José Mario Martínez

José Mario Martínez, autor da coluna (In)exata, é professor emérito da Unicamp e docente do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (Imecc). Trabalha em Matemática, Otimização e Aplicações. Desde 1978, ano em que se incorporou à Unicamp, tem publicado artigos e orientado teses na sua especialidade. Atualmente é presidente do Conselho Científico Cultural do Instituto de Estudos Avançados (IdEA) e coordenador de Engenharia Matemática do CRIAB (Grupo de Pesquisa e Ação em Conflitos, Riscos e Impactos associados a Barragens).

Lea, Caio, Black e Scholes

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No dia 1º de setembro, Lea descobriu que precisaria comprar US$ 1.000 no dia 1º de dezembro para pagar seu vestido de casamento. Seu tio Caio se ofereceu a vender-lhe os dólares na data desejada com um preço pré-fixado de R$ 5 por dólar. Entretanto, para obter esse privilégio, Lea precisaria pagar alguma coisa. Caio disse: “Lea, se hoje fosse 1º de dezembro e a cotação do dólar fosse 5,20, você estaria lucrando 20 centavos por dólar pelo direito que acabo de lhe conceder. Portanto, você precisa me pagar 20 centavos vezes 1.000, ou seja R$ 200. Mas Lea respondeu: “Sim, mas, se em 1º de dezembro a cotação do dólar for 4,90, eu não compraria seus dólares pois me resultaria mais em conta comprar pelo preço de mercado, logo esse privilégio não valeria nada. Eles concluíram que deveria haver uma solução aceitável para ambos. Lea disse: “Hoje é 1º de setembro e a cotação do dólar é 4,90. Eu acho que até 1º de dezembro a cotação  poderá variar 10% para mais ou para menos, ou seja, em 1º de dezembro a cotação estará entre 4,41 e 5,39”. Caio disse: “Pois é. E, se for 5,39, você estará lucrando 0,39 centavo por dólar”. Mas Lea disse: “Mas, se for 4,41, essa promessa que você me faz hoje não valeria nada”. Então eles chegaram ao acordo de que o preço justo da promessa era a média entre 0,39 e 0, portanto, R$  0,195 para cada dólar, ou seja R$ 195 reais pela opção de comprar US$ 1.000 no dia 1º de dezembro por R$ 5.000. Assim, Caio embolsou R$ 195 e Lea ficou com um documento assinado, no qual ele se comprometia a vender US$ 1.000 no dia 1º de dezembro em troca de R$ 5.000.

O que Caio vendeu para Lea é uma “opção de compra”, o caso mais simples de “derivativo” na linguagem das finanças. De fato, Lea pagou pelo direito de comprar US$ 1.000 por R$ 5.000 no primeiro de dezembro. Os economistas Black e Scholes publicaram, em 1973, uma fórmula para calcular o “preço justo” desse tipo de opção. A fórmula é uma supersofisticação do raciocínio feito por Lea e Caio: para determinar o preço justo, é necessário resolver uma EDP (Equação Diferencial com Derivadas Parciais). Felizmente, já há calculadoras que resolvem a equação Black-Scholes e, portanto, determinam o preço justo para uma opção, quando o usuário digita os dias até o vencimento, o valor de compra compromissado para essa data, o valor atual do “ativo” considerado (US$ 1.000 no caso de Lea e Caio), a taxa de juros livre de risco (digamos, a taxa Selic) e a volatilidade do ativo. Lea e Caio teriam digitado, respectivamente, “90 dias, R$ 5.000, R$ 4.900, taxa Selic zero”, e ficariam na dúvida quanto à volatilidade por ser esta uma magnitude duvidosa. De fato, Lea e Caio sugeriram a volatilidade implicitamente, ao dizer que o dólar poderia variar 10% para cima para baixo. Pois bem, se eles possuíssem uma calculadora Black-Scholes e tivessem chutado a volatilidade como sendo 0,013, teriam obtido quase exatamente R$  195, ou seja o mesmo que eles calcularam de maneira tosca.

Mas o que é “preço justo”? Será o preço que o mercado praticaria para a opção antes de conhecer a fórmula Black-Scholes? Pode ser, mas hoje o mercado conhece a fórmula Black- Scholes e, naturalmente, se orienta por ela para negociar as opções de compra e venda. Portanto, o modelo influencia a realidade que deseja prever. (Intervenções dos modelos na realidade não costumam ocorrer nas ciências físicas) Por outro lado, há o problema da misteriosa volatilidade do ativo objeto da compra-venda (o dólar, no caso da Lea). A volatilidade é um dado da realidade que se calcula usando dados do passado? Deveria ser, mas a experiência parece indicar que, pensada dessa maneira, a fórmula Black-Scholes não funciona muito bem, ou seja, o mercado a segue, mas não muito. Finalmente, há outra possibilidade: em vez de dar por conhecida a volatilidade e, a partir dela, calcular o preço justo, observar o preço praticado e calcular a volatilidade que produz esse preço usando Black-Scholes. (É o que fizemos acima para que o resultado de Black-Scholes batesse com a estimativa de Lea e Caio.)

O caso Black-Scholes é muito simples, mas vemos que não está isento de armadilhas epistemológicas. Entretanto, os economistas têm modelos para tudo. O Copom (Comitê de Política Monetária) se reúne todos os meses para decidir a taxa Selic, auxiliado por modelos que predizem a inflação para cada taxa de juros. O economista André Lara Resende sustenta, contrariando a ortodoxia, que altas taxas de juros, se de fato diminuem a inflação a curto prazo, a aumentam a longo prazo porque, afinal de contas, o que importa são as expectativas. Se for assim, os modelos usados pelo Banco Central estariam errados ou, pelo menos, seriam mais problemáticos que a inocente fórmula Black-Scholes.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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