Foto: Antoninho PerriJosé Alves de Freitas Neto - Professor livre-docente do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e coordenador executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest). Autor de “Bartolomé de Las Casas: a memória trágica, o amor cristão e a memória americana” (Annablume) e coautor de “A Escrita da Memória” (ICBS) e “História Geral e do Brasil” (Harbra). É autor de diversos artigos e capítulos sobre cultura e política na América Latina (séculos XIX e XX).

 

Não caiu no vestibular

Edição de imagem


Ilustra: luppa SilvaAlguns lugares comuns povoam o imaginário de estudantes e professores quando se trata de processos de classificação como o vestibular. Paira sobre professores, por exemplo, uma certa expectativa de quem adivinhará temas e, consequentemente, fará com que seus alunos tenham vantagem sobre outros concorrentes. A vocação de pitonisa corrobora a visão de que um vestibular é algo aleatório, desconexo e que depende da sorte.

As causas para o êxito em uma prova ultrapassam as expectativas de quem “acerta” o que será cobrado num exame. Os especialistas em educação, há muito, apontam para variáveis amplas como o acesso à escolaridade, o grupo social ao qual está inserido, as experiências culturais vivenciadas pelos estudantes e outros temas que explicam, apesar dos esforços de homogeneização da cultura escolar, a heterogeneidade de resultados em experiências educacionais aproximadas.

A educação é um campo em disputa no qual aspectos como cultura dominante e a emergência de outros saberes e protagonismos estimulam embates e reconfigurações contínuas. Estas disputas se refletem na composição do currículo, nas chaves interpretativas do que queremos ensinar, promover e excluir do cenário. As recentes discussões sobre a reforma do Ensino Médio são um aperitivo sobre o que cabe ou não na formação escolar e que tipo de formação se pretende oferecer nas escolas. E, de forma análoga, a questão perpassa os vestibulares e exames de acesso às universidades.

Foto:Perri
A prova da primeira fase de 2018, no último domingo, foi elogiada por sua atualidade, interdisciplinaridade e comunicação com os referenciais dos estudantes

O problema do conteudismo

Uma crítica frequente aos exames é quanto ao conteudismo. Trata-se de uma observação recorrente, necessária, mas que reproduz a perspectiva mais simplória e observável numa prova. Toda prova envolve conteúdos e assuntos de diversas naturezas, mas estes não devem ter um valor em si mesmo. Aqueles que conseguem identificar apenas os conteúdos, que na prática escolar e científica tendem ao infinito, provavelmente, apostam no dom premonitório e dão pouca ênfase aos procedimentos e à perspectiva de uma formação ampla. Não é difícil adivinhar que haja questões exigindo domínio sobre cálculos de porcentagem, figuras geométricas, genética, ditadura militar, globalização, figuras de linguagem ou escolas literárias.

Em História, por exemplo, muitos estimulam os estudantes a ficarem atentos às efemérides como temas certeiros. E, seguindo esse receituário, lá vão os estudantes concentrar energias sobre os 500 anos da reforma protestante ou o centenário da Revolução russa, para ficarmos nos temas deste ano. Nenhum dos dois temas foi abordado no Vestibular Unicamp ou no ENEM. Se os temas tivessem sido abordados na prova que diferença fariam? Seria a cobrança de um aspecto específico ou seus aspectos de curiosidade, como a formação agostiniana de Lutero, ou sua relevância no fracionamento da cristandade moderna? As teses de Lênin seriam cobradas pela ordem ou por seu impacto como leitura de conjuntura e aplicação ao contexto russo?

A pergunta, portanto, não deveria ser o que “caiu” ou vai “cair” no vestibular como um dom premonitório. Mas "como" caiu qualquer assunto desse amplo espectro da cultura escolar que envolve linguagens, ciências e artes. O “como” é mais significativo do que pretendemos enquanto instituição educacional e que sinais emitimos aos jovens em sua trajetória escolar. Se há algo que os vestibulares poderiam oferecer de lição não é a lista de conteúdos, mas as abordagens, as correlações e as inferências que contemplem múltiplas visões e estimulem o questionamento à legitimidade de certos discursos científicos e sociais.

Em busca de uma formação ampla

O que não se pode ignorar e, nesse sentido aumenta a responsabilidade do ato de educar, de formar um jovem, é que os conteúdos escolares inserem-se numa lógica mais ampla. A formação de múltiplos raciocínios, os domínios de várias linguagens, a contextualização e a capacidade de abstrair são algumas das exigências que devem estar por trás de uma prova. Caso contrário, corre-se o risco de mera reprodução de informações que, a um toque dessa geração que navega o tempo todo, seriam desnecessárias e rapidamente suplantadas.

Os professores contribuiriam fortemente com o êxito de seus alunos nos vestibulares se observassem mais os procedimentos das perguntas do que as tentativas de adivinhar um tema. E, quem formula questões e é responsável por sua execução, deveria estar mais atento a essas configurações e aprimorar nas elaborações que contemplem a diversidade de saberes e experiências dos estudantes da educação básica. E, ao mesmo tempo, devem considerar expectativas e exigências para a vida acadêmica, como o espírito investigativo e crítico.

Foto: Reprodução
As múltiplas conexões são fundamentais para a compreensão dos desafios científicos, culturais e sociais que englobam a educação no século XXI | Ilustração: Reprodução | sidekickcollab.com

Para além dos processos seletivos nunca é exagerado reafirmar o óbvio: as escolas não deveriam formar para o vestibular. As experiências e as vivências das crianças e jovens são mais amplas e complexas que um sistema de seleção, por mais equilibrado, sofisticado e bem-intencionado que seja. Há saberes continuamente reiterados e outros esquecidos. A escola é essencial no imaginário social e é praticamente impensável uma vida sem esta instituição. Porém, se no passado, a pauta escolar era o acúmulo de saberes legitimados pelo currículo, na atualidade, ela aponta para algo mais amplo que a sucessão de temas e informações: a convivência e a aprendizagem com a multiplicidade de sujeitos, vidas e saberes.

O vestibular, como um complexo sistema de passagem, deveria ser sempre sinalizador da expectativa de sermos capazes de ler o mundo, articular informações científicas, sociais e culturais e, para além disso, não ser refém de pitonisas. As musas, valorizadas na Antiguidade, não cessaram de errar em suas profecias ou respostas ambíguas. Para evitar esse aspecto pernicioso de predizer “o que vai cair no vestibular”, o caminho é pensar e construir a educação de forma ampla e coerente.

Fugir das pitonisas ou não ceder aos encantos dos oráculos é a forma de reafirmar o papel da educação, resguardando a compreensão de que o vestibular é um momento da vida, mas não é a finalidade da vida de um ser humano. Trata-se de um alerta para reafirmarmos o compromisso com os jovens, com o conhecimento e com futuro e, de forma mais direta, seguir as recomendações de Albert Einstein nos ensaios reunidos em Como vejo o mundo (1953): “Os excessos do sistema de competição e de especialização prematura, sob o falacioso pretexto de eficácia, assassinam o espírito, impossibilitam qualquer vida cultural e chegam a suprimir os progressos nas ciências do futuro.

 

twitter_icofacebook_ico