A convenção do tempo que encerra ciclos e cria perspectivas diante da virada do calendário é um imenso paradoxo das culturas ocidentais. Há muito se discute e problematiza aspectos como a aceleração do tempo, a modernidade líquida e o esvaziamento de sentidos no mundo atual. O mundo moderno interrompeu, graças ao esvaziamento de certa cultura religiosa, a ideia de fim dos tempos, como um apocalipse que se aproximaria em um momento incerto, incógnito, mas previsto. No século XXI, o tempo não nos marca como uma escatologia, mas como um tatear em torno de ambiguidades e incertezas sobre o futuro que aparentemente não nos pertence.
Mais do que nunca as pessoas consultam astrólogos, magos e qualquer sentimento mágico que restitua uma fabricação de sentidos e dê o acolhimento em tempos de incertezas. Parece que os seres humanos entraram num colapso de significações e o encantamento com o futuro evaporou-se.
O tempo é matéria-prima para os historiadores! Mas a percepção sobre o que é o tempo e quais suas dimensões e simbolismos variam para cada sociedade e época. Entre tantas concepções há algo muito perceptível: o tempo é movimento. Atualmente, temos uma ideia de tempo como algo linear, que passa e não volta mais. Os povos maias, por sua vez, viam o tempo de forma cíclica, de modo que o mundo havia sido destruído e recriado diversas vezes. Mesmo os gregos antigos, em certo sentido, acreditavam que a história podia se repetir: em grande parte, isso se devia à ação dos deuses.
O tempo como construção humana
A existência de calendários, datações e ciclos de diversas ordens indicam algo perceptível e experimentado na relação com a natureza. Os dias, meses e estações do ano são um dado que registramos e incorporamos ao nosso modo de ser e viver. Os calendários são o registro de uma sequência de episódios naturais, como dia e noite, que insistimos em contar um após outro e, mesmo aterrorizados com a perda da juventude, as pessoas se alegram e se cumprimentam a cada ciclo.
Os calendários são úteis pois, por meio deles, deixamos mais evidente que acontecimentos vieram antes ou depois, permitindo uma organização cronológica dos eventos vividos pelas pessoas. Mas, para a disciplina histórica, não basta pontuarmos datas ao longo de uma linha do tempo. Como diria o crítico literário Alfredo Bosi, as “datas são pontas de icebergs”. Precisamos descer às profundezas e tentar desenhar a parte oculta do gelo, para assim elaborar interpretações significativas dos processos históricos, tendo em vista a sua duração.
O tempo, como construção humana, é marcado pelo acúmulo de experiências e significações atribuídas por múltiplos sujeitos e episódios. Mudanças e permanências, por exemplo, impactam experiências individuais e coletivas e suas percepções diante do mundo. As marcas de um processo revolucionário, por exemplo, dialogam com a expectativa do futuro que está em construção. A persistência de crises ou a insuficiência de respostas às situações concretas de um determinado período amplificam a sensação de impotência de futuro e, muitas vezes, projetam um passado glorioso que parece edulcorado diante das amarguras do tempo imediato.
Não faltam exemplos dos dias atuais a desafiar nossa expectativa de futuro. Os refugiados, os desempregados, a perda de direitos, o crescimento dos autoritarismos, o aquecimento global, dentro outros pontos, parecem ser o desenho de um mundo que não se realizou. De uma sociedade prometida na expectativa de progresso que, ao fim e ao cabo, não se realizou para a maioria das pessoas, acumulamos frustrações e desesperanças que nos fazem seguir caminhando, mas sem um rumo muito claro.
A reinvenção de expectativas
Se, por um lado, há a sensação de impossibilidade que afeta diferentes grupos no mundo globalizado, por outro, há experiências e vivências que querem fazer surgir, mesmo que a fórceps, um outro mundo e uma expectativa diferente de tempo. Há movimentos e pessoas que demonstram solidariedade, há grupos tradicionalmente marginalizados que reivindicam e demonstram sua força e protagonismo neste mesmo tempo presente. Há insurgências e imaginações que, não sendo tão mobilizadoras como os sonhos coletivos de décadas anteriores, projetam novas subjetividades, imaginações e expectativas de futuro.
O imponderável e o acaso também marcam a maneira como nos relacionamos com o tempo. Sem a ingenuidade de pensar que o tempo seja o remédio que tudo cura, devemos ficar atentos a outras pistas e frestas que oxigenam quando tudo parece impossível.
Com o devido pedido de desculpas pela generalização, busco no passado, não muito distante, um exemplo de situação difícil e de rápida mudança de espírito diante do tempo e dos episódios que se viviam à época no Brasil. Em agosto de 1954, o trauma do suicídio de Vargas, a despeito das visões sobre o governante, marcou a história brasileira. Em 1955, inaugurou-se um período marcado por um otimismo no país que deveria se encontrar com a modernidade e a realização de seu futuro. O que mudou? O que o tempo e as memórias sobre aqueles anos produziram? Essa seria uma ampla discussão que foge ao escopo desse texto.
Por ora, interessa-me apenas a ideia de que o tempo é movimento e que, as pessoas e suas circunstâncias, criam e se impõem a condição de pensar as mudanças. Era essa a advertência de Camões (1524-1580) em seu belo soneto:
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E enfim converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
Feliz 2018!