Por Luís Renato Vedovato*
Fevereiro terminou sob as sombras de uma guerra que promete refletir em vários locais do globo, pois a Rússia tem mísseis com alcance de 11 mil quilômetros, e por muito tempo, tendo em vista que o povo da Ucrânia não indica abandonar seu país, mesmo após a derrota militar, que poderá acontecer nos próximos dias. E não há como fugir, a Rússia viola o direito, comete uma atrocidade e coloca o mundo em risco ao atacar a Ucrânia e, em seguida, ameaçar a todos os países do mundo com suas armas nucleares. Não há argumento que possa justificar tamanha violência. Mas há quem tente e essas tentativas serviriam para tentar entender a decisão do presidente russo, o que, nem de longe, justifica a trágica decisão de invadir um país soberano.
A histórica relação entre Rússia e Ucrânia, que teria conseguido sua independência somente com o fim da União Soviética, é usada com o intuito de se defender os dois países foram sempre unidos e, dessa forma, deveriam assim continuar. Nesse argumento, está subjacente que a Ucrânia não deveria existir, exatamente como foi dito por Putin durante sua declaração no dia 21 de fevereiro, pois a história seria determinante para o futuro. Se esse argumento tivesse fundamento, fazendo um paralelo entre o direito interno e o direito internacional, nenhuma minoria historicamente oprimida teria direito de se libertar. Em outras palavras, seria um argumento para a manutenção da opressão machista e da proibição do casamento gay, exemplos também encontrados nos discursos de Putin.
Há também quem busque no avanço da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) o sustentáculo para o ataque covarde contra a Ucrânia. Nesse sentido, a Rússia se viu acuada com a chegada da OTAN às suas fronteiras, o que levou ao ataque, apoiando-se na falsa informação de que haveria um acordo, feito nos últimos dias da União Soviética, segundo o qual a organização militar ocidental não teria relação com as ex repúblicas soviéticas. O próprio Gorbachev, porém, afirma que nunca houve esse acordo. E mesmo que houvesse, poderia um país em ruínas determinar as decisões de países que dele se libertaram? Para o direito internacional, não faz sentido. Mesmo que fizesse, a reação não poderia ser armada, teria que ser negociada. Logo, justificar a invasão na aproximação entre Ucrânia e OTAN seria o mesmo que culpar a vítima de estupro pelo estupro. Mais uma vez, lamentável.
Sobre as sanções impostas à Rússia, há duas linhas opostas de raciocínio. A primeira defende que as sanções são brandas e que o caminho seria a resposta armada. Nesta linha de pensamento, a fraqueza das sanções vem da falta de preparo dos líderes ocidentais, que não seriam talhados para seus postos. Quem adota essa via se esquece de que a escalada do conflito pode levar a um embate mundial e ao uso de armas nucleares. Assim, o caminho possível passa pela resposta com sanções não armadas, o que pode indicar preparo dos Estados para um contraponto dentro do direito para o caso.
Por outro lado, há quem diga que as sanções foram exageradas, o que pode levar Putin a ficar sem saída, optando por uso de armas mais pesadas, além de não permitir que haja um país para fazer a mediação do conflito. Esquecem-se da China, que partiu para uma posição de neutralidade desde a votação no Conselho de Segurança, no dia 25 de fevereiro. Também afirmam que as sanções recaem sobre as pessoas, que terão dificuldades econômicas e poderão ser privadas de seus bens no futuro. De fato, isso é verdade e deve ser monitorado, todavia, uma resposta armada poderia ser pior para essas pessoas.
Aqui, do outro lado do mundo, o governo brasileiro ainda não condenou de forma veemente o ataque, o que, por si só, é uma violação à Constituição Federal (CF), que, no seu art. 4o, incisos VI e VII, determina que o nosso país se guiará nas relações internacionais pela defesa da paz e pela solução pacífica dos conflitos. Logo, ao abandonar sua tradição, a diplomacia brasileira também viola a Constituição, o que é crime de responsabilidade, de acordo com o art. 85, da CF, que determina serem crimes de responsabilidade "os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal". Violar o art. 4o. é atentar contra a CF. Vale dizer, porém, que nos foros internacionais, o Brasil tem se colocado em lado oposto ao da Rússia.
Chama também a atenção o fato de que um aliado do Presidente Bolsonaro (que declarou ser solidário à Rússia durante sua visita recente àquele país), o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tenha, num primeiro momento, elogiado a ação de Putin. Aqui, há alguns pontos a serem lembrados: 1. As acusações de interferência russa nas eleições que levaram Trump ao poder; 2. As constantes falas de Trump contra a OTAN durante seu mandato como presidente dos EUA; 3. Um dos dois processos de impeachment enfrentados por Trump deveu-se a uma conversa que ele teve por telefone com Volodymyr Zelensky, presidente ucraniano; e 4. A posição de aliado de Trump do atual presidente brasileiro.
Esses fatos já seriam suficientes para despertar preocupação com relação à posição dos governos nesse embate e o papel dos russos em qualquer eleição que aconteça no mundo. Parece óbvio que há um incômodo por parte de determinados grupos com o avanço do direito internacional, que deixa menos espaços para criminalidade transnacional e para lavagem de dinheiro.
Não se trata de defender a ideia de que países como os EUA sempre respeitaram o direito, não é isso. Há muitos conflitos negligenciados pelo mundo, como o conflito do Iêmen, e há muitas ações dos EUA que violaram o direito internacional, o Iraque e o Afeganistão são os exemplos recentes nesse sentido. Também não se quer dizer que o tratamento dado a refugiados pela Ucrânia ou por outros países europeus, nos últimos anos, seja dentro dos ditames do direito, sabe-se que não. Mas isso não faz o ataque da Rússia à Ucrânia nem um milímetro menos covarde e menos violador do direito. Há ilícito internacional e assim deve ser tratado.
Por fim, há que se lembrar que as saídas jurídicas não possuem balas de prata e tendem a demorar para serem implementadas, o que exige muito sangue frio e paciência de quem assiste a imagens de pessoas sendo mortas e crianças desabrigadas. As cenas são chocantes e cruéis. A saída jurídica, porém, é a que menos tragédias pode causar.
Observação: Os artigos publicados não traduzem a opinião do Jornal da Unicamp. Sua publicação tem como objetivo estimular o debate de ideias no âmbito científico, cultural e social.
*Luís Renato Vedovato é pesquisador do Projeto de Pesquisa sobre Abordagem Consensual da Pobreza (Unicamp e Cardiff University), autor do livro "O Van Gogh Esquecido" (2020).