Se a incerteza é constitutiva do devir histórico, Hiroshima a transformou no objeto central da reflexão histórico-filosófica [I]. Desde então, o mundo permanece suspenso, muitas vezes por um fio, sobre o abismo nuclear [II]. Hoje ele está “mais imprevisível e mais difícil” que há uma geração, afirmou Jens Stoltenberg, secretário-geral da OTAN [III]. Há de fato uma convergência de riscos, agravada pela eleição de Donald Trump, que em dezembro passado tuitou: “Os EUA devem reforçar muito e expandir seu arsenal nuclear” [IV]. Em 2017, os ponteiros do Doomsday Clock, publicado pelo Bulletin of the Atomic Scientists [V], foram adiantados, faltando agora dois minutos e meio para a meia-noite. Nos 70 anos de existência desse monitoramento, esse é o momento mais próximo de uma conflagração nuclear potencialmente terminal, com a única exceção de 1953, quando da explosão da primeira bomba de hidrogênio pelos EUA, conforme mostra a Figura 1.
A declaração do secretário-geral da OTAN, acima evocada, reflete a vociferação de Donald Trump de que “os norte-coreanos enfrentarão fogo e fúria como o mundo jamais viu” [VI], e a resposta de Vladimir Putin de que a escalada de ameaças de guerra entre os EUA e a Coreia do Norte podem disparar uma “catástrofe global” [VII]. Além disso, o risco nuclear permanece considerável também no Oriente Médio e entre os demais países asiáticos nuclearizados, como a Índia, o Paquistão e a China, sobretudo pelo controle das geleiras do Himalaia, fonte maior de seus recursos hídricos [VIII].
E, entretanto, quanto maiores e mais evidentes se tornam tais riscos, menor é a reatividade que suscitam. Esse paradoxo se explica por três mecanismos psicológicos bem conhecidos: (1) o efeito de habituação a decênios de Guerra Fria e à retórica da dissuasão (algo semelhante à fábula do lobo que nunca chega); (2) a resposta ineficiente de nosso aparelho psíquico a perigos não imediatos, ainda que extremos; (3) o desmonte do Welfare State e a regressão da democracia representativa, trazidos pela globalização, pela extrema concentração do poder econômico e pela nova normalidade do capitalismo após 2008. Pois seus impactos imediatos na segurança alimentar, energética e financeira encurralam agora de tal modo a maior parte da população, que a preocupação por riscos menos prementes, por maiores que sejam, passa ao terceiro plano [IX].
O mesmo paradoxo se observa no âmbito das crises ambientais. Quanto mais severos e recorrentes se tornam os alertas da comunidade científica sobre a desestabilização do sistema climático e a crescente degradação dos ecossistemas, menor parece ser a disposição da sociedade de reagir à altura. Isso se explica também pelos três mecanismos acima lembrados, pois as recorrentes advertências sobre o agravamento das crises ambientais, ainda que subnoticiadas pela grande imprensa, acabam gerando habituação, os impactos das crises ambientais são ainda relativamente difusos e, sobretudo, a angústia gerada pela piora da situação socioeconômica no último decênio tem contribuído para relegar essas crises a uma posição marginal na agenda política.
Incerteza nuclear, certeza ambiental
Há que se notar aqui, porém, uma diferença fundamental. A guerra nuclear pertence à esfera do imponderável. Ela pode resultar de uma “falha trágica”, de uma derrapagem aleatória na escalada das ameaças recíprocas ou de um acesso de loucura [X]. Ao contrário, a catástrofe ambiental mostra-se cada vez menos incerta, pois a dinâmica expansiva da economia capitalista e a ciência nos tornam sempre mais capazes de provocá-la e de prevê-la, enquanto o sequestro da democracia pelas corporações e a própria dinâmica de retroalimentação das crises ambientais nos tornam sempre menos capazes de evitá-la. Os piores cenários das projeções anteriores de degradação das coordenadas ambientais vêm sendo em geral confirmados, ou mesmo superados, pela observação subsequente dos fenômenos. Contrariamente ao inverno nuclear, não precedido por um outono, o colapso dos sistemas naturais anuncia-se por uma proliferação de signos cada vez mais nítidos e distintos do ruído de fundo, isto é, da variabilidade natural do sistema Terra. A eles se referia Dennis Meadows em 2012, no quadragésimo aniversário de seu famoso The Limits to Growth, quando afirmou: “Vejo o colapso já acontecendo” [XI].
O retrato sem retoque de nosso futuro
O editorial de junho passado da revista Nature não usa meias palavras para descrever esse colapso “já acontecendo” [XII]: “No planeta Terra o calor está aumentando. (...) De chuvas extremas à elevação do nível do mar, o aquecimento global deve causar devastação nas vidas humanas. Por vezes, o impacto mais direto – o próprio aquecimento – é esquecido. Mas o calor mata. O corpo, em síntese, evoluiu para trabalhar em uma faixa estreita de variações de temperatura. Nosso mecanismo de resfriamento baseado em transpiração é simples; além de certa combinação de alta temperatura e umidade, ele colapsa. Expor-se a tais condições ambientais por um tempo qualquer torna-se rapidamente uma sentença de morte”.
Eis o retrato sem retoque de nosso futuro, proposto pelo editorial de uma das mais prestigiosas revistas de ciências da natureza, ao qual é necessário acrescentar, para torná-lo ainda mais fidedigno, a perda média global de cobertura florestal entre 2012 e 2015 de cerca de 220 mil km2 por ano [XIII], a aniquilação biológica pelo desmatamento, a sobrepesca, a multiplicação de zonas mortas nos oceanos, o empobrecimento dos solos, o declínio dos maiores aquíferos, as secas e incêndios mais devastadores, a poluição generalizada e a intoxicação química dos organismos.
Fatos, não mais projeções, são os recentes eventos meteorológicos extremos na Índia, Nepal e Bangladesh, que mataram mais de 1.200 pessoas e vitimaram 40 milhões, ou a sucessão sem precedentes numa mesma temporada ciclônica de furacões e inundações maiores (Harvey, Irma, José, Katia...) que fustigam as Antilhas e os EUA. Outro fato é a maior frequência de anomalias de calor no período 2001-2011 na comparação com o período 1951-1980, tal como mostra o famoso “dado climático” de James Hansen e colegas na Figura 2.
Mas a situação degradou-se ainda mais nos últimos três anos [XIV], com 2016 atingindo as mais altas temperaturas médias globais jamais registradas, recorde em parte devido ao efeito de intensificação do aquecimento produzido pelo El Niño. Mas julho de 2017, já passado o efeito El Niño, foi, segundo a NASA, “estatisticamente empatado com julho de 2016 como o mais quente dos 137 anos dos registros modernos” [XV]. Desde 2015 os termômetros marcam temperaturas entre 47,7º C e 54º C na China, Índia, Paquistão, Afeganistão, Irã, Iraque, Jordânia, Oman, Turquia, Espanha (47,7º C) e Kuwait (54º C), país onde se tornou ilegal trabalhar ao sol das 11:00 às 16:00 horas entre 1º de junho e 31 de agosto. Esses picos de calor extremo implicaram o cancelamento em julho de dezenas de voos em Phoenix, nos EUA, porque os aviões não foram projetados para decolar a temperaturas acima de 47º C. Num próximo futuro, o aquecimento deve restringir as condições operacionais de cinco modelos de aviação comercial em 19 grandes aeroportos [XVI]. Prevê-se também uma maior frequência de eventos extremos de El Niño a partir de +1,5º C [XVII], sendo que as estimativas de aquecimento médio global até 2100 oscilam entre +2,7º C e +5,2º C, se o Acordo de Paris for (ou fosse...) implementado, tal como mostra a Figura 3.
Quanto às mortes provocadas por ondas de calor a que alude acima o editorial da Nature, um trabalho publicado em 2017 na Nature Climate Change por Camilo Mora e coautores mostra que “atualmente, cerca de 30% da população mundial está exposta a condições climáticas que excedem o limiar de mortalidade por ao menos 20 dias por ano. Projeta-se que em 2100, essa porcentagem será de ~48%, num cenário com drásticas reduções das emissões de gases de efeito estufa, e de ~74% num cenário de emissões crescentes. Uma ameaça crescente à vida humana por excesso de calor parece agora inevitável, mas será muito agravada se os gases de efeito estufa não forem consideravelmente reduzidos”[xviii]. A Figura 4 mostra o número de dias por ano em que a temperatura estará até 2100 acima do limiar de mortalidade, nos cenários de menores (RCP 4,5) ou maiores (RCP 8,5) concentrações atmosféricas de gases de efeito estufa.
Brasil
Como mostra o mapa acima, o Brasil está entre as principais vítimas da catástrofe climática. De fato, o primeiro Relatório de Avaliação Nacional (RAN-1) do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC), firmado em 2013 por 345 cientistas, projeta para o período 2071-2100, segundo as diferentes curvas das emissões de gases de efeito estufa, aumentos das temperaturas médias em todas as regiões do país entre 3º e 6º C em relação ao final do século XX (quando já se registravam aumentos de ~0,8º C em relação ao período pré-industrial) [XIX]. Na Amazônia, +5º C no verão e +6º C no inverno, com forte queda da pluviosidade. Na Caatinga, + 3,5º C no verão e +4,5º C no inverno, com igual queda de pluviosidade. Na Mata Atlântica (NE), + 3º C no verão e +4º C no inverno, com quedas significativas de pluviosidade. E na Mata Atlântica (S/SE), +2,5º C no verão e +3º C no inverno, com aumento da pluviosidade, agravando as inundações no sul do país. A Figura 5 sintetiza essas mudanças regionais de temperatura e de pluviosidade nos períodos 2011-2040, 2040-2070 e 2071-2100.
Eis, em conclusão, o que todos os cenários projetados pela ciência têm em comum: se um futuro pior afigura-se agora inevitável, ele será incomensuravelmente pior se continuarmos a não reagir à altura da gravidade extrema da situação atual. Admitir que o rápido agravamento das crises ambientais representa perigo existencial certo e iminente à civilização e à teia da vida em latitudes crescentes de nosso planeta implica superar a anacrônica pauta política em que dissipamos cotidianamente nossas energias. Implica priorizar o combate aos responsáveis maiores por essas crises. Sabemos quem são eles, mas um trabalho publicado na revista Climatic Change [XX] identifica suas impressões digitais: “dois terços das emissões industriais totais de dióxido de carbono (CO2) e de metano (CH4) são de responsabilidade de 90 grandes empresas produtoras de carbono”, vale dizer, das corporações de combustíveis fósseis e de cimento. Quantificando essa responsabilidade histórica (1880-2010) e recente (1980-2010), os autores desse trabalho demonstram que essas 90 empresas “contribuíram com ~57% do aumento observado nas concentrações de CO2, com 42% a 50% do aquecimento médio global superficial (GMST) e com 26% a 32% da elevação do nível do mar no período histórico” (1880-2010). Quanto ao período recente (1980-2010), elas são responsáveis por 43% das concentrações atmosféricas de CO2, por 29% a 35% do aquecimento (GMST) e por 11% a 14% da elevação do nível do mar”. Essa rede corporativa, formada não apenas por essas 90 corporações da energia fóssil e do cimento, mas também pela coalizão do desmatamento (pecuária, fertilizantes químicos, agrotóxicos, mineração etc) está condenando os jovens e a próxima geração a um planeta certamente muito mais adverso que o legado por nossos pais e, cada vez mais provavelmente, a um planeta inabitável na maior parte de suas latitudes. O desafio imenso da política de nosso tempo é criar uma sociedade alternativa democrática e livre, disposta a um esforço de guerra para mitigar os impactos de um futuro inevitável – o que supõe arrebatar as decisões econômicas estratégicas da lógica suicida do lucro e subordiná-las à restauração dos ecossistemas em colapso. Esse desafio tem prazo de validade e este está se esgotando.
[I] Cf. Michel Serres, Eclaircissements. Entretiens avec Bruno Latour. Paris, 1992, pp. 29-30 : «Hiroshima reste l’unique objet de ma philosophie»; Hicham-Stéphane Afiessa, « Michel Serres à l’ombre de la bombe », in Portraits de philosophes en écologistes, Paris, 2012, pp. 157-175.
[II] Cf. Tony Judt, Reflexões sobre um século esquecido, 1901-2000, São Paulo, 2008, pp. 333 e seg.; Pavel Aksenov, “Stanislav Petrov: The man who may have saved the world”. BBC Russian, 26/IX/2013.
[III] Cf. Daniel Boffey, “Nato chief: world is at its most dangerous point in a generation”. The Guardian, 8/IX/2017.
[IV] Cf. Rachael Lallensack, “Doomsday Clock ticks 30 seconds closer to midnight, thanks to Trump”. Science, 26/I/2017.
[V] Cf. “It is two and a half minutes to midnight”. Bulletin of Atomic Scientists: “In 2017, we find the danger to be even greater” <http://thebulletin.org/timeline>.
[VI] Cf. Julian Borger, “Donald Trump vows to answer North Korea nuclear threats with 'fire and fury'”: The Guardian, 9/VIII/2017.
[VII] Cf. Justin McCurry, Tom Phillips, “North Korea nuclear crisis: Putin warns of planetary catastrophe”. The Guardian, 5/IX/2017.
[VII] “India army chief: we must prepare for war with China and Pakistan”. The Guardian, 7/IX/2017.
[IX] A insegurança alimentar aumenta agora inclusive no Reino Unido, cf. Rajeev Syal, “One in eight workers struggle to afford food, finds TUC survey”. The Guardian, 7/IX/2017.
[X] Cf. John F. Kennedy: “Hoje cada habitante deste planeta deve contemplar o dia em que este planeta pode não ser mais habitável. Cada homem, mulher e criança vive sob a espada nuclear de Dâmocles, suspensa pelo mais delgado dos fios, podendo ser cortada a qualquer momento por acidente ou erro de cálculo ou loucura”. Address before the General Assemby of the United Nations, 25/IX/1961 (em rede).
[XI] Cf. Madhusreee Mukerjee, “Apocalypse Soon: Has Civilization Passed the Environmental Point of No Return?” Scientific American, 19/XII/2012; Graham Turner, Cathy Alexander, “Limits to Growth was right. New research shows we’re nearing collapse”. The Guardian, 2/IX/2014.
[XII] Cf. “Mercury rising”, Nature, editorial, 22/VI/2017.
[XIII] Cf. Mikaela Weiss et al., “Global tree cover loss remains high, and emerging patterns reveal shifting contributors”. World Resources Institute, 18/VII/2017.
[XIV] Cf. “High temperatures and extreme weather continue”. OMM, 7/7/2017.
[XV] “July 2017 equaled record July 2016”. NASA’s Goddard Institute for Space Studies, 15/VIII/2017.
[XVI] Cf. Ethan D. Coffel, Terence R. Thompson & Radley M. Horton, “The impacts of rising temperatures on aircraft takeoff performance”. Climatic Change, 13/VII/2017.
[XVII] Cf. Guojian Wang et. al., “Continued increase of extreme El Niño frequency long after 1.5o C warming stabilization”. Nature Climate Change, 7, 24/VII/2017, pp. 568-572.
[XVIII] Cf. Camilo Mora et al., “Global risk of deadly heat”. Nature Climate Change, 19/VI/2017.
[XIX] Cf. Marcos Pivetta, “Extremos do Clima”. Pesquisa Fapesp, agosto de 2013, pp. 16-21.
[XX] Cf. B. Ekwurzel et al., “The rise in global atmospheric CO2, surface temperature, and sea level from emissions traced to major carbon producers”. Climatic Change, 7/IX/2017. Agradeço a Fernando Chaves pela indicação desse trabalho.