O Brasil enfrenta uma nova ameaça de retrocesso na educação em razão do Projeto de Lei 4.909/2020, aprovado no dia 25/05/2021 pelo Senado Federal e que, agora, segue para a Câmara dos Deputados. O texto prevê a educação escolar de pessoas com surdez que se comunicam por meio da Língua Brasileira de Sinais (Libras) em escolas e classes bilíngues exclusivas. Esse projeto, que busca legitimar ambientes educacionais segregados, afronta o marco legal e o espírito vanguardista do sistema escolar brasileiro. Ademais, retrocede em relação Decreto 5.626/2005, que regulamentou a Lei 10.436/2002 (Lei de Libras). Esse decreto já garante, há 16 anos, o bilinguismo nas escolas comuns. É preciso, portanto, garantir sua execução plena, e não propor segregação escolar em pleno Século 21.
Em nosso sistema de ensino, regido pela LDB/96, as modalidades de ensino, como a pleiteada pelo projeto de lei citado, são complementares ao ensino comum, na etapa do ensino básico e não o substituem. Escolas exclusivas par portanto, não garantem a obrigatoriedade do ensino de 04 a 17 anos, que ocorrem exclusivamente em escolas comuns de ensino regular.
Outras entidades também se manifestaram contra o Projeto de Lei 4.909/2020. É preciso que nossos poderes executivo e legislativo saibam que a sociedade civil está atenta e vigilante contra essas tentativas de corrosão do marco nosso constitucional por meio de dispositivos infraconstitucionais, a exemplo do referido PL ou do Decreto 10.502/2020 do governo federal, que foi suspenso por liminar do Supremo Tribunal Federal.
Pesquisas desenvolvidas no Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (Leped) da Faculdade de Educação da Unicamp mostram que, especialmente na Educação Infantil e no Ensino Fundamental I, os alunos estão adquirindo a Libras e/ou a linguagem oral e escrita da Língua Portuguesa juntos, imersos no mesmo ambiente educacional. Por isso, é preciso que o bilinguismo adotado pelas escolas comuns contemplem as particularidades tanto da Libras quanto da Língua Portuguesa, assim como as escolas de educação básica devem garantir o bilinguismo às populações indígenas e contemplar as questões culturais e étnicas de populações tradicionais.
Observação: Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
Leia a íntegra do manifesto do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (Leped):
NOTA DO LEPED EM DEFESA DA EDUCAÇÃO BILINGUE PARA SURDOS SINALIZANTES NA ESCOLA COMUM
Está para ser votado no Senado Federal o Projeto de Lei Nº 4.909/2020, de autoria do Senador Flávio Arns (PODEMOS/PR), que altera a Lei nº 9.394/1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação, para dispor sobre a modalidade de educação bilíngue de surdos. De antemão, o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença da Faculdade de Educação da Unicamp (LEPED/FE/UNICAMP) manifesta sua posição em defesa do direito de estudantes que utilizam a Língua Brasileira de Sinais – Libras (surdos, surdocegos, com deficiência auditiva e surdos com altas habilidades) terem acesso à educação bilingue em escolas comuns. Isto posto, apresentamos os motivos pelos quais somos veementemente contrários ao Projeto de Lei:
- O direito à educação bilingue em escolas comuns é previsto há 16 anos, pelo Decreto Nº 5.626/2005, que regulamentou a Lei Nº 10.436/2002 (Lei de Libras). No art. 22, o Decreto prevê que as escolas de “educação básica devem garantir a inclusão de alunos surdos ou com deficiência auditiva”. O texto normatiza o seguinte: inclusão da Libras como disciplina curricular (Cap. II); formação do professor de Libras e do instrutor de Libras (Cap. III); uso e difusão da Libras e da Língua Portuguesa para o acesso das pessoas surdas à educação (Cap. IV); formação do tradutor e intérprete de Libras-Língua Portuguesa (Cap. V); garantia do direito à educação das pessoas surdas ou com deficiência auditiva (Cap. VI); garantia do direito à saúde das pessoas surdas ou com deficiência auditiva (Cap. VII); e o papel do poder público e das empresas que detêm concessão ou permissão de serviços públicos, no apoio ao uso e difusão da Libras (Cap. VIII).
- O mesmo decreto prevê educação bilingue desde a educação infantil, com o ensino da Libras e da Língua Portuguesa, como segunda língua, em escolas “abertas a alunos surdos e ouvintes” (art. 22). Além disso, o Decreto define a estrutura e os profissionais necessários à implementação da educação bilingue “nas salas de aula e, também, em salas de recursos, em turno contrário ao da escolarização” (art. 14, inc. IV).
- O PL Nº 4.909/2020 é um retrocesso, pois propõe que a educação bilingue possa ser ofertada em escolas, classes ou polos exclusivamente compostos por estudantes surdos sinalizantes, o que afronta o marco legal brasileiro, notadamente a Constituição Federal de 1988; a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência; e a Lei Brasileira de Inclusão.
- Conquanto o PL Nº 4.909/2020 proponha o reconhecimento da escola comum como ambiente legítimo para a oferta da educação bilíngue (Art. 60-A), causa estranheza o fato de o texto prever espaços segregados, como os citados no item anterior.
- Era de se esperar que um projeto de lei voltado às pessoas surdas sinalizantes não buscasse sua segregação, mas garantisse os meios e os recursos necessários para o total cumprimento do que o Decreto Nº 5.626/2005 lhes concede há anos. É inadmissível que o PL Nº 4.909/2020 destine recursos financeiros da União para a criação de uma rede escolar segregada, em detrimento do aprimoramento da educação bilingue nas escolas comuns.
- A oferta do ensino obrigatório, dos 4 aos 17 anos, é dever da gestão pública e da família e só pode acontecer nas escolas comuns do ensino regular. Assim, antes de se propor tamanho retrocesso, o Poder Legislativo deve cumprir seu papel fiscalizador, no sentido de garantir que as escolas comuns ofereçam a educação bilingue, nos termos do Decreto Nº 5.626/2005.
- A luta pela inclusão dos brasileiros surdos sinalizantes inexiste quando se propõe o ensino escolar em ambientes apartados. A educação bilingue implica necessariamente na convivência entre surdos sinalizantes e ouvintes. A escola é o lugar privilegiado para que essa convivência se consolide a partir do uso corrente de ambas as línguas.
- É preocupante também a ausência do debate a respeito das necessidades de acessibilidade dos estudantes surdos que não optaram pela Libras. Com a criação de uma rede de escolas segregadas para “surdos” (o que dá a entender que toda pessoa surda necessariamente se comunica em Libras), muitos desses estudantes correm o risco de ser encaminhados a esses ambientes. E ainda que o PL especifique o público sinalizante, isso tende a ocorrer de toda maneira, porque este é o efeito prático deletério da existência de espaços segregados.
- Parte do Decreto 10.502/2020 do governo federal continha o mesmo teor do PL Nº 4.909/2020. É fundamental que os legisladores tenham ciência de que este Decreto se encontra suspenso por liminar concedida na ADI 6590 pelo pleno do Supremo Tribunal Federal, em razão de flagrante inconstitucionalidade. Espaços de educação segregados não encontram respaldo no nosso ordenamento jurídico.
Isto posto, o LEPED conclama os senadores e toda a sociedade civil a atuar pela rejeição do PL 4.909/2020. A educação inclusiva é dever de todos nós e não pode ser retalhada por meio de projetos de lei inconsequentes como este.
Campinas, 25 de maio de 2021.
Maria Teresa Eglér Mantoan
Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (Leped) Faculdade de Educação – FE – Universidade Estadual de Campinas - Unicamp
Confira o posicionamento de outras entidades contra o Projeto de Lei 4.909/2020: