Foto: Antoninho PerriJosé Alves de Freitas Neto - Professor livre-docente do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e coordenador executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest). Autor de “Bartolomé de Las Casas: a memória trágica, o amor cristão e a memória americana” (Annablume) e coautor de “A Escrita da Memória” (ICBS) e “História Geral e do Brasil” (Harbra). É autor de diversos artigos e capítulos sobre cultura e política na América Latina (séculos XIX e XX).

 

Fotografia e memórias: o que queremos registrar

Edição de imagem


Ilustra: luppa SilvaTodos os dias as pessoas acessam milhares de fotografias. Registrar um instante, uma paisagem ou algo muito corriqueiro é uma das características do tempo de comunicação em redes. Porém, as imagens captadas por celulares ou por antigas câmaras são reveladoras de suas épocas, das demandas sociais e culturais e do lugar social que as pessoas ocupam. A democratização do recurso imagético, via celulares, nos abre uma questão: o que queremos guardar? Ainda há um espaço para memória coletiva e social no ato de capturar um instante? A ideia poética de que a fotografia congelava, em um clique, um instante da vida que se eternizaria é posta em questão em tempos de toneladas de imagens armazenadas nos diferentes suportes digitais.

A fotografia transformou-se em algo imediatamente descartável, manipulável e, ao mesmo tempo, ainda mais presente. Quase não há pessoa que não tenha feito uma selfie ou sido registrada em alguma situação. A onipresença de retratos, eventos e situações criou um paradoxo que dialoga com as memórias: o que somos e o que testemunhamos em nossas experiências?

Foto: Scarpa
Fotógrafo na Isla de Santa Ines, localizada em área de proteção marinha no sul do Chile | Foto: Antonio Scarpinetti

Para os historiadores, a fotografia continua a ser um instrumento fundamental para explicar períodos e construir vínculos com o passado. E essas dimensões podem ser tanto pessoais como sociais. Alguém, por exemplo, sem o recurso da fotografia lembra de suas próprias feições na infância? Guardamos as marcas dos nossos rostos ou tão somente as memórias de episódios? A fotografia nos aproxima com o que fomos e com o que não conseguiríamos imaginar sem a produção de um retrato. Imaginar que teríamos dificuldades para dizer como éramos em tempos passados soa como uma falácia para as pessoas do século XXI habituadas a milhares de imagens expostas nas redes sociais.

Tantas fotografias ajudam a produzir memória ou são um traço descartável em tempos de nuvens?    


A fotografia e os novos hábitos

A invenção da fotografia, no século XIX, significou um enorme salto na democratização dos retratos. As pessoas comuns passaram a ter acesso à autorrepresentação, à posse e ao consumo de sua própria imagem. Os fotógrafos ganharam o mundo e encantavam as pessoas com a produção de registros instantâneos. Nas cidades menores, ainda nas décadas finais do século XX, eram frequentes as visitas de pessoas equipadas com suas câmeras e que vendiam seus serviços para pessoas que não pertenciam, necessariamente, às elites. A organização e confecção de um álbum, limitado espacialmente e economicamente, tornava-o um evento familiar e social. Possuir um álbum e manuseá-lo junto com familiares e amigos era um momento de rememoração e de produção de narrativas, nem sempre fidedignas, relacionadas ao passado e às experiências.

Foto: Reprodução
As fotografias familiares eram pouco comuns até meados do século XIX. As condições técnicas da fotografia tornavam o evento raro e, ao mesmo tempo, permitia que as famílias tivessem registros sobre o seu passado e tiveram a possibilidade de representar antepassados desaparecidos e a juventude dos ascendentes | Foto: wikipedia.org


A rápida transformação das técnicas fotográficas permitiu a proliferação das imagens. Na origem, demandava-se a existência de um estúdio, da pose congelada e dos recursos cênicos que compunham os retratos. As expressões faciais, quase sempre compenetradas no século XIX, indicavam sobriedade e até mesmo o desconforto de quem teve que se preparar e se produzir para um evento: o ser clicado e ficar registrado em um álbum familiar e privado. Atitude muito diferente da atualidade, em que os retratos demandam sorrisos marcantes. Entre o retrato circunspecto e a quase galhofa há um traço de artificialidade e, sobretudo, de como os vínculos com as vidas privada e pública se transformaram.

As fotografias, antes da proliferação das imagens pelo celular, remetiam ao sentimento de nostalgia. Tirar uma foto era um modo de produzir lembranças para o futuro e, quando acessadas, era a forma de se pensar os rostos, as pessoas e as histórias que começam a se apagar das memórias. Nos anos 1850, por exemplo, quando as famílias eram extensas e a expectativa de vida muito baixa, comparada aos indicadores atuais, como o filho menor de uma família poderia ter imagem ou referência visual de uma avó ou avô? Se o século XIX foi o século da História, a fotografia foi um suporte fundamental para compor narrativas e memórias.


A fotografia e seus usos sociais e políticos

A fotografia como parte do acervo cultural, histórico e social de uma sociedade é carregada de significações culturais, políticas e ideológicas. As condições históricas de sua produção expressam sentidos e motivações de múltiplos atores: a visão do próprio fotógrafo, a serviço de quem ele está apresentando a imagem e, sobretudo, dos modos como elas ganham dimensão de divulgação em jornais, livros e panfletos. As fotografias reproduzidas formam parte de um conjunto de questões que tentam traduzir uma época e comunicar-se rapidamente com seus receptores.

Uma fotografia que estampa a primeira página de um jornal ou de uma publicidade governamental não é desprovida de intencionalidades. Quando uma foto consegue captar as apreensões de um momento político é mérito de quem fotografou, mas também, do modo como a imagem circulou e ajudou a construir um sentido para a imagem circulante. As razões das escolhas, as contradições e o que a imagem comunica é parte de um conjunto de signos que precisam ser analisados criticamente.

Foto: Reprodução
A fotografia feita por Erno Schneider, em abril de 1961, na cidade Uruguaiana tornou-se símbolo das ambiguidades do governo de Jânio Quadros. O presidente, que renunciou em agosto daquele ano, foi representado em um momento de tensão política e foi lida, posteriormente, como um governante que estava enrolado em suas próprias pernas | Foto: observadoressociais

O imaginário sobre as fotografias do passado, sobretudo em relação a fatos ocorridos ou lideranças políticas, artísticas, econômicas e intelectuais, é respaldado pela ideia de ser cópia fiel de um evento. Seria ingênuo supor que uma imagem pudesse resolver os enigmas e impasses do modo como as histórias são narradas e legitimadas: a fotografia é portadora de um discurso que precisa ser questionado, da mesma forma que os demais documentos históricos

Foto: Reprodução
A fotografia da degola de Lampião e Maria Bonita foi utilizada pelo governo para propagandear o desmantelamento do cangaço e transmitir imagem de segurança à população. A imagem, porém, foi lida também como gesto de crueldade e ampliou o mito de perseguição ao movimento que desafiava as oligarquias locais | Foto: wikipedia.org

Se tem algo que as múltiplas fotografias expostas nas redes sociais e, posteriormente, os vários filtros e aplicativos nos sugerem é que a fotografia não é detentora da verdade. Ela não revela as coisas como são, mas tão somente revelam concepções e imagens que queremos produzir, editar e publicar na forma que nos pareçam mais adequadas. E, nesse sentido, as fotografias continuam a ser um instrumento de nossas memórias que, ao modo de cada pessoa, são manipuladas à procura de evitar registros inconvenientes. O problema é que, mesmo forjando e produzindo o que pensamos ser algo confortável, as memórias escapam ao nosso controle e elas sempre voltam para fazer ajustes com o passado. Sejam as de um indivíduo ou de uma coletividade.

 

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