Os abalos políticos vividos no Brasil desde 2013 são fontes para inúmeras análises e, paradoxalmente, quase nenhuma possibilidade de apresentar projeções que identifiquem o cenário que se erguerá num futuro próximo. A era das incertezas, mais que título de ensaios e obras, converteu-se em uma sólida e dolorida constatação que veio acompanhada de uma certa estafa coletiva e desencanto com o futuro.
As tramas e os jogos políticos da República talvez sejam um emaranhado de difícil apreensão. Mas as disputas não ocorrem apenas nas altas esferas do poder: elas são também culturais e sociais, como se observa em vários movimentos organizados e suas demandas. A política, desde Maquiavel, é essencialmente conflituosa. A perspectiva de bem comum, se ele existir, ocorre quando um grupo consegue produzir imaginários, mitos e uma certa ordem moral para legitimar-se.
Política e moral estão vinculadas desde as primeiras formulações do pensamento aristotélico e, entre crises e aproximações, ainda são um terreno fértil para analisar alguns processos. Nem sempre a vitória do poder político significa obter a vitória moral.
Os “vencidos” pelo poder econômico e político entram, muitas vezes, na arena pública com um discurso moralmente superior. É incontestável que as vítimas da Inquisição são reconhecidas como superiores aos inquisidores, assim como os povos nativos das Américas em relação aos colonizadores. A lista poderia ser infindável até chegarmos aos excluídos dos tempos atuais e dos grupos que lutam por algum sentido de reparação e justiça histórica na lógica do mundo ocidental. Não há pessoa de bom senso que possa negar que as demandas das mulheres não sejam uma imposição ética e moral sobre as sociedades atuais e que o simples silêncio sobre estas pautas são uma forma de violência.
A moral, compreendida etimologicamente como costumes e práticas, instaura uma ordem de significações que desestabiliza o poder político e o status quo. A lógica moral, para evitar que a política seja vista como uma ação sofisticada de gangsters, impõe-se sobre e a partir de princípios políticos caros para os ideais republicanos como igualdade, justiça e democracia.
Entretanto, as tensões entre o desejo individual ou de grupos e a necessidade coletiva arbitrada pelas esferas de governo causam um grande destempero nas relações políticas e, também por isso, ocorrem as mudanças nas sociedades. Os valores morais e políticos são ressignificados a cada tempo.
A esquerda diante da questão moral
Na história brasileira a partir da ditadura civil-militar (1964-1985) a pauta da esquerda encontrou respaldo em importantes grupos e angariou apoio político. Mesmo nos instantes em que o poder era uma possibilidade distante, algumas das suas bandeiras históricas foram contempladas na Constituição de 1988 e em diferentes governos pós-1985. As derrotas eleitorais do principal partido de esquerda, o PT, não corroeram um capital que se espraiava como demandas de consolidação da cidadania.
A corrupção incomodava, mas era uma prática associada a heranças antigas e ao passado patrimonialista. A prática que era velha conhecida dos brasileiros estava, por assim dizer, naturalizada e enraizada em nossa cultura política e social. A pauta moral estava com os derrotados eleitoralmente. Mesmo que já despontassem casos pontuais de corrupção em administrações municipais, a corrupção não estava associada à ação consolidada pelo PT.
Estar na oposição assegurava espaço para as bandeiras que, eleitoralmente derrotadas, eram moralmente vitoriosas, sobretudo entre formadores de opinião. Defender os direitos humanos, as pautas dos povos indígenas, da população negra, das mulheres, de outras minorias, a reforma agrária, os programas de inclusão social, o pleno acesso à educação e à saúde sustentavam questões cruciais para a esquerda em um país marcado pela desigualdade e discriminação de toda ordem.
Quando a esquerda se encontrou com a vitória eleitoral houve alguns avanços em suas pautas históricas. Mas, a corrupção que já estava entranhada no poder fez-se visível e vários nomes respeitáveis do passado viram-se associados a delitos na administração pública.
A superioridade moral dos derrotados de outrora se esfarelou. A corrupção, tolerada ou consentida em outros grupos partidários, por exemplo, tornou-se a ponta de uma batalha que envolveu multidões nas ruas. A polarização ideológica se acirrou e agendas multifacetadas expunham fissuras de uma sociedade que tradicionalmente conviveu com o autoritarismo e com a desigualdade. O restante da história é conhecido: com o governo deposto abriu-se o flanco para a retirada de direitos trabalhistas e o corte de programas sociais em nome de uma suposta austeridade fiscal. Os escândalos de corrupção já não causam maiores comoções.
A pauta anticorrupção enfraqueceu o bloco político mais permeável aos direitos sociais. A recuperação da agenda neoliberal e as pautas conservadoras foram se impondo após a erosão moral do principal partido de esquerda que, sem a virtude propagada outrora, não consegue mobilizar forças ou discursos diante da dizimação de direitos sociais mais amplos.
A ideia de uma construção coletiva de sociedade parece não ter força suficiente para barrar a agenda reformista. A perda do poder moral refletiu-se na perda do poder de persuasão política. A obtenção do poder político pela esquerda não legitimou uma nova pauta moral, por exemplo, na questão do aborto e na união civil de homossexuais. Ao contrário, nas controvérsias da coalizão partidária, muitas pautas progressistas foram preteridas diante das ameaças de grupos mais conservadores, assim como a questão das reservas indígenas e de outros interesses sociais.
Um novo cenário
Sem a superioridade moral capitaneada por um partido, os movimentos sociais se organizam para além destes e as questões passam a ser demandas representativas de grupos com demandas específicas.
A reconfiguração de pautas políticas e sociais – gigantescas e urgentes – emergem sob princípios de novas configurações identitárias e sob o signo de conquistas para grupos específicos que, no passado, não foram contemplados nas lógicas de políticas universalistas. E, precisamente nesses grupos, está o vocabulário de uma nova política, de uma nova forma de comportamento e de atuação nas quais temas como gênero, etnia, diversidade e sustentabilidade não podem ser escamoteados.
Essas questões se impõem politicamente por, minimamente, nos impor o constrangimento de uma moral que se negava a reconhecer práticas predatórias, misóginas e racistas. Pelas frestas do multiculturalismo se reordenam os saberes e as possibilidades de futuro.
No outro espectro ideológico, a pauta moral é usada para combater as agendas progressistas. O conluio entre partidos, igrejas, grupos midiáticos e setores conservadores repetem estratégias de um discurso de apelo fácil e moralista, na pior acepção do termo. Nesse conjunto, os direitos sociais, por exemplo, podem ser confiscados em nome de um discurso de eficiência e de contabilidade orçamentária. A discussão aparentemente técnica não permite pensar qual a origem das desigualdades e quais os meios para combatê-las.
A própria democracia, com princípios plurais e propostas universalizantes, não é um valor fundamental para alguns desses setores conservadores. O sentimento antipolítico gera um determinado clamor que, no limite, destrói a possibilidade de conviver com diferenças.
Os vínculos entre moral e política se intercambiam. Há um longo processo de reconhecimento de estranhamentos e de aprender a observar os deslocamentos do nosso tempo. E, como a moral se relaciona com a noção de virtude, encerro com a advertência de Nietzsche em “Assim falou Zaratustra”: “Ai que mal a palavra ‘virtude’ lhes corre da boca! E quando dizem ‘ich bin gerecht’ (sou justo), sempre soa igual a: ‘ich bin gerächt!’ (estou vingado!) ”