A imagem de que as democracias latino-americanas são ameaçadas pelas práticas populistas oculta percepções e sugere um emaranhado de questões sobre os significados dos dois termos. A paisagem política é pródiga em exemplos de que os que apontam riscos sistêmicos à democracia, nem sempre explicitam suas concepções sobre ela. E, mais do que isso, constroem um espectro fantasmagórico plasmado nas acepções de populismo para destruir espaços e vivências democráticas, mesmo que mínimas.
O populismo é um tema central e frequente na vida política dos países latino-americanos. A imprecisão conceitual e o aspecto pejorativo do termo são duas das características utilizadas para descrever um fenômeno complexo que é associado, frequentemente, à debilidade da democracia. Os modos como o termo “populista” são usados para desqualificar figuras públicas expressam algo sobre a concepção de democracia e sobre a participação popular.
De forma simplificada e generalizada, pode-se afirmar que o populismo e suas variações expressam as contradições de sociedades nas quais os direitos políticos e sociais não estão consolidados e, ao mesmo tempo, experimentam certas liberdades e práticas políticas existentes nas democracias. São tantos os exemplos de práticas populistas, à direita e à esquerda, que o mais adequado é falarmos desse fenômeno no plural.
Os múltiplos sentidos atribuídos aos populismos deveriam ser analisados em sua perspectiva histórica e, de forma atenta, como exercício de depreciação da participação popular, seja por eleições ou por movimentos sociais organizados. Os populismos são abordados como uma operação inconclusa da modernização das sociedades, especialmente em suas práticas de cidadania, e nos modos como são exercidos direitos e deveres durante os processos de urbanização e industrialização. Consequentemente, o corpo social não seria sujeito de sua vida política, mas tão somente legitimador de estratégias de políticos demagogos que manipulam e enganam as pessoas em períodos eleitorais.
Os opositores dos governos populistas, com frequência, flertaram com o autoritarismo, com as ditaduras e com a supressão de direitos. As “imperfeitas” democracias da América Latina seriam as responsáveis pela criação de regimes deformados que se sustentaram por meio de práticas clientelistas e de contínua manipulação, na visão dos defensores da ordem e contrários ao surgimento de novas forças políticas.
Se os populismos são um obstáculo às práticas cidadãs e democráticas, devemos nos perguntar: quais seriam os caminhos para superá-los? Aprofundando a democracia e a conquista de direitos ou retroagindo em nome de argumentos técnicos e econômicos para a retirada de direitos? A frequência com que o tema aparece no Brasil, no México e na Argentina, para ficar nos maiores países do continente, indica que a existência do populismo é funcional para grupos políticos, econômicos e midiáticos que não tem apelo suficiente para ocupar instâncias decisórias e se sentem ameaçadas por outros sujeitos sociais.
Diante de qualquer expansão de direitos há uma tentativa de contê-los denunciando-se jogos de manipulação, práticas autoritárias e compadrios de legitimação entre uma liderança e seus liderados, que seriam próprios dos populistas. O embate entre uma democracia combalida e a emergência de líderes populares explicita uma disputa por direitos e significados sobre o poder. Quando grupos tradicionais e oligárquicos são substituídos por novas forças políticas ficam visíveis as limitações das entranhas de poder e da perda da representatividade dos grupos tradicionais. Portanto, o populismo como ameaça à democracia deve ser contextualizado para que se pergunte: qual democracia? No Brasil, por exemplo, a ascensão de Vargas, em 1930, fez-se sobre a elite agrária que administrava o país desde os primeiros anos da República.
Um pouco de história
Em linhas gerais, pode-se afirmar que os populismos emergem a partir de múltiplas questões. A perda de confiança no sistema político, por exemplo, é a justificativa para que emerjam lideranças que aparentam uma capacidade de liderar reformas e empreender uma nova ordenação política que não seria capaz de surgir diretamente pelo próprio sistema.
A ineficiência das representações parlamentares, o esvaziamento do Executivo ou a fragilidade de outras instâncias de poder são indícios de um colapso institucional. O desprestígio das forças políticas, os escândalos de corrupção ou o esgotamento de elites tradicionais são outras sinalizações de que se vive um impasse propício para a emergência de novas lideranças que fazem da antipolítica a sua prática política. Em contextos dessa envergadura, as noções de direita e esquerda não são suficientes para conduzir propostas que integrem grupos e reordenem o funcionamento do Estado.
Porém, mais do que uma idealização em torno dos fenômenos populistas, é necessário compreender as condições históricas que levam a seu surgimento e as ambiguidades existentes destas práticas. No Brasil, Argentina e México, as lideranças consideradas populistas emergiram quando as oligarquias perderam poder e novos grupos sociais e políticos ocuparam espaços na vida pública.
Entre práticas autoritárias, decorrentes da forte presença estatal, e manifestações em apoio à inserção de movimentos populares que apresentavam suas reivindicações, o populismo teve grande força no México e na Argentina, sob os respectivos governos de Lázaro Cárdenas (1934-1940) e de Juan Domingo Perón (1946-1955). Esses movimentos, incluindo o período de 1945-1964, no Brasil, ora são vistos como processos com características comuns, havendo certa generalização, ora são tidos como processos muito particulares em cada um dos países.
Novos estudos sobre os governos denominados populistas permitem afirmar que um traço comum os caracteriza: a introdução de uma nova cultura política baseada no papel interventor do Estado nas relações sociais. Este papel representou, ao mesmo tempo, atendimento de reivindicações de natureza social (melhoria salarial, legislação trabalhista, reforma agrária, especificamente no caso mexicano) e política (uma cidadania baseada no reconhecimento do trabalhador como sujeito da história).
Não se pode negar a importância dessas conquistas das classes trabalhadoras que encontraram resposta aos seus anseios, até então desprezados por governantes e setores dominantes. Nesse tipo de explicação, a adesão das “massas” a tais regimes é entendida como uma opção própria dos trabalhadores urbanos e rurais em função de seus interesses materiais e subjetivos. Por outro lado, apesar de se voltarem para os interesses das classes populares, não pode se perder de vista o caráter centralizador e controlador dessas políticas, que introduziram uma estrutura institucional de natureza autoritária, utilizada posteriormente como mecanismo de controle social e político.
Riscos à democracia
Se os populismos surgiram em épocas de agitação política, social e econômica é compreensível que eles não sejam a causa dos problemas, mas a consequência de práticas ainda mais tradicionais que, afirmando-se como democráticas, negaram direitos à população.
Os riscos à democracia, parece-me, não emergem da simples acusação de que alguma liderança é populista, mas de como se busca combater o próprio populismo. Para expurgar traços e heranças do peronismo ou do varguismo, por exemplo, lideranças argentinas e brasileiras confabularam até o estabelecimento de ditaduras.
A melhor aposta para coibir os autoritarismos e a tentação de controle da vida social e política, praticada por líderes populistas, não é retroceder nos avanços que uma sociedade tenha construído, mas radicalizar na direção de contemplar mais direitos e assegurar o seu cumprimento por parte do Estado, sem ameaças ou ineficiências. Caso contrário, existem riscos maiores, como a reaparição do argumento tacanho de nacionalismo e o surgimento de movimentos coletivos anti-institucionais, que forjam a criação de novas identidades políticas e subverteram o espaço das lideranças e dos modos habituais do exercício político, com o beneplácito das redes sociais.