o governo liberal de Mauricio Macri ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e reacendeu o temor de uma crise como a de 2001. A Colômbia engatinha em seus acordos internos de paz e nunca exerceu uma liderança regional. O Chile não demonstrou força política para capitanear a região.
O ocaso de lideranças, à esquerda e à direita nos demais países, permitirá que AMLO, a depender de suas ações iniciais, se firme como a nova voz latino-americana no cenário internacional. A conjuntura favorece o candidato do MORENA pelas ações de Donald Trump e sua retórica anti-imigrantes e, em especial, contra os mexicanos. Trump, numa mensagem velada, chegou a dizer que na eleição mexicana havia candidatos “não tão bons”.
O sentimento anti-imperialista, o manuseio de uma identidade que se contraponha ao modelo estadunidense e a defesa da união latino-americana são pontos possíveis e, até certo ponto, bastante previsíveis. Os mexicanos possuem uma história de forte identidade cultural com os demais países latino-americanos. Em que pesem as discussões e complexos enfoques sobre a noção de mestiçagem, as referências de uma cultura remanescente de um passado indígena que se mantém presente são fundamentais para a construção de um discurso pautado na amizade, solidariedade e cooperação.
Em suma, se as pesquisas se confirmarem, AMLO não chegará ao Palácio Nacional por um único motivo. Trump, PRI, Peña Nieto, a violência, a corrupção e as questões sociais e econômicas são alguns de seus cabos eleitorais. A habilidade do candidato e o discurso da regeneração catapultam esperanças do país e do continente. Junto com as expectativas, os receios com pautas imprecisas que venham a frustrar a população ou fazer emergir uma presidência com características tradicionais e pouco inovadora nas práticas políticas.
Quiçá o México possa ficar livre dos maus presságios e seus grupos sociais possam ser protagonistas de novas pautas e contemplar as demandas de seu povo como prioridade.