Foto: Antoninho PerriJosé Alves de Freitas Neto - Professor livre-docente do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e coordenador executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest). Autor de “Bartolomé de Las Casas: a memória trágica, o amor cristão e a memória americana” (Annablume) e coautor de “A Escrita da Memória” (ICBS) e “História Geral e do Brasil” (Harbra). É autor de diversos artigos e capítulos sobre cultura e política na América Latina (séculos XIX e XX).

 

Sobre violências e direitos humanos: o papel da educação em tempos sombrios

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Ilustra: luppa Silva “A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação”, segundo escreveu o filósofo Theodor W. Adorno em texto de 1967. A advertência pode parecer extemporânea ou panfletária diante de um contexto diferente do que foi o horror dos campos de concentração durante o nazismo. Adorno, pouco mais de duas décadas após o final da Segunda Guerra Mundial, preocupava-se com os efeitos do esquecimento diante de uma imagem que começava a esmaecer nas sociedades europeias. Meio século depois de Adorno e mais de 70 após a queda do nazismo, o mundo convive com uma memória que condena aqueles processos passados e, ao mesmo tempo, parece ter uma prática de produzir uma invisibilidade diante de novos infortúnios que atingem refugiados, minorias e grupos étnicos específicos.

No Brasil, o acirramento político e ideológico dos últimos tempos fez emergir vozes tenebrosas que renegam princípios basilares como os direitos humanos. Grupos reacionários enxergam os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, publicada pela ONU em 1948, como parte de uma propaganda política e defendem que tortura e censura, por exemplo, são aceitáveis em determinadas circunstâncias. O ódio, a fúria e, sobretudo, a indiferença fazem com que convivamos em situações degradantes que afetam a dignidade humana.

Os direitos humanos e as liberdades fundamentais são cada vez mais banalizadas em discursos supostamente assépticos e isentos que alguns grupos se arvoram em defender nas mídias e nas escolas. O pensamento nunca é neutro. O constrangimento sofrido por educadoras e educadores diante de ameaças de pais e mães furiosos, de lideranças políticas, midiáticas e religiosas que abundam pelo país é um desalento.

Projetos como “escola sem partido” nada mais são que um engodo contra uma escola democrática e plural. O pensamento autoritário, não nos esqueçamos, nunca se apresenta como tal. Ele emerge como discurso salvador diante de supostos descaminhos que ofendem a “tradição” e os “costumes”. Mas a tradição e os costumes que defendem, seguramente, não são o de todos os povos e nem de todos os grupos, mas tão somente dos grupos majoritários e excludentes. Se o apelo a todas as tradições valesse, não teríamos tanto assassinato de indígenas que lutam, por exemplo, pela demarcação de suas terras e pela possibilidade de viverem de acordo com seus costumes.

Foto: Tania Rego | Agencia Brasil


Os direitos humanos contra uma lógica de violências

Os direitos humanos são uma conquista e uma tarefa histórica para barrar todo tipo de opressão que afeta a dignidade humana. Por premissas universais e, mais recentemente, por demandas particularistas há a constatação que os direitos básicos não são uma dádiva, mas um ponto em disputa. A recusa a meios violentos de imposição de poderes e de constrangimentos às pessoas é um dos princípios dos direitos humanos.

As violências em diferentes formas - públicas, estatais, privadas, abertas, simbólicas, dissimuladas – e a resistência a elas impulsionam debates sobre limites para a ação das pessoas. Uma das respostas às violências é o caminho aberto para o diálogo e a convivência entre indivíduos e grupos diferentes. Onde o diálogo não pode prosperar abre-se espaço para o medo, para a intransigência e para as agressões.

As comunidades escolares, antes de todo e qualquer saber científico, têm o compromisso com uma formação que construa o diálogo. Tal construção não é a negação de tensões e desigualdades. As mudanças sociais, culturais e educacionais se produzem em meio a disputas de diferentes ordens e outras configurações identitárias. É impensável qualquer pauta de uma educação para a democracia e para a cidadania que não reconheça o pleno direito do convívio das diferenças. Em tempos em que as obviedades precisam ser repetidas: o convívio entre diferentes não significa condescendência ou convivência com discursos e práticas criminosas que poderiam se esconder sob o manto da “liberdade de opinião”.

Se o apelo de Adorno fez e faz algum sentido devemos nos perguntar sobre quais são as feridas que não fecham e o que nos ameaça na atualidade como misoginia, racismo, homofobia, transfobia e todo tipo de violência.  Um país que tem como marca incontestável de sua formação a experiência da escravidão, a dizimação de grupos indígenas, a perseguição a opositores políticos em ciclos ditatoriais, o não reconhecimento do protagonismo feminino e um verdadeiro genocídio contínuo contra as populações das periferias ainda tem muito a aprender e se descobrir na pauta dos direitos humanos.

As escolas e as pessoas que nelas atuam não podem sucumbir em sua tarefa de propor o debate, discutir práticas, problematizar e defender a promoção e a garantia dos direitos humanos. A educação tem que estimular vínculos de compromisso com a humanidade presente e com a que virá no futuro. Pensamento é ação e, portanto, a crítica aos preconceitos, às injúrias, às desigualdades, tal como a defesa de princípios igualitários e do respeito às diferenças devem ser práticas que não aceitam a intimidação e a restrição de direitos. As tantas resistências, nos dias atuais, à pauta dos direitos humanos são reveladoras do lugar em que estamos nesses tempos sombrios.

 

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