Foto: Antoninho PerriJosé Alves de Freitas Neto - Professor livre-docente do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e coordenador executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest). Autor de “Bartolomé de Las Casas: a memória trágica, o amor cristão e a memória americana” (Annablume) e coautor de “A Escrita da Memória” (ICBS) e “História Geral e do Brasil” (Harbra). É autor de diversos artigos e capítulos sobre cultura e política na América Latina (séculos XIX e XX).

 

Tempos, calendários e reinvenção de expectativas

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Ilustra: luppa SilvaA convenção do tempo que encerra ciclos e cria perspectivas diante da virada do calendário é um imenso paradoxo das culturas ocidentais. Há muito se discute e problematiza aspectos como a aceleração do tempo, a modernidade líquida e o esvaziamento de sentidos no mundo atual.  O mundo moderno interrompeu, graças ao esvaziamento de certa cultura religiosa, a ideia de fim dos tempos, como um apocalipse que se aproximaria em um momento incerto, incógnito, mas previsto. No século XXI, o tempo não nos marca como uma escatologia, mas como um tatear em torno de ambiguidades e incertezas sobre o futuro que aparentemente não nos pertence.

Mais do que nunca as pessoas consultam astrólogos, magos e qualquer sentimento mágico que restitua uma fabricação de sentidos e dê o acolhimento em tempos de incertezas. Parece que os seres humanos entraram num colapso de significações e o encantamento com o futuro evaporou-se.

O tempo é matéria-prima para os historiadores!  Mas a percepção sobre o que é o tempo e quais suas dimensões e simbolismos variam para cada sociedade e época. Entre tantas concepções há algo muito perceptível: o tempo é movimento. Atualmente, temos uma ideia de tempo como algo linear, que passa e não volta mais. Os povos maias, por sua vez, viam o tempo de forma cíclica, de modo que o mundo havia sido destruído e recriado diversas vezes. Mesmo os gregos antigos, em certo sentido, acreditavam que a história podia se repetir: em grande parte, isso se devia à ação dos deuses.

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A Pedra do Sol, do período pós-clássico tardio (1250-1521), é um dos principais monumentos no Museu Nacional de Antropologia, na Cidade do México | Foto: en.wikipedia.org

O tempo como construção humana

A existência de calendários, datações e ciclos de diversas ordens indicam algo perceptível e experimentado na relação com a natureza. Os dias, meses e estações do ano são um dado que registramos e incorporamos ao nosso modo de ser e viver. Os calendários são o registro de uma sequência de episódios naturais, como dia e noite, que insistimos em contar um após outro e, mesmo aterrorizados com a perda da juventude, as pessoas se alegram e se cumprimentam a cada ciclo.

Os calendários são úteis pois, por meio deles, deixamos mais evidente que acontecimentos vieram antes ou depois, permitindo uma organização cronológica dos eventos vividos pelas pessoas. Mas, para a disciplina histórica, não basta pontuarmos datas ao longo de uma linha do tempo. Como diria o crítico literário Alfredo Bosi, as “datas são pontas de icebergs”. Precisamos descer às profundezas e tentar desenhar a parte oculta do gelo, para assim elaborar interpretações significativas dos processos históricos, tendo em vista a sua duração.

O tempo, como construção humana, é marcado pelo acúmulo de experiências e significações atribuídas por múltiplos sujeitos e episódios. Mudanças e permanências, por exemplo, impactam experiências individuais e coletivas e suas percepções diante do mundo. As marcas de um processo revolucionário, por exemplo, dialogam com a expectativa do futuro que está em construção. A persistência de crises ou a insuficiência de respostas às situações concretas de um determinado período amplificam a sensação de impotência de futuro e, muitas vezes, projetam um passado glorioso que parece edulcorado diante das amarguras do tempo imediato.

Não faltam exemplos dos dias atuais a desafiar nossa expectativa de futuro. Os refugiados, os desempregados, a perda de direitos, o crescimento dos autoritarismos, o aquecimento global, dentro outros pontos, parecem ser o desenho de um mundo que não se realizou. De uma sociedade prometida na expectativa de progresso que, ao fim e ao cabo, não se realizou para a maioria das pessoas, acumulamos frustrações e desesperanças que nos fazem seguir caminhando, mas sem um rumo muito claro.


A reinvenção de expectativas

Se, por um lado, há a sensação de impossibilidade que afeta diferentes grupos no mundo globalizado, por outro, há experiências e vivências que querem fazer surgir, mesmo que a fórceps, um outro mundo e uma expectativa diferente de tempo. Há movimentos e pessoas que demonstram solidariedade, há grupos tradicionalmente marginalizados que reivindicam e demonstram sua força e protagonismo neste mesmo tempo presente. Há insurgências e imaginações que, não sendo tão mobilizadoras como os sonhos coletivos de décadas anteriores, projetam novas subjetividades, imaginações e expectativas de futuro.

O imponderável e o acaso também marcam a maneira como nos relacionamos com o tempo. Sem a ingenuidade de pensar que o tempo seja o remédio que tudo cura, devemos ficar atentos a outras pistas e frestas que oxigenam quando tudo parece impossível.

Fotos: Reprodução
A multidão que acompanhou o funeral de Vargas (1954), na cidade do Rio de Janeiro, e a acolhida de JK, nas lentes de Thomas Farkas, na inauguração de Brasília (1960), expressam dois instantes próximos temporalmente, mas distantes na percepção sobre a vida política do Brasil | Fotos: cpdoc FGV | ims.com.br

Com o devido pedido de desculpas pela generalização, busco no passado, não muito distante, um exemplo de situação difícil e de rápida mudança de espírito diante do tempo e dos episódios que se viviam à época no Brasil. Em agosto de 1954, o trauma do suicídio de Vargas, a despeito das visões sobre o governante, marcou a história brasileira. Em 1955, inaugurou-se um período marcado por um otimismo no país que deveria se encontrar com a modernidade e a realização de seu futuro. O que mudou? O que o tempo e as memórias sobre aqueles anos produziram? Essa seria uma ampla discussão que foge ao escopo desse texto.

Por ora, interessa-me apenas a ideia de que o tempo é movimento e que, as pessoas e suas circunstâncias, criam e se impõem a condição de pensar as mudanças. Era essa a advertência de Camões (1524-1580) em seu belo soneto:

 

                            Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
                            Muda-se o ser, muda-se a confiança;
                            Todo o mundo é composto de mudança,
                            Tomando sempre novas qualidades.

                            Continuamente vemos novidades,
                            Diferentes em tudo da esperança;
                            Do mal ficam as mágoas na lembrança,
                            E do bem, se algum houve, as saudades.

                            O tempo cobre o chão de verde manto,
                            Que já coberto foi de neve fria,
                            E enfim converte em choro o doce canto.

                            E, afora este mudar-se cada dia,
                            Outra mudança faz de mor espanto:
                            Que não se muda já como soía.


Feliz 2018!

 

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