No cotidiano escolar e acadêmico há uma demanda quase compulsiva pela escrita. A carreira sustentada em currículos medidos por artigos ou, de forma mais cruel, na abundância de provas e trabalhos demandados no ensino básico indicam que os universos escolar e acadêmico estão inflados pela necessidade de escrever. Até nas redes sociais as pessoas se sentem no dever de registrar, marcar presença, expressar opinião. O fato é que estamos sempre atrasados para entregar um novo texto.
Esta coluna não é um manifesto contra o “produtivismo” ou outras questões que nos importunam, nem uma abordagem de especialista sobre leitura e produção textual, mas tão somente uma indagação de um docente a uma pergunta mais simples: qual o espaço e o valor da leitura? Certamente, alguns dirão que sem leitura, não se escreve. Sem leitura não há fundamentos para desenvolvimento de argumentos e raciocínios. Isso parece bem claro para estudiosos e professores. Mas por que a leitura não pode ocupar um espaço por ela mesma? A dignidade do leitor não pode ser equivalente ou até mesmo superior ao ato da escrita? A leitura não deveria ocupar um espaço nobre nas atividades escolares com uma legitimidade própria e sem estar atrelada ao resultado a ser cobrado e medido por algum instrumento qualquer?
O escritor e crítico argentino Ricardo Piglia, em seu Último leitor (2006) dedica atenção máxima aos leitores de ficção. A leitura, partindo de referências importantes como Kafka, Borges, Joyce, Shakespeare e Cervantes e outras do romance policial, é abordada como uma arte. O leitor, insone ou não, é aquele que utiliza suas próprias escalas para construir um conjunto de sentidos a partir de muitos fragmentos e experiências. A interpretação, tão necessária e fundante dessas construções, estimula a reinserção do leitor no mundo ou, como retratado na beleza de Dom Quixote, o faz perder-se num determinado mundo. Os deslocamentos que a leitura provoca deveriam ser pensados, como sugere Piglia, a partir das experiências localizadas e situadas dos leitores.
Os leitores não são um detalhe marginal e a leitura nunca é abstrata. O exercício de introspecção no ato de ler faz com que o mundo siga seu ritmo e tempos, enquanto o leitor ausenta-se das atividades corriqueiras. O modo como os escritores imaginam os leitores é um elogio aos que leem e traduzem, como no leitor borgeano, a vastidão do universo dos que passam das citações aos textos, dos textos às bibliotecas. O leitor está sempre diante do infinito de signos, imaginários, experiências e interpretações e, dessa forma, a leitura não se restringe à obra que está sendo lida.
O leitor pode tudo?
O que é produzido pela leitura, entretanto, tem seus limites. A articulação entre o que se lê e o modo como se lê é fundamental para que a interpretação não seja arbitrária. A autonomia do leitor existe, mas não é absoluta. As tentativas de solapar os sentidos de um texto é antiga e não foi inventada pelas redes sociais dos dias que correm, mas está na gênese das grandes narrativas.
Erich Auerbach, em Mimesis (1946), analisa os grandes cânones da tradição literária ocidental e, no seminal “A cicatriz de Ulisses”, problematiza a escrita homérica e o texto bíblico. O primeiro, mais explícito e ordenado, demanda menor interpretação que o segundo. Mas o relato sagrado expressa uma “interpretação tirânica” de que todos os desfechos, cenários e a própria história da humanidade se subordinam ao domínio exclusivo de sua pretensão à universalidade histórica.
Comparar as posições acirradas das redes sociais aos relatos bíblicos pode soar ofensivo e, certamente, é uma leviandade de minha parte. Mas o central é o lugar que nos fiamos como leitores para atribuir sentidos a partir do que pode ser observado em um texto. Os intervalos entre o que nos é apresentado e como decodificamos um texto demanda mediação. Por isso, quanto mais amplas as referências dos leitores, mais sofisticadas ficam suas articulações e, curiosamente, pode-se legitimar alguma subversão que ele venha a exercer em relação a uma obra. Caso contrário, todas as leituras teriam que ser convergentes.
A leitura deveria ser mais valorizada em nossas escolas e universidades. Muitos dirão que ela já o é. Na prática, valorizamos a materialidade dos resultados de leituras anteriores: o trabalho final da disciplina, a prova, o artigo etc. Poderíamos ou teríamos condições de valorizar de outra forma?
A expectativa de uma punição é o motor de grande parte de nossa trajetória escolar. Estimular a leitura, antes mesmo de “formar” leitores, deveria ser um compromisso prévio de todos os que ensinam ou que tenham sido influenciados por bons leitores. O ciclo escolar é, praticamente, o período em que se adquire o gosto pela leitura. Se, durante tantos anos, a leitura aparecer apenas como uma exigência para um exame será difícil supor um universo de leitores. Não transformemos em um fardo – a escrita, memorização ou mera produção- aquilo que pode ser estimulante: o ato de ler em si.
É relativamente simples identificar características que definem um texto bem escrito. Muito mais complexo é encontrar uma forma de dizer que um texto foi bem lido. Sem recorrer aos argumentos de autoridade sobre a leitura adequada de um texto – tarefa seguramente necessária, sofisticada e extremamente profissional – há que se estimular o gesto fundante: começar a ler e estimular a leitura por ela mesma.
Em tempos de tantos apelos instantâneos e, tantas vezes sem mediação, a tarefa parece inglória. A busca do sentido das experiências é algo comum em diferentes etapas e momentos da vida; parece não encerrar-se e, desse modo, podemos descobrir novos textos, novos encantos e novos refúgios para se estar só.
O apelo é quase a atualização de uma questão que emerge na obra que fez o maior elogio à leitura: Dom Quixote (1605). A conhecida história do “engenhoso fidalgo” que gastou sua fortuna em torno das novelas de cavalaria é um convite à leitura. Pode parecer quixotesco, mas não nos custa um pouco de fantasia.
“En resolución, él se enfrascó tanto en su letura, que se le pasaban las noches leyendo de claro en claro, y los días de turbio en turbio; y así, del poco dormir y del mucho leer, se le secó el celebro de manera que vino a perder el juicio. Llenósele la fantasía de todo aquello que leía en los libros, así de encantamentos como de pendencias, batallas, desafíos, heridas, requiebros, amores, tormentas y disparates imposibles; y asentósele de tal modo en la imaginación que era verdad toda aquella máquina de aquellas soñadas invenciones que leía, que para él no había otra historia más cierta en el mundo”