A visita do Papa Francisco ao Peru e ao Chile reacendeu discussões e polêmicas sobre o modo como a Igreja se relaciona com seu passado e sua trajetória no Novo Mundo. O primeiro papa nascido nas Américas tem um forte simbolismo para os latino-americanos e Francisco, na escassez de grandes lideranças mundiais com algum grau de sensatez, tem se destacado por posições em defesa dos direitos humanos, dos refugiados e contra as desigualdades. A visita à região da Araucanía, no sul do Chile, e o encontro do papa com os mapuche [I] são emblemáticos pela ambiguidade da Igreja em relação aos povos originários do continente.
A Igreja chegou junto com os conquistadores espanhóis. E, parte dela, foi crítica dos procedimentos de evangelização e da forma como os povos indígenas foram explorados. Outra parte, entretanto, estava imersa nas estratégias de colonização e dominação. As primeiras vozes que se levantaram em defesa dos indígenas foram de religiosos, no século XVI. E, na atualidade, há grandes segmentos do universo católico envolvido com a defesa dos povos e culturas indígenas.
Las Casas e a questão indígena
A crônica do frei Bartolomé de Las Casas (1484-1566) é um dos principais relatos sobre a colonização da América empreendida pelos espanhóis a partir de 1492. Consolidada ao longo da Idade Média, a crônica produzida por religiosos mendicantes tinha duas finalidades principais: enaltecer o cristianismo e relatar como o discurso religioso se estabelecera em determinada circunstância. Os feitos memoráveis de religiosos e de sua ação missionária, assim como de suas instituições, constituíam a base dos relatos que seriam apresentados pelo cronista.
O êxito da narrativa lascasiana pode ser averiguado pelas repetidas edições de sua obra Brevísima Relación de la Destruición de las Indias, de 1542. O relato ajudou a construir uma visão sobre a destruição do indígena na América e a discutir legislações e procedimentos que alteraram o reconhecimento de direitos a outros povos que não pertencessem à mesma cultura, fé ou etnia.
O objetivo da Brevísima, como indica o título, era denunciar a ação da conquista espanhola nas diversas províncias e regiões do Novo Mundo, expondo a dizimação dos povos indígenas e solicitar a suspensão das encomiendas, que eram um regime de trabalho no qual comunidades indígenas inteiras ficavam sob os cuidados de um espanhol (encomendero) que poderia utilizar a mão de obra dos índios em troca de sua catequização.
Para Las Casas, a violência, a exploração e a dizimação dos índios era uma afronta ao direito natural e à fé cristã. Para evitar esta prática colonizadora, o frade atuou como religioso e escritor, envolvendo-se em diversos episódios que influenciaram na vida de colonos, índios e da própria Coroa de Castela.
Na descrição lascasiana, os índios eram cordatos, amáveis e dóceis. Tal imagem, associada a um virtuosismo idílico, próximas ao do homem antes do pecado original, segundo a tradição cristã, representou sua própria anulação política, como observou o professor Héctor Bruit. A docilidade e paciência permitiam a simpatia e compaixão pela vítima e abria espaço para os que narram a história, no caso, o clérigo. Em outras palavras, não cabe ao modelo de virtude apresentado a roupagem da revolta e da discordância diante da experiência concreta de exploração. Las Casas, após construir sua imagem do índio, apresentou-se como legítimo defensor dos indígenas.
De volta a Francisco e os mapuche
Os mapuche são 7% da população chilena, o que representa pouco mais de 1 milhão de pessoas, e formam comunidades que se espalham entre o Chile e Argentina. As comunidades resistiram à presença e à dominação espanhola e do Estado chileno, após a independência. O grupo está longe da docilidade ou da passividade apresentada no relato lascasiano.
As formas de resistência mapuche contra colonizadores e contra o Estado chileno incluem ações como atear fogo em Igrejas e prédios públicos. A principal demanda é pelo reconhecimento do direito de autodeterminação dos povos que não se consideram nem chilenos, nem argentinos. Essa questão, para além do reconhecimento cultural, esbarra em temas como a exploração de terras e riquezas por parte do Estado e grandes grupos empresariais.
O preconceito contra os mapuche, incluindo os propagados pela imprensa que assimilou o discurso do Estado nacional desde o século XIX, reverbera-se na violência policial contra os povos originais. Dezenas de ativistas foram assassinados nos últimos anos e há cumplicidade do sistema jurídico com a impunidade em relação a estes crimes.
A visita de Francisco, nesse caso, é criticada tanto por católicos mais conservadores, como por lideranças mapuche. Os líderes indígenas, como Rolando Jaramillo, líder do Conselho de Todas as Terras, não querem que o papa peça um perdão retórico. João Paulo II já havia feito esse pedido no contexto dos 500 anos da chegada de Colombo ao Novo Mundo. Os indígenas querem que a Igreja se reconheça como parte do genocídio causado e que se comprometa a fazer justiça, reconhecendo os direitos às terras e indenizações às vítimas da ocupação do território mapuche.
Os católicos conservadores, por outro lado, se ressentem do Papa criticar a violência do Estado chileno contra os mapuche. O Chile é o país com menor número de católicos na América Latina, com pouco mais de 40% da população, e com o maior número de pessoas que se declaram sem religião no continente. Esse perfil diferencia o país dos demais vizinhos, onde a diminuição de católicos tem significado o aumento de outras denominações.
Francisco tentou repetir Las Casas: ser crítico de uma situação, sendo parte de um aparato que está identificado com um dos lados. O Papa criticou os dois tipos de violência existentes na atualidade: a do Estado e sua força policial que não cumpre as promessas feitas aos mapuche e a dos grupos indígenas que atacam e queimam igrejas e prédios.
“Existem duas formas de violência”, disse o Papa na missa celebrada em Temuco, diante de 150 mil pessoas, no dia 17 de janeiro. “Em primeiro lugar, elaborar belos acordos que nunca chegam a se concretizar. Isso também é violência, porque frustra a esperança. Em segundo lugar, uma cultura do reconhecimento mútuo não pode ser construída com base na violência e na destruição, que termina provocando perdas de vidas humanas. Não se pode pedir reconhecimento aniquilando o outro. A violência acaba tornando mentirosa a causa mais justa.”
A visita de Francisco e os relatos de Las Casas guardam similitudes: reconhecem a disparidade de forças e o impacto sobre os indígenas. Francisco, porém, não pode silenciar-se diante do protagonismo dos mapuche, nem ser uma voz supostamente equidistante, pois os mapuche não são silenciados por uma noção idealizada de povos dóceis e submissos: são a própria resistência do que pensam e querem sobre suas culturas e suas terras.
A crônica do século XVI é atual por ser reveladora do que imaginamos ter sido em uma fase pueril. A realidade da Araucanía, no século XXI, nos retira da zona de conforto de supor a existência de um paraíso. Mas, se ele existir, tem que ser para todos!
[I] A palavra mapuche não tem plural no idioma mapudungun.