Foto: Antoninho PerriJosé Alves de Freitas Neto - Professor livre-docente do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e coordenador executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest). Autor de “Bartolomé de Las Casas: a memória trágica, o amor cristão e a memória americana” (Annablume) e coautor de “A Escrita da Memória” (ICBS) e “História Geral e do Brasil” (Harbra). É autor de diversos artigos e capítulos sobre cultura e política na América Latina (séculos XIX e XX).

 

O julgamento do rei e a imparcialidade da norma

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Ilustra: luppa Silva A imparcialidade e a neutralidade têm sido reivindicadas para o ensino de História, o posicionamento da imprensa e a prática do judiciário, dentre outras esferas. Cada tempo constrói suas próprias falácias e seus falsos profetas.  As pessoas as repetem até que naturalizam um determinado discurso e tornam-se incapazes de observar dimensões que destoam do que já está previamente definido: pode-se simular isenção, mas nunca se obtém a neutralidade em questões que envolvem julgamentos.

Em tempos de judicialização da vida e do imenso tribunal que construímos nas redes sociais, sobre sujeitos comuns e personalidades de todo espectro, espera-se que as pessoas profissionalmente preparadas para emitir um juízo não repitam as nossas mesmas práticas. O engodo é transformar juízes, formadores de opinião e conselheiros da nação em seres supremos com o incrível dom de praticar a isenção em suas sentenças. As pessoas, quando emitem um juízo, expressam suas convicções e referências sociais e culturais. A tentativa de ocultar as crenças e valores, sob o signo da imparcialidade, deveria levantar mais suspeitas do que quando se assume claramente suas premissas.

Os juízes da França revolucionária, por exemplo, tiveram um caso exemplar para expressar sua imparcialidade: o julgamento de Luís XVI. Um dos princípios básicos da Revolução foi implantar a impessoalidade no exercício da justiça. Este princípio, no entanto, era difícil de ser aplicado naquele contexto: o rei foi julgado como qualquer outro cidadão? Alguns pontos do julgamento explicitam questões políticas e jurídicas que se embaralharam naquele contexto.
 

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A Tomada da Bastilha, pintura de Jean-Pierre Louis Houël, 1789. | A Bastilha foi tomada pela população em 14 de julho de 1789 e foi considerado o símbolo da derrocada do Antigo Regime francês. | Foto: Reprodução infoescola.com

A Bastilha foi tomada pela população em 14 de julho de 1789 e foi considerado o símbolo da derrocada do Antigo Regime francês.

 

O julgamento do rei

Acusado de traição, a primeira questão a ser debatida era se Luís XVI seria julgado como um criminoso comum. Saint-Just bradou: “Matemos Luís ao invés de discutir!”; Robespierre declarou: “Luís foi rei e a República foi fundada (...) Luís denunciava o povo francês como rebelde (...). A vitória e o povo decidiram que apenas ele era rebelde: Luís não pode, portanto, ser julgado; ele já está condenado ou a República não foi absolvida (...). Os representantes do povo não têm, pois, uma sentença a declarar, mas um ato de providência nacional a exercer”. Resolveu-se que o ex-rei seria julgado pela Convenção.

O julgamento começou no dia 11 de dezembro de 1792. Os salões foram convertidos em camarotes, como num teatro, nos quais as senhoras vestidas com suas mais atraentes roupas tomavam sorvetes, chupavam laranjas e bebiam licores: abrindo a sessão, falou o Presidente Barrère:  “–Luís, a nação francesa vos acusa. A Assembleia Nacional decretou que deveis ser julgado por ela. Vai-se proceder à leitura da lista dos crimes que vos são imputados”.

Finda a leitura, começou o interrogatório do ex-rei, que parecia responder satisfatoriamente ao que lhe perguntavam: “– A 27 de junho de 1789 atentaste contra a soberania popular, extinguindo a assembleia dos representantes do povo. Quisestes ditar leis à Nação. Que respondeis a isto?” Respondeu o acusado: “– Àquele tempo não havia lei alguma que me proibisse de agir assim”.

A defesa foi apresentada no dia 26 de dezembro por Romain De Sèze, o qual alegou que a Constituição não dava autoridade aos deputados para julgarem o monarca.  O rei tinha estado dentro dos seus direitos humanos ao lutar por sua vida e sua figura era inviolável. Ao julgar o monarca como conspirador contra a liberdade pública, utilizava-se uma lei da República contra a prática do monarca absoluto. A lei, nascida sob o princípio da impessoalidade, retroagia para punir o déspota.

A cidadania é filha das repúblicas. No sistema monárquico, havia súditos. Luís XVI, do ponto de vista jurídico, não cometera um crime, pois ele era a própria lei. A defesa do monarca tentava convencer que, naquele julgamento, ele não tinha os direitos do cidadão, nem as prerrogativas de rei. O infortúnio de Luís não tinha qualquer amparo legal e seu julgamento era essencialmente político: não usufruíra de sua antiga, nem da nova condição.

O restante da história é bem conhecida. Em 21 de janeiro de 1793, Luís XVI foi guilhotinado na Place de la Révolution (atual Place de la Concorde). A multidão compareceu para assistir à execução do ex-monarca que, em suas últimas palavras, alegava inocência e perdoava seus inimigos.

A transição de tempos revolucionários permite inferir que a condenação seria um aspecto menor diante das atrocidades cometidas por Luís Capeto. Porém, nunca se deve esquecer que o direito moderno reafirmou o principado da norma sobre os sujeitos e, consequentemente, ajudou a construir a imagem de que as esferas jurídicas seriam impenetráveis a princípios externos à própria lei. A execução, naquele caso, tinha pouca relação com o procedimento jurídico e, desde esse processo exemplar, deveria nos relembrar que nunca somos isentos em nossas formas de atuar.


Imparcialidade?

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O judiciário brasileiro tem sido protagonista de decisões controversas e estimulado a reflexão sobre sua imparcialidade | Foto: Reprodução justificando.cartacapital

Transpondo os séculos que nos separam da execução de Luís XVI, há o embate entre normas e sujeitos. A disputa entre regras pretensamente isonômicas para os que vivem sob um mesmo sistema e as pessoas que buscam formas de se distinguir ou se justificar diante das normas. Na educação, na imprensa, no judiciário e nas redes sociais não faltam exemplos de regras e condutas que são pensadas para que outras pessoas as cumpram.

Retomando a questão inicial: seríamos capazes de conceder ao monarca francês a absolvição a partir da simples constatação de que as regras jurídicas eram inexistentes quando houve o delito de que era acusado? Ou ainda, as nossas noções podem ser manuseadas conforme as circunstâncias e outras vontades e desejos? O que nos motiva quando julgamos? A imparcialidade e a preocupação com a apuração dos fatos são as premissas básicas ou apenas as justificativas nobres que encobrem outros desejos?

A isenção e imparcialidade, se olharmos para a o uso da guilhotina na França do século XVIII e para os comportamentos de juízes profissionais e das redes sociais de nosso tempo, são apenas uma invenção que oculta a condição de acusadores que ronda a todos.

 

Para ler sobre o julgamento de Luís XVI:

http://www.eyewitnesstohistory.com/louis.htm

 

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