A paralisação dos caminhoneiros é um fenômeno político e social da maior relevância. O fato de estarmos atônitos sobre os possíveis desdobramentos do movimento iniciado em 21 de maio é indício suficiente de que estamos habituados a ler conjunturas e processos a partir de uma lógica centrada nas grandes figuras políticas ou em grandes organizações como partidos e sindicatos. As articulações de movimentos em outros contextos e configurações surpreendem analistas, acadêmicos, imprensa e a população. A insatisfação popular em 2013 ou a de 2018 foi manifestada, sentida e, sem uma clara definição de propósitos, eclodiu numa sucessão de eventos que ora podem ser lidos em sua singularidade, ora permitem concatenações e apropriações por grupos que entraram no radar das grandes decisões públicas.
Decantar tantas informações em um prolongado período de crise é tarefa hercúlea e, por vezes, impossível de ser feita sem que sejamos surpreendidos pelo instante seguinte. Porém, sem qualquer pretensão de uma análise que esgote a questão, é necessário que nos aventuremos a compreender os processos que se desenrolam em nossos dias. As contingências são mais definidoras do que os contextos preexistentes que poderiam explicitar os episódios recentes.
À parte a questão explícita dos caminhoneiros e suas demandas por redução de custos do combustível, pedágios e impostos, há um ruído político no apoio recebido pela população e na desconcertante defesa de alguns setores de uma intervenção militar. O que aproxima 2013 e 2018 é a proposta, sem constrangimentos, de um governo de força a partir de um golpe militar. Obviamente, os que defendem um golpe desta natureza, camuflam seu vocabulário com palavras como “intervenção militar constitucional” e apelos à “defesa da ordem”. Nesse sentido, as rotas da construção da democracia, percorridas após a Constituição de 1988, estão sendo obstruídas por um clamor cada vez mais estridente e inverossímil.
O filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), em “O Contrato Social” (1757), expôs que a troca da liberdade por um regime de servidão não é um fundamento crível para a formação de uma sociedade. Os que defendem que as pessoas poderiam trocar a sua liberdade política pela tranquilidade civil oferecida por um déspota equivocam-se, pois é possível viver tranquilo nas masmorras, mas nelas não se pode viver bem. Alguns poderiam dizer: esta é a vontade da maioria da população que não suporta desmandos, corrupção e está cansada de tantos impostos e precariedade de direitos. A resposta, seguindo Rousseau, seria: é inconcebível que um povo todo ceda sua liberdade em favor de um tirano. E, se mesmo assim, isso ocorresse poderíamos dizer apenas que é um povo de loucos e, nas palavras do filósofo, “a loucura não cria direito”.
O fetiche da ditadura
A ideia de pacto social, banalizada durante a redemocratização, perdeu qualquer significado ou importância no presente quadro político. As demandas por redistribuição de renda ou combate às desigualdades foram pautas importantes em diversos momentos das últimas décadas, mas parecem ter sucumbido a uma lógica de corte de despesas e suspensão de direitos a partir de uma pauta reformista conservadora. Os protestos nas estradas são sedutores por apresentarem benefícios palpáveis e com usufruto imediato: pagar menos pelo combustível. A pauta não é ilegítima, mas sinaliza outros pontos que seduzem o apoio popular, como a interdição de um debate mais amplo sobre o aprofundamento do estado de bem-estar social, enquanto lucros astronômicos do capital internacional e do sistema financeiro permanecem intocáveis.
Se houvesse necessidade de agravar o quadro, vive-se no contexto de um governo e um sistema político-jurídico severamente atingidos em sua credibilidade. A corrupção, as negociatas, a ineficiência administrativa, a estagnação econômica e a sucessão de escândalos produzem um mapa para o caos. A defesa da democracia entrou em colapso há alguns anos e a ditadura, ou como querem difundir, a “intervenção militar” é proposta por vários segmentos da população.
A sedução da autoridade – rígida, sem diálogo, sem respeito – explicita a infantilidade dos que desejam um comando que mutile sua própria consciência. O saudosismo, como muitas pessoas se referem, por exemplo, à uma escola autoritária, de papéis bem definidos, é sintoma de que aceitam a severidade e a humilhação apenas para justificar a ideia de sociedade disciplinada.
Uma manifestação justa, como a apresentada pelos caminhoneiros, não poderia ter pior desfecho que o uso para propagandear a defesa da ordem e do autoritarismo. Não considero que o movimento seja homogêneo ou manipulado, apenas que catapulta outras questões em seu modelo de organização: a emergência de movimentos descentralizados pode abrigar ideias e prognósticos temerários. Finda a conquista material, permanece o simbolismo de pautas amargas, como se uma fatalidade histórica estivesse prescrita para experimentarmos novamente o horror da ditadura.
Nenhum movimento recente conseguiu parar o país como o dos caminhoneiros. O oportunismo dos defensores do golpe ou “intervenção” ignora que uma manifestação como esta jamais seria possível na vigência de uma ditadura. Os iludidos com a solução militar foram impulsionados por um discurso de rancor e ódio que culpabiliza as vítimas da ditadura enquanto sequer se perguntam sobre o que levaria o Estado e seus agentes a perseguir e assassinar cruelmente seus opositores ou, simplesmente, pessoas que ousaram desafiar a ordem político-econômica, como o fazem os caminhoneiros nesse instante.
A depender dos desdobramentos desses dias, os bilhões de reais para atender às pautas dos caminhoneiros podem ser a parte mais barata desse imbróglio. Há algo muito mais caro e que não pode ser precificado: a liberdade e a quimera de democracia, mesmo que frágil.
Ditadura, jamais!