Todos os dias as pessoas acessam milhares de fotografias. Registrar um instante, uma paisagem ou algo muito corriqueiro é uma das características do tempo de comunicação em redes. Porém, as imagens captadas por celulares ou por antigas câmaras são reveladoras de suas épocas, das demandas sociais e culturais e do lugar social que as pessoas ocupam. A democratização do recurso imagético, via celulares, nos abre uma questão: o que queremos guardar? Ainda há um espaço para memória coletiva e social no ato de capturar um instante? A ideia poética de que a fotografia congelava, em um clique, um instante da vida que se eternizaria é posta em questão em tempos de toneladas de imagens armazenadas nos diferentes suportes digitais.
A fotografia transformou-se em algo imediatamente descartável, manipulável e, ao mesmo tempo, ainda mais presente. Quase não há pessoa que não tenha feito uma selfie ou sido registrada em alguma situação. A onipresença de retratos, eventos e situações criou um paradoxo que dialoga com as memórias: o que somos e o que testemunhamos em nossas experiências?
Para os historiadores, a fotografia continua a ser um instrumento fundamental para explicar períodos e construir vínculos com o passado. E essas dimensões podem ser tanto pessoais como sociais. Alguém, por exemplo, sem o recurso da fotografia lembra de suas próprias feições na infância? Guardamos as marcas dos nossos rostos ou tão somente as memórias de episódios? A fotografia nos aproxima com o que fomos e com o que não conseguiríamos imaginar sem a produção de um retrato. Imaginar que teríamos dificuldades para dizer como éramos em tempos passados soa como uma falácia para as pessoas do século XXI habituadas a milhares de imagens expostas nas redes sociais.
Tantas fotografias ajudam a produzir memória ou são um traço descartável em tempos de nuvens?
A fotografia e os novos hábitos
A invenção da fotografia, no século XIX, significou um enorme salto na democratização dos retratos. As pessoas comuns passaram a ter acesso à autorrepresentação, à posse e ao consumo de sua própria imagem. Os fotógrafos ganharam o mundo e encantavam as pessoas com a produção de registros instantâneos. Nas cidades menores, ainda nas décadas finais do século XX, eram frequentes as visitas de pessoas equipadas com suas câmeras e que vendiam seus serviços para pessoas que não pertenciam, necessariamente, às elites. A organização e confecção de um álbum, limitado espacialmente e economicamente, tornava-o um evento familiar e social. Possuir um álbum e manuseá-lo junto com familiares e amigos era um momento de rememoração e de produção de narrativas, nem sempre fidedignas, relacionadas ao passado e às experiências.
A rápida transformação das técnicas fotográficas permitiu a proliferação das imagens. Na origem, demandava-se a existência de um estúdio, da pose congelada e dos recursos cênicos que compunham os retratos. As expressões faciais, quase sempre compenetradas no século XIX, indicavam sobriedade e até mesmo o desconforto de quem teve que se preparar e se produzir para um evento: o ser clicado e ficar registrado em um álbum familiar e privado. Atitude muito diferente da atualidade, em que os retratos demandam sorrisos marcantes. Entre o retrato circunspecto e a quase galhofa há um traço de artificialidade e, sobretudo, de como os vínculos com as vidas privada e pública se transformaram.
As fotografias, antes da proliferação das imagens pelo celular, remetiam ao sentimento de nostalgia. Tirar uma foto era um modo de produzir lembranças para o futuro e, quando acessadas, era a forma de se pensar os rostos, as pessoas e as histórias que começam a se apagar das memórias. Nos anos 1850, por exemplo, quando as famílias eram extensas e a expectativa de vida muito baixa, comparada aos indicadores atuais, como o filho menor de uma família poderia ter imagem ou referência visual de uma avó ou avô? Se o século XIX foi o século da História, a fotografia foi um suporte fundamental para compor narrativas e memórias.
A fotografia e seus usos sociais e políticos
A fotografia como parte do acervo cultural, histórico e social de uma sociedade é carregada de significações culturais, políticas e ideológicas. As condições históricas de sua produção expressam sentidos e motivações de múltiplos atores: a visão do próprio fotógrafo, a serviço de quem ele está apresentando a imagem e, sobretudo, dos modos como elas ganham dimensão de divulgação em jornais, livros e panfletos. As fotografias reproduzidas formam parte de um conjunto de questões que tentam traduzir uma época e comunicar-se rapidamente com seus receptores.
Uma fotografia que estampa a primeira página de um jornal ou de uma publicidade governamental não é desprovida de intencionalidades. Quando uma foto consegue captar as apreensões de um momento político é mérito de quem fotografou, mas também, do modo como a imagem circulou e ajudou a construir um sentido para a imagem circulante. As razões das escolhas, as contradições e o que a imagem comunica é parte de um conjunto de signos que precisam ser analisados criticamente.
O imaginário sobre as fotografias do passado, sobretudo em relação a fatos ocorridos ou lideranças políticas, artísticas, econômicas e intelectuais, é respaldado pela ideia de ser cópia fiel de um evento. Seria ingênuo supor que uma imagem pudesse resolver os enigmas e impasses do modo como as histórias são narradas e legitimadas: a fotografia é portadora de um discurso que precisa ser questionado, da mesma forma que os demais documentos históricos
Se tem algo que as múltiplas fotografias expostas nas redes sociais e, posteriormente, os vários filtros e aplicativos nos sugerem é que a fotografia não é detentora da verdade. Ela não revela as coisas como são, mas tão somente revelam concepções e imagens que queremos produzir, editar e publicar na forma que nos pareçam mais adequadas. E, nesse sentido, as fotografias continuam a ser um instrumento de nossas memórias que, ao modo de cada pessoa, são manipuladas à procura de evitar registros inconvenientes. O problema é que, mesmo forjando e produzindo o que pensamos ser algo confortável, as memórias escapam ao nosso controle e elas sempre voltam para fazer ajustes com o passado. Sejam as de um indivíduo ou de uma coletividade.