José Mario Martínez

José Mario Martínez, autor da coluna (In)exata, é professor emérito da Unicamp e docente do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (Imecc). Trabalha em Matemática, Otimização e Aplicações. Desde 1978, ano em que se incorporou à Unicamp, tem publicado artigos e orientado teses na sua especialidade. Atualmente é presidente do Conselho Científico Cultural do Instituto de Estudos Avançados (IdEA) e coordenador de Engenharia Matemática do CRIAB (Grupo de Pesquisa e Ação em Conflitos, Riscos e Impactos associados a Barragens).

'Esnubificação'

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Os sólidos platônicos são o tetraedro, o cubo, o octaedro, o dodecaedro e o icosaedro. Escolhamos um. Suponhamos que, por um procedimento físico avançado, a superfície de cada face do sólido é reduzida à metade, mantendo sua forma e a posição do centro. O cubo, por exemplo, ficaria reduzido a seis quadrados iguais flutuando no ar. Suponhamos, também, que cada face pode rotar em relação à reta perpendicular que passa por seu centro. Será que é possível completar essa estranha área estrutural com novas faces de maneira tal que o sólido resultante seja razoavelmente regular?

Quando o sólido original é o cubo, a resposta é positiva. Diremos que o sólido derivado desse procedimento é uma “esnubificação” do cubo. Tal objeto resulta ter 38 faces (32 triangulares e seis quadradas), 60 arestas e 24 vértices.

Imaginemos que, na sala de aula, uma professora deseja que seus alunos estejam distribuídos de maneira que a distância entre cada par deles seja a maior possível. É fácil conjecturar razões pelas quais ela desejaria esse tipo de configuração. O que não é tão fácil de imaginar é que a sala de aula seja uma esfera, mas, para nossos objetivos, é isso mesmo que vamos postular. Pois bem, se na sala houver 24 alunos, o nobre objetivo de maximizar a mínima distância se cumpre quando os estudantes estão localizados nos vértices do cubo esnubificado que se inscreve no esférico ambiente.

O cubo esnubificado é um belo objeto. O autor deste texto conserva um exemplar de cartolina no seu gabinete, no qual tem encontrado farta motivação para concentração e deleite ao longo dos anos. Os seis quadrados se orientam nas três dimensões do espaço com uma graciosa rotação de cada um em relação ao seu oposto. Cada aresta de cada quadrado é compartilhada com uma face triangular e, em cada vértice, convergem vértices de quatro triângulos diferentes. O conjunto é harmonioso e o fato de que todas as arestas sejam iguais parece um milagre. Talvez o seja.

Se um adivinho recebesse mensagens na sua bola de cristal por meio de flashes luminosos em diferentes pontos, cada flash representando uma letra do alfabeto, ele combinaria com a entidade emissora que as diferentes letras estivessem representadas pelos vértices de um cubo esnubificado. Com efeito, dado o inevitável erro e imprecisão na aparição dos flashes, a maneira mais segura de não confundir uma letra com outra seria maximizar a mínima distância entre elas. Assim funciona a arte da adivinhação que, como é bem sabido, não é uma ciência exata.

Um “problema inverso” é uma situação na qual se conhece a solução, mas não se conhece o problema. (Essa caracterização se deve, provavelmente, ao matemático Gene Golub.) Quando Johannes Kepler descobriu o cubo esnubificado em 1671, não podia saber qual era o problema que essa estrutura resolvia nem, de fato, que tal problema existia. Não é incomum, na físico-química moderna, saber que determinadas estruturas se deduzem da minimização de funções de energia que, no entanto, são em princípio desconhecidas.

Segundo um famoso teorema de Kohn e Sham (Walter Kohn e Lu Jeu Sham), estruturas eletrônicas podem ser deduzidas da minimização de uma função potencial que, no entanto, é essencialmente ignorada. A estrutura de uma proteína resulta, também, da minimização de funções de energia que são parcialmente ocultas. Em 2018, a empresa Google publicou um avanço espetacular nessa área usando inteligência artificial, deep learning (aprendizagem profunda) e um poderoso arcabouço computacional para determinar a estrutura e os coeficientes dessa função potencial.

A inteligência artificial e a aprendizagem profunda contemporânea (os nomes mudam mais rapidamente que os conceitos) nos apresentam uma paisagem na qual os modelos adequados para os fenômenos da realidade (ou seja, os problemas que a natureza resolve para entregar seus produtos) podem ser obtidos por meio de procedimentos automáticos. Um software de boa qualidade descobriria qual é a função que o cubo esnubificado minimiza sem necessidade do cérebro de Kepler nem dos periódicos insights de matemáticos bem dotados. (Kepler demorou anos para perceber que os dados que tinha herdado de Tycho Brahe descreviam elipses.)

As promessas contemporâneas incluem não apenas a solução, mas também a descoberta das leis que governam eventos naturais, partindo apenas de dados. Essas leis frequentemente têm a forma de “equações diferenciais parciais” envolvendo muitas dimensões, como no caso da equação de Schrödinger (Erwin Schrödinger), que não podem ser caracterizadas nem resolvidas por meio de procedimentos tradicionais da análise numérica. As perspectivas das novas abordagens são mirabolantes e, por isso mesmo, devem ser contempladas com cautela.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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